Na essência, todo jornalismo é investigativo, uma vez que uma de suas funções é a de fiscalizar as ações do poder público. Mas há um tipo de prática jornalística que, por suas características de apuração dos fatos e de primazia na tentativa de desvendar histórias de corrupção em relação ao próprio Estado (Ministério Público, polícia, etc.), dá-se o nome de jornalismo investigativo. A denominação nos remete de imediato à idéia do repórter-detetive, aquele que corre atrás de pistas para comprovar boatos sobre desvios legais ou morais de instituições ou pessoas com certa relevância no meio social. Essa associação está longe de ser um acaso. E a literatura tem aí um papel importante. Não é somente o tratamento estético-lírico da linguagem e o emprego de personagens e determinados focos narrativos que o jornalismo, muitas vezes, empresta do discurso literário. Alguns elementos narrativos típicos da literatura policial também são constantemente empregados no discurso jornalístico, especialmente naquele de caráter investigativo.
Para Waisbord [Silvio Waisbord, Contando histórias de corrupção: narrativa de telenovela e moralidade populista no caso Collorgate, p. 96], as narrativas jornalísticas estão impregnadas da ‘arte de contar histórias’. A esta característica, o autor denomina exposé (palavra francesa que designa um relato pelo qual se expõe um conjunto de fatos, de idéias; no caso, indicaria uma narrativa). Assim, embora o jornalismo de caráter investigativo quase sempre siga ao pé da letra os desígnios da linguagem jornalística pregada pelos manuais de redação, em geral não se utilizando da linguagem poética ou de qualquer outro emprego estético da linguagem, ele não deixa de ‘contar histórias’, pois ‘os repórteres não escrevem apenas fatos: para dar sentido a esses eventos esparsos, eles os acondicionam em narrativas atemporais’.
Mas é claro que o exposé não é exclusivo do gênero jornalístico, que o empresta sobretudo das melhores narrativas da literatura policial, um dos gêneros literários mais populares em todo o mundo. Juntando fatos esparsos numa mesma trama, o jornalista torna o mundo inteligível, pois correlaciona o acontecimento novo com velhas histórias. Este é o caminho de sua legitimação enquanto profissional. No caso da imprensa investigativa, as narrativas da literatura policial são introjetadas e inconscientemente assimiladas pelo jornalista.
O jornalista, raramente um poeta inventivo, usualmente se apropria da cultura que o circula para reproduzir repetidamente as narrativas eternas. As narrativas sobre o pobre que vira rico, ou as de estilo kafkiano, ou as do gênero Cinderela estão entre os lugares-comuns de enquadramentos utilizados para contar histórias. [Silvio Waisbord, Contando histórias de corrupção: narrativa de telenovela e moralidade populista no caso Collorgate, p. 96]
Atente-se para o termo ‘enquadramento’ empregado por Waisbord. Ele indica não um método analítico, saindo do estudo puramente da ‘forma’ – entendida como o tratamento lírico e poético com a linguagem – mas sim um plano de ‘conteúdo’, de uma ‘técnica’ fora do âmbito puramente lingüístico da palavra e da frase. Para Barthes [Roland Barthes et al. Análise estrutural da narrativa], trata-se do abandono da frase para o emprego do discurso, entendido como ‘uma grande frase’, algo superior a esta, embora a narrativa não se reduza somente a uma soma de frases. Complementando o discurso, pois, estão a frase, de um lado, e a técnica, as regras comuns a um tipo de narrativa (no caso, a narrativa policial), de outro.
Visão da empresa
Para a análise dessa técnica na narrativa jornalística, é preciso estabelecer determinados níveis analíticos que, por sua vez, formam hierarquias. Na teoria dos níveis, existem dois tipos de relações [Roland Barthes et al. Análise estrutural da narrativa]: ‘distribucionais’, quando as relações situam-se num mesmo nível; e ‘integrativas’, quando elas se colocam de um a outro nível. Com o intuito de analisar como algumas técnicas da narrativa policial são apropriadas pelo discurso jornalístico, será aplicado um método híbrido, de diferentes níveis, onde serão encontradas algumas dessas técnicas aliadas a certos elementos da análise estrutural da narrativa evidenciados por Barthes: se as primeiras apontam para as evidências óbvias da hipótese aqui proposta, a teoria barthesiana indica como estas se encaixam no interior do discurso.
