Conforme a compreensão dos teóricos de tradição marxista, o capitalismo depende sobremaneira da acumulação do capital para a sustentação do sistema instituído. Por sua vez, a acumulação do capital está diretamente relacionada à exploração do trabalho, que tende a ser cada vez mais menos valorizado em favor da ampliação dos lucros.
O capitalismo, vigente ao longo do século 20 e ingressando no século 21, é denominado, pelos críticos da economia política, imperialismo. Essa fase caracterizada por novas determinações tem como característica marcante dois tipos de padrões de acumulação: o rígido e o flexível. A dinâmica de acumulação no padrão de acumulação rígida tem como base o sistema taylorista/fordista. Esse padrão produtivo se baseia na produção em massa de mercadorias, a partir de uma produção mais homogeneizada e enormemente verticalizada. Além disso, sua base é o trabalho parcelar e fragmentado. Nele a ação operária se reduz a um conjunto repetitivo de tarefas em decorrência da decomposição das atividades.
Apesar de o período de acumulação rígida ter sido considerado como os anos dourados do capitalismo, ou seja, um período em que houve um longo processo de acumulação de capitais, um olhar mais atento demonstra que esse momento é marcado por um regime de acumulação baseado na lógica destrutiva do capital. Tal lógica baseia-se na extração da mais-valia do trabalhador, no aprofundamento da separação entre a produção voltada genuinamente para o atendimento das necessidades humanas e das necessidades de auto-reprodução do capital, na retirada insustentável de recursos naturais, entre outros. Tudo isso evidencia mais uma vez que, apesar das mudanças e transformações ocorridas nessa nova etapa do capitalismo, os métodos utilizados para o acúmulo do capital continuam espúrios e ilegítimos.
A partir do final dos anos de 1960 e início dos anos de 1970, o capital começa a dar sinais de um quadro crítico. A ilusão de um processo efetivo, duradouro, regulado e fundado num compromisso entre capital e trabalho, mediado pelo Estado, começa a se mostrar insustentável. Em decorrência da crise que se instalou, a alternativa do capital foi reestruturar o padrão produtivo, objetivando recompor os índices de acumulação existentes no período anterior. O capital reorganiza o ciclo produtivo de forma a preservar seus fundamentos essenciais, ou seja, utilizando os velhos mecanismos de acumulação.
Nesse contexto, inicia-se uma mudança no interior do padrão de acumulação, e não no modo de produção capitalista, visando alternativas que pudessem atribuir maior dinamismo ao processo produtivo. Essa reestruturação altera os processos do regime de acumulação anterior, a fim de garantir e ampliar os fundamentos da acumulação capitalista. Desse modo, a era da acumulação flexível emerge nesse período. O regime de acumulação flexível é marcado por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ele se ampara na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e dos padrões de consumo.
Uma das consequências mais visíveis nesse processo de transformação na acumulação do capital para o chamado toyotismo é a modificação na estrutura do trabalho, que se torna mais flexível. Passa a predominar, em lugar do trabalho formal, seguro e hierarquizado que se tinha até então, o trabalho instável, desregulamentado e em muitas vezes terceirizado. O mundo do trabalho passa a observar grande desemprego estrutural e trabalhadores em condições precarizadas.
Neste paper pretende-se abordar como essas novas características do mundo do trabalho se apresentaram para os trabalhadores da imprensa, uma classe já tradicionalmente desunida e prejudicada pelo grande volume de trabalho e horários diferentes do usual. Para tanto, será necessário cruzar dados de pesquisas já realizadas sobre as condições de trabalho dos jornalistas com conceitos relativos à categoria trabalho sob a ótica de Ricardo Antunes (2002).
Breve histórico da classe trabalhadora na imprensa brasileira
As transformações nas relações de trabalho trazidas pelo toyotismo começaram a ser notadas nos países com capitalismo desenvolvido ainda nas décadas de 60 e 70. No Brasil, seus impactos começam a ser observados apenas no final dos anos de 1980 nas mais diversas categorias de trabalhadores.
