Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A Aids e as mágicas

1º de dezembro é o Dia Internacional de Luta Contra a Aids, data proposta em 1987 pela Organização Mundial da Saúde para a reflexão global sobre o importante tema. No Brasil, país que pode se orgulhar de possuir uma das melhores políticas públicas de prevenção e tratamento dessa moléstia de todo o planeta, apesar de tudo, também aconteceu o desejado ecoar de lembranças, conselhos, atualizações e opiniões sobre o dia. Desde editoriais nos vários jornais até matérias na televisão, acredito que a data não deve ter passado em branco.

Um dos bons exemplos de interação entre o jornalismo sério e profissionais especializados é o tradicional convite que a Folha de S.Paulo faz para que gente da área escreva em sua pagina três. Um dos dois bons artigos foi uma rápida passagem histórica e considerações várias sobre a Aids escrito pelos prezados e conceituados colegas e amigos Vicente Amato Neto e Jacyr Pasternak, incontestes autoridades em infectologia de nossa nação e escribas de mão cheia, mesmo quando o assunto não é medicina ou saúde (Jacyr já escreveu interessantes histórias médico-detetivescas e o professor Amato surpreendeu com saborosas memórias seletivas, influenciado pelo seu falecido amigo, o teatrólogo Plínio Marcos).

O artigo dos dois médicos paulistanos foi das poucas coisas que li, além de matéria nesse mês da Radis, publicação mensal da Fundação Oswaldo Cruz e alguma coisa esparsa ali e acolá a respeito de uma das grandes ignomínias em termos de políticas de saúde de nossa era, no caso a adotada pela África do Sul nos últimos anos. Denominada gentilmente como folclórica por alguns, a ex-ministra da Saúde do país mais rico do continente aqui ao lado comandou ações relativas ao HIV que passeavam do não reconhecimento da existência do vírus a recomendações de uso de remédios naturais, como limão e beterraba – aliás, ficou mais conhecida no mundo todo como dra. Beterraba a senhora, que acabou por ser defenestrada juntamente com o presidente – esse era reclamo internacional, e essas pessoas enodoaram o nome do partido do ex-presidente Nelson Mandela, símbolo de tantas coisas.

Aumento exponencial de casos

Essas autoridades sul-africanas não estavam respeitando a cultura popular ou coisa que o valha, tampouco denunciando laboratórios farmacêuticos que estariam a locupletar-se com a doença, mas sim, participando ativamente de algo mais próximo a um genocídio.

Eu estava ainda cursando a residência médica quando apareceram os primeiros casos de Aids: desconcertante e pouco para descrever uma doença desconhecida, de causa idem, que ceifava rapidamente a vida de um número assustadoramente crescente de pessoas. E mesmo que até em trabalhos científicos desses primeiros tempos a doença fosse descrita como a peste gay, nem o mais preconceituoso e frio dos médicos poderia ficar insensível frente à tragédia. Mas logo se descobre ser a mesma obra de um retrovírus, o famoso HIV e as coisas começam a caminhar. Cura ainda não há, tampouco vacina, mas os cuidados de prevenção e mesmo os métodos laboratoriais e terapêuticos hoje disponíveis,apesar de apenas tentarem negativar a carga viral, prolongaram em muito a vida dos portadores da moléstia, assim como melhoraram sua qualidade de vida.

Claro que é uma doença prato cheio para as teorias de conspiração. Quantos ainda hoje não bradam que o HIV não existe, é uma invenção de algum estratagema maléfico dos governos ocidentais, EUA à frente, em conluio com empresas farmacêuticas? Não apenas os tais sul-africanos, mas ponteiam aqui e ali médicos que assinam em baixo de tais teorias, inclusive entre nós, para apregoar as supostas maravilhas de algum método de tratamento alternativo. A dra. Beterraba certamente esparramou-se em plantação.

Cabe, então, aproveitar o dia internacional de combate à séria doença para algumas considerações. Os eventualmente simpáticos conselhos da ministra-Beterraba levaram a algum bem? Certamente, a queda do governo do qual a mesma participava poderia ser incluído nessa categoria, mas à custa de que? Do aumento exponencial dos casos de Aids na África do Sul, que se tornou uma das regiões mais afetadas do mundo. Será que além da perda de seus cargos não caberia algum outro tipo de punição a essa gente? Desconheço as leis sul-africanas, mas talvez haja onde enquadrar essa funérea trupe.

Dengue e homeopatia

Mas, além desse caso mais conhecido, e os restantes descrentes no HIV? Será que fariam a suma experiência científica de tomar um chá de limão e procurar se infectar de todas as maneiras para provar sua tese? É claro que a resposta é a mesma de procurar saber se Osama bin Laden também se vai explodir juntamente com aqueles que sucumbiram à cantilena tafquirista.

Olhando de modo mais frio, talvez gélido mesmo, o que as autoridades sanitárias da África do Sul fizeram foi desconsiderar qualquer método científico que autorizasse alguém a não acreditar na existência do vírus e/ou da doença, ou por outro lado que comprovasse a eficácia terapêutica, por exemplo, da ora famosa beterraba. Em outras palavras, não há embasamento cientifico para nenhuma das duas coisas.

Não é à toa que esse exemplo, tecnicamente, é o mesmo da aprovação oficial da homeopatia. Não há nenhuma evidência científica de que a mesma seja útil, mas é especialidade médica no Brasil e há iniciativas governamentais para expandir seu uso no SUS. Há pouco tempo, quase dois anos, foi usado suposto medicamento homeopático para combater a dengue em São José do Rio Preto e região, sem prescrição médica, adotado pela Secretaria municipal da Saúde daquela cidade paulista e de outras na região. Em pouco tempo muita gente começou a tomar o tal remédio para prevenir-se se da doença, abandonando os tão importantes cuidados com o mosquito, água parada etc. Resultados benéficos, comparáveis aos sul-africanos: na cidade de Bebedouro, na região de Rio Preto, quase 90% da população adquiriu dengue…

Pesquisa e ciência

Antes que alguém lance uma tocha em flamas, esclareço: desconheço homeopatas que não acreditem no HIV ou que queiram tratar Aids apenas com seus medicamentos. Da mesma maneira, não há e nem houve nenhum incentivo governamental ao uso da homeopatia na Aids. Não estou acusando os que praticam ou defendem a homeopatia de similitude homicida com a ministra africana – lembro apenas que, embora não se tenha chegado a tanto, o princípio é o mesmo. Se as autoridades sanitárias e conselhos regulamentadores da profissão médica podem aceitar a homeopatia, por inferência deveriam fazer o mesmo com beterraba e limão para Aids. É o mesmo raciocínio.

Deixando essa questão ilógica para os eventuais leitores se debruçarem, aproveito para mais uma vez lembrar a todos: a prevenção ainda é a melhor arma contra a Aids e a ciência já evoluiu muito, de modo impressionante para quem vivenciou de alguma maneira essa questão, embora ainda esteja distante da vacina e da cura definitiva. Mas o caminho para as mesmas está na pesquisa séria e ética e na ciência, e não em opiniões de magos e curandeiros, pior ainda se estiverem à frente de um governo.

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Médico, São Paulo, SP