Waisbord sustenta que as reportagens investigativas são construídas geralmente como narrativas detetivescas, em que o repórter age como um indivíduo solitário, lutando contra forças do mal geralmente mais poderosas, e, ao mesmo tempo, como um detetive que junta as pistas para desvendar um crime. ‘A posição narrativa do repórter investigativo é um misto de Davi lutando contra Golias e de Hércules Poirot’.
Isso leva a refletir sobre a preponderância da personagem nas reportagens investigativas, do mesmo modo como ocorre, por exemplo, com a personagem James Bond nas narrativas de Ian Fleming. Em alguns casos, o próprio repórter se assume como personagem explícito da narrativa; em outros, ele é o que Barthes chama de ‘doador da narrativa’, em que o discurso se transmite por um personagem que é a perfeita expressão de um eu que lhe é exterior: o próprio autor está por trás de sua ‘marionete’. O narrador, portanto, não é personagem da narrativa, mas nele toma parte indiretamente, seja por meio de impressões e opiniões, seja por meio de elementos lingüísticos que o identifiquem como um ser ativo no discurso.
Este último recurso é bastante empregado na imprensa sul-americana [Silvio Waisbord, Contando histórias de corrupção: narrativa de telenovela e moralidade populista no caso Collorgate], em que o ‘eu’ do repórter é substituído pelo nome do veículo ou pelo emprego da primeira pessoa do plural. Enquanto na imprensa norte-americana o fascínio pelo individualismo e pelo ‘detetive como herói individual’, características típicas daquela cultura, estão sempre presentes na imprensa sul-americana estes elementos têm menos força, pois a figura do herói é substituída pela visão da própria empresa noticiosa como a verdadeira protagonista. No entanto, para fins de análise, consideraram-se aqui as expressões ‘a Folha apurou que’, ‘o Estado telefonou para’ e outras como o próprio repórter/protagonista ‘camuflado’.
Metalinguagem
Uma outra característica das reportagens investigativas é o fato de serem ‘notícias sobre desordens morais’ que dão ao jornalismo potencial para agir como agente moral. Para Waisbord [Idem], os exposés são, basicamente, narrativas morais, pois sempre diferenciam o que é certo do que é errado, valorando um e outro.
Esse moralismo advém das próprias narrativas literárias do gênero policial, onde a divisão comum entre heróis e vilões, vítimas e bandidos, esconde um componente moral. Uma reportagem investigativa, então, é moralista sob dois aspectos: são notícias sobre desvios éticos e que tem a forma tradicional de uma narrativa policial.
Podemos também analisar esse moralismo sob o prisma mitológico barthesiano, já que ‘o mito não se define pelo objeto de sua mensagem, mas pela maneira como a profere’ [Roland Barthes. Mitologias, p. 131]. No mito, assim como no signo, pode-se encontrar a conhecida forma tridimensional (significante, significado e signo) [De acordo com Barthes, ‘(…) para Saussure, que trabalhou com um sistema semiológico específico, mas metodologicamente exemplar – a língua – o significado é o conceito, o significante é a imagem acústica (de ordem psíquica), e a relação entre o conceito e a imagem é o signo (a palavra, por exemplo), entidade concreta.’ (1985, p. 135) Posteriormente, Saussure irá denominar o conceito de significado e a imagem acústica de significante.] Mas a particularidade do mito é utilizar-se deste sistema semiológico já estabelecido para construir sua própria cadeia semiológica, pois ele é já um segundo sistema semiológico.
Assim, o signo da primeira cadeia transforma-se em mero significante, simples matéria prima (embora não plenamente vazia de significado como o significante da primeira cadeia, pois já contém um esboço de significado: ‘Cremos que o sentido vai morrer, mas é uma morte suspensa: o sentido perde o seu valor, mas conserva a vida, que vai alimentar a forma do mito’) da segunda cadeia semiológica, propriamente mítica. O mito constrói-se como uma espécie de metalinguagem da linguagem já existente [Idem, pp. 136-137].