O processo não foi diferente nas redações dos principais jornais brasileiros. Nos primórdios do surgimento da imprensa no país não se tinha delineada uma classe jornalística. Isso porque as redações dos jornais pioneiros no Brasil pouco teriam em comum com as redações dos grandes jornais do século 20, publicados em base industrial. Os periódicos do século 19 tinham por objetivo a circulação de ideias políticas a serviço de determinados grupos e não o lucro, como se daria mais tarde. Além disso, não havia a necessidade de uma elaborada divisão do trabalho na redação, a maioria dos jornalistas tinha também outras ocupações profissionais (BURKHARDT, 2006, p. 44).
Foi apenas nos primeiros anos da República que a organização dos jornais, enquanto empresas, tornou-se aparente. No entanto, a transição para um novo padrão de imprensa consolidou-se nos anos cinquenta do século 20, acompanhando o acelerado processo de industrialização daquela década. Esse novo padrão implicava em maior investimento de capital, tornando-se uma atividade cara, acessível a poucos empresários. A concentração impôs novas formas de fazer jornal. A velha oficina de um grande jornal parece-se cada vez mais com uma fábrica (BURKHARDT, 2006, p. 45-46).
Nesse contexto, surge a mais importante regulamentação para a categoria dos jornalistas, o Decreto-Lei nº 972, que regulamentou a profissão de jornalista, identifica nada menos que 16 diferentes funções desempenhadas por jornalistas profissionais. O decreto-lei estabeleceu ainda condições para o exercício da profissão de jornalista, como a fixação da jornada de trabalho em cinco horas diárias.
“A regulamentação profissional impôs um padrão contratual predominante às relações de trabalho na imprensa brasileira. O jornalista passou, a partir de então, a ter sua jornada de trabalho regulada, com salário mensal fixado em acordos coletivos e folgas semanais adequadas ás peculiaridades dos jornais brasileiros. Em quase tudo essa situação diferia da que existia antes, nos primórdios da organização da imprensa no Brasil” (BURKHARDT, 2006, p.49).
A relativa organização do trabalho do jornalista, no entanto, durou pouco, se é que se pode dizer que um dia foi aplicada em sua totalidade. Muitos profissionais simplesmente dobravam a jornada de trabalho por conta dos baixos salários, ou mesmo prolongam a jornada nos mesmos veículos para complementar a renda, ainda que isso fosse tecnicamente ilegal.
A concentração dos postos de trabalho nas mãos de poucas e grandes companhias de comunicação passa a limitar a oferta de emprego para jornalistas e a dificultar a pressão da classe por melhores condições de trabalho. A modernização das redações fez diminuírem o número de trabalhadores produzindo o mesmo conteúdo, com a supressão de funções como as de redator, revisor e copydesk, que passaram a ser exercidas pelos mesmos repórteres e editores de forma cumulada com suas antigas funções.
A partir dos anos 90, um novo tipo de jornalismo, chamado de free-lancer veio a agravar ainda mais a situação posta. O surgimento desse novo jornalista deu-se em um contexto de profundas mudanças sociais e econômica no país, quando se consolidou no Brasil o modelo de reestruturação produtiva já adotado nos países de capitalismo avançado havia duas décadas. O free-lancer de agora se assemelha, portanto, mais do que seus predecessores, ao trabalhador flexível dos novos tempos (BURKHARDT, 2006, p.50).
Burkhardt, 2006, destaca alguns pontos que contribuíram para o surgimento dessa nova forma de trabalho dentro da categoria dos jornalistas:
“(…) Os poucos autores que se ocuparam do tema concordam em afirmar que algumas tendências podem ter contribuído para a difusão de um novo padrão contratual: a) a já mencionada tendência de concentração, com a formação de grandes empresas no setor; b) aumento da jornada de trabalho; c) extinção de funções tradicionais na “linha de produção” dos grandes jornais; d) introdução de novas tecnologias; e) queda do nível salarial; f) demissões em massa e progressiva redução do pessoal contratado formalmente” (BURKHARDT, 2006, p.51).
Como apontado pelo autor, uma das tendências que mais afeta as condições de trabalho dos jornalistas nas últimas décadas é o desenvolvimento acelerado das novas tecnologias. A mudança não se restringiu, como poderia se pensar, aos meios eletrônicos, mas afetou diretamente os jornalistas empregados em jornais impressos, que passaram a se dedicar também aos seus portais de informação digitais.