Em andamento
Na narrativa jornalística, o mito apropria-se do próprio discurso narrativo (a corrupção, o crime, o roubo, a impunidade) para fazê-lo significante (forma) de um novo sistema semiológico, onde o sentido primeiro do discurso é alterado para aí ser acrescentado o significado do mito propriamente: o juízo de valor, a condenação, a interpretação são a resposta do mito ao discurso semiológico ‘simples’, objetivo. Para Barthes, o conceito mítico deforma o sentido do signo inicial, o que somente é possível porque o mito já é constituído sob as bases de um signo lingüístico. O signo daí resultante, impregnado ideologicamente (para Barthes, todo signo é em parte semiológico, em parte ideológico), é o moralismo, o discurso ético. Signos eminentemente míticos.
O suspense é uma das características mais marcantes da narrativa policial empregadas pelo jornalismo investigativo. Ele é criado no texto jornalístico por dois caminhos: pela fragmentação da história em narrativas esparsas, sugerindo uma continuidade do assunto que gera o suspense ou pelo arranjo dos elementos textuais no interior da própria narrativa.
O primeiro caminho apontado sugere um discurso fragmentado, onde o repórter/detetive comunica os fatos ao leitor numa seqüência de vários dias, de modo que somente depois de decorrido determinado tempo o leitor possa tirar suas próprias conclusões do fato investigado. Constitui-se assim uma ‘história em andamento’, uma situação de informações que vão se completando aos poucos, e onde somente no final é que se forma uma compreensão abrangente dos fatos. Um elemento típico da narrativa policial de ficção. Na notícia de um crime, por exemplo, é pouco provável que o narrador aponte culpados logo na primeira reportagem (no máximo, ele apontaria suspeitos). Somente após alguns dias, intercalados de outros textos informando basicamente sobre a sua própria investigação e a da polícia, é que se explicitam os suspeitos na narrativa.
Uma perturbação
O segundo caminho indica o suspense no interior de um único texto, através dos arranjos, nele, do que Barthes [Roland Barthes et al. Análise estrutural da narrativa] denomina ‘funções’ [Barthes divide o conceito genérico de ‘unidades funcionais’ em ‘funções’ e ‘índices’ que, por sua vez, são divididos, respectivamente, em ‘núcleos’ e ‘catálises’, e em ‘índices’ propriamente ditos e ‘informações’. No entanto, não vemos necessidade de adentrarmos nas especificações barthesianas, pois entendemos que o conceito gernérico de função basta-nos para os nossos objetivos analíticos], um ‘segmento da história que se apresenta como o termo de uma correlação’, o fragmento de narrativa que ‘semeia’ um outro fragmento de amadurecerá mais tarde. A função é ‘o que quer dizer’, e pode ter diferentes interpretações (não excludentes, mas somatórias). Barthes dá um exemplo que remete diretamente à literatura policial: quando, em Goldfinger se diz que ‘James Bond viu um homem de cerca de cinqüenta anos’, a frase contém duas funções de intensidades diferentes: por um lado a idade da personagem faz parte de um certo retrato cuja pertinência para a história como um todo é um pouco difusa e, por outro lado, o significado mais claro e imediato da frase é que James Bond não conhece o seu interlocutor (‘cerca de’), o que propõe uma certa ameaça para ele e também a sua obrigação de cooptar informação.
As funções podem ser ‘espalhadas’ no texto de acordo com o seu grau de importância para a história contada: funções relevantes podem ser intercaladas de funções não relevantes ou não capitais, que seriam espécies de ‘fugas’. Barthes compara uma ação lógica real com a relação lógica ‘freqüentemente longínqua’ da narrativa: segundo o costume, num encontro entre duas pessoas, é muito provável que, se uma delas se sente, vá convidar a outra a fazer o mesmo. A única diferença é que na vida estes dois atos são, na maioria das vezes, contíguos, enquanto na narrativa eles podem ser intercalados por inserções de naturezas completamente diversas. A inclusão de tais ‘afastamentos’ (ou ‘distorções’, ‘expansões’) no texto é típica de toda narrativa, em especial a narrativa de suspense:
O ‘suspense’ não é evidentemente mais que uma forma privilegiada, ou, caso se prefira, exasperada, da distorção: de um lado mantendo uma seqüência aberta (por procedimentos enfáticos de retardamento ou adiantamento), reforça o contacto com o leitor (ouvinte), detém uma função manifestamente fática; e por outro lado, oferece-lhe a ameaça de uma seqüência inacabada, de um paradigma aberto (…), isto é, uma perturbação lógica, e é esta perturbação que é consumida com angústia e prazer (enquanto é sempre finalmente reparada); o ‘suspense’ é pois um jogo com a estrutura, destinado, caso se possa dizer, a arriscá-la e a glorificá-la… [Roland Barthes et al. Análise estrutural da narrativa, pp. 55-56]
Um recurso
O discurso da reportagem investigativa é freqüentemente envolvido por uma linguagem irônica. A ironia é utilizada, muitas vezes, para mascarar o moralismo do discurso, já que a ironia serve como retórica para evitar julgamentos morais através do uso de uma linguagem desprovida de valores. Assim, o jornalista se torna um agente cínico que despreza e, ao mesmo tempo, simula a promessa de justiça.