Sylvia Moretzohn, 2002, também salienta o fato de que o aparecimento da internet teve como consequência a sobrecarga de trabalho para os jornalistas de jornais impressos que desenvolveram portais noticiosos. Os serviços online são em sua maioria operados pelas mesmas pessoas que já trabalhavam na redação do jornal impresso.
Assim, além das multitarefas acumuladas pela concentração do trabalho e o desaparecimento de funções jornalísticas, o profissional precisa também ser especialista em novos processos digitais, incorporando as novas tarefas a seu cotidiano. Este fenômeno tem sido descrito como o aparecimento do “jornalista multimídia”, que atua simultaneamente em veículos diferentes: jornal impresso, rádio, TV, internet.
A lógica é simples: quantos mais profissionais acumulam funções múltiplas, menos postos de trabalho são abertos no mercado. Como conclui Burkhardt (2006):
“[…] O novo contexto do trabalho jornalístico caracteriza-se, pelo que foi dito, por elevados níveis de desemprego, na medida da redução do número de profissionais empregados, salários em queda, sobrecarga de trabalho e redefinição da própria atividade do jornalista. Podem-se resumir essas tendências em uma expressão: desregulamentação do trabalho. Esta, por sua vez, tem sido empregada com frequência como um sinônimo da palavra de ordem do momento: flexibilidade” (BURKHARDT, 2006, p.54).
No cenário atual a desregulamentação ainda foi completa com a derrubada do Decreto-Lei nº 972, também conhecido como Lei de Imprensa, pelo Supremo Tribunal Federal em 2009. De acordo com os ministros, a legislação podia ser considerada antidemocrática por ter sido elaborada durante o período da ditadura militar. Por outro lado, no entanto, a categoria dos jornalistas tornou-se ainda mais desprotegida com a desregulamentação de alguns de seus direitos, além da queda do diploma para o exercício da profissão que permite a contratação de mão-de-obra mais barata e muitas vezes desqualificada para as funções da empresa jornalística.
Desregulamentação, trabalho flexível e o fim das estratégias coletivas no cotidiano dos jornalistas
Como visto no capítulo anterior, a trajetória histórica da classe trabalhadora dos veículos de mídia se confunde com o processo de transformação no mundo do trabalho no Brasil. Assim, a desregulamentação dos direitos trabalhistas e o aparecimento do trabalho flexível atingiram diretamente os jornalistas.
A flexibilização do trabalho nas redações jornalísticas não é exatamente uma ruptura com um paradigma antigo, mas mais uma etapa de um processo contínuo, integrado à lógica do capital, que modifica modos de se fazer jornais, tornando o empreendimento cada vez mais lucrativo, ao mesmo tempo em que enfraquece a resistência dos trabalhadores da imprensa.
Nota-se nas pesquisas estudadas que a competição pelo emprego entre jornalistas – característica principal do atual período de neoliberalismo econômico – e o abandono das estratégias coletivas acabaram por determinar um novo ethos de individualismo extremado, o qual, longe de assegurar uma inserção profissional mais adequada, contribui para agravar mais o problema.
“Os sindicatos de jornalistas e os próprios trabalhadores flexíveis veem com perplexidade a nova transição da imprensa brasileira. As velhas formas de resistência coletiva já não parecem responder adequadamente aos desafios impostos pela flexibilização e pela perda das expectativas a longo prazo. As alternativas individuais, porém, não parecem viáveis como meio de resistência à precarização do trabalho. A concentração da imprensa – concentração de poder político e de poder econômico – aprofunda-se ainda mais, deste modo, a partir das assimetrias de poder geradas no próprio ambiente de trabalho nas redações” (BURKHARDT, 2006, p.110).
A estratégia de luta classista, que marcou o sindicalismo dos anos oitenta, perdeu força na década seguinte, sob o influxo de um novo modelo de acumulação capitalista e da orientação neoliberal das políticas do Estado brasileiro. A chamada crise do sindicalismo no Brasil consistiu na dificuldade de adaptação dos sindicatos aos novos tempos de acumulação flexível, resultando na perda de representatividade e na queda das taxas de filiação. Esse resultado foi fortemente sentido entre os jornalistas que já não acreditam que o sindicato possa representar seus interesses enquanto indivíduos.
Na pesquisa com jornalistas realizada por Heloani, 2003, intitulada “Mudanças no mundo do trabalho e impactos na qualidade de vida do jornalista”, foi verificado que a vida pessoal do profissional também é geralmente precária, com falta de relacionamento familiar por conta das excessivas jornadas de trabalho e vínculos afetivos que se desfazem rapidamente.
Eles trabalham em quase todos os finais de semana, mas, em compensação, resistem bem ao estresse. Dedicam-se, inclusive, com paixão à profissão e nutrem por ela uma relação de amor e ódio. Nas redações, o ritmo de trabalho a que se submetem é estafante, com jornadas de doze horas (às vezes até mais), estando expostos a assédio moral, sexual e ao rígido controle social. É possível afirmar que jornalistas recebem salários não condizentes com o grau de exigência que lhes é imposto pelas chefias. Enfrentam um ambiente altamente competitivo, condições de trabalho precárias em muitas redações, além de falta de tempo para estudo.
“A maior parte desses profissionais admitiu a possibilidade de tornarem-se descartáveis e consideram ‘natural’ a contínua mudança de emprego. Como se isto não bastasse ficou claro para nós que muitos dos sujeitos julgavam difícil conciliar trabalho e vida pessoal (…).
O mais preocupante na análise das entrevistas é um claro indicador de que as práticas organizacionais trouxeram, como efeito colateral danoso, não apenas a corrosão de certos valores básicos, mas, principalmente, a cisão da ideia de qualidade de vida e excelência no trabalho. Assim, a felicidade é sempre postergada e, em decorrência disso, também o tempo para a família, para os filhos, para o lazer e para o amor. Alguns chegam a alegar que fora do ambiente de trabalhoso fazem o imprescindível, faltando tempo para namorar” (HELOANI, 2003, 78-79).
Muitos dos entrevistados, na época da pesquisa, não tinham suficiente consciência da importância social de seu trabalho. Alguns também eram individualistas em excesso, além de parecerem influenciados pela imagem glamorosa que a sociedade possui em relação à profissão. Verificou-se que ocorre uma deterioração da qualidade de vida do jornalista, cuja profissão naturalizou-se e banalizou-se, fato compreendido como extremamente grave, tanto do ponto de vista coletivo, como do individual.
Conclusão
Os diversos autores trazidos para construção dessa breve abordagem do trabalho flexível no contexto dos veículos de imprensa são unânimes em afirmar que a categoria dos jornalistas foi fortemente influenciada pelas transformações ocorridas no mundo do trabalho nas últimas décadas. A desregulamentação e flexibilização do trabalho atingiu diretamente as redações que foram reestruturadas durante a década de 1990 para reduzir o número de profissionais responsáveis pela elaboração do mesmo produto entregue anteriormente, de forma a maximizar os lucros.
Os principais fatores que contribuem para esse cenário são: a tendência de concentração, com o monopólio de grandes empresas no setor; o aumento da jornada de trabalho; a extinção de funções tradicionais na “linha de produção” dos grandes jornais; a introdução de novas tecnologias; a queda do nível salarial; as demissões em massa; a progressiva redução do pessoal contratado formalmente.
Além disso, contribui para a situação atual, a desmobilização dos jornalistas em prol de uma causa coletiva. A competitividade exacerbada que se instaurou, em grande parte devido a escassez de vagas de trabalho formal, não permite que a categoria se una e ofereça resistência às contínuas desvalorizações que vem sofrendo.
Como resultado desse contexto, vimos que a vida pessoal do jornalista também é afetada pela precarização do trabalho da categoria.
Referências bibliográficas
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez Editora, 2002.
BURKHARDT, Fabiano. “Jornalistas free-lancers: Trabalho precário na grande imprensa da Região Metropolitana de Porto Alegre”. Dissertação (mestrado em Sociologia). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal do Rio Grande do Sul: Porto Alegre, 2006.
HELOANI, José Roberto. Mudanças no mundo do trabalho e impactos na qualidade de vida do jornalista. São Paulo: Núcleo de Pesquisas e Publicações da Fundação Getúlio Vargas, 2003.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política – Livro Primeiro. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
MORETZSOHN, Sylvia. Jornalismo em “tempo real”: o fetiche da velocidade. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
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Elen Sallaberry Pinto é jornalista