Por outro lado, a ironia do exposé jornalístico serve para revelar o que é ilegal em um país – como é o caso do Brasil – com deficiências muito grandes no aparelho judicial estatal. É natural que o repórter freqüentemente zombe dessa falha no Estado brasileiro em promover justiça de modo eficaz. A ironia torna-se o meio mais adequado – e menos arriscado, em muitos casos – de reivindicação moral em sociedades corruptas.
No livro O crime de inverno (1939), o escritor S. S. Van Dine formulou algumas regras da narrativa policial em 20 itens, entre os quais ‘o detetive da ‘narrativa-problema’ teria que caminhar lado a lado do leitor, ou seja, não lhe ocultar indícios para a solução do crime (…) pois ambos devem ter possibilidades iguais de resolver o problema’ [Larousse Cultural. Grande enciclopédia, p. 4.671]. Considera-se que o próprio conceito de objetividade no jornalismo de certa forma obriga o autor a levar o leitor sempre em consideração.
A reportagem ‘Bruce Wayne, o Batman, comprou um carro roubado em São Paulo’, da revista Quatro Rodas de maio de 1970, narra um fato curioso: a compra, por ‘Batman’, de um carro oficialmente roubado poucos dias antes. Na realidade, Bruce Wayne, o ‘Batman’, é o nome fictício usado pelo repórter Roberto Benevides ao longo da matéria. Como ‘repórter investigativo’, Benevides utiliza-se de um recurso muito comum nas narrativas detetivescas ficcionais: usar nomes falsos e esconder, assim, sua verdadeira condição – no caso, a de jornalista.
O mito
Embora não utilize em nenhum momento a primeira pessoa (o autor coloca-se, como é comum no discurso jornalístico brasileiro, na primeira pessoa do plural), percebe-se que o narrador-personagem é o grande centro da narrativa: suas peripécias são capitais para o desenrolar da trama. Inclusive seus diálogos são transcritos diretamente, relatando ao leitor toda sua investigação pari passu:
– Olhe, companheiro, este carro custa oitocentos cruzeiros novos. O preço que o jornal publicou foi engano, já mandei corrigir para a edição de amanhã.
– Nesse caso não interessa.
– Espere aí, rapaz. Posso deixar o Chevrolet por setecentos cruzeiros novos.
– Não serve. Precisamos desse carro para destruir numa cena de filme e o máximo que podemos pagar é seiscentos cruzeiros novos. Essa é a verba liberada pela produção.
– Está bem, seiscentos cruzeiros novos. [Roberto Benevides em Igor Fuser. A arte da reportagem, p. 196]
Além disso, note-se que, em nenhum momento da narrativa, o repórter/detetive/investigador deixa de ser o centro da narrativa. Sem ele, a narrativa perderia quaisquer fundamentos, qualquer razão.
Também se encontra o moralismo na narrativa, no momento em que o autor, logo no início do texto, adquire um discurso moral na qual reprova o fato que ele mesmo narra: ‘Vender um carro ao Homem-Morcego é uma boa piada, mas aqui ela mostra somente o quanto é fácil vender um carro em São Paulo…’ [Idem, p. 196]
Eis um típico caso em que, segundo Barthes, parte-se de um significante vazio e deixa-se preencher seu conteúdo naturalmente, resultando em uma forma mitológica simples: o repórter parte de um conceito (a incompetência policial, a irresponsabilidade da burocracia) e procura, ao longo da narrativa, uma forma a esse conteúdo (ou um significante ao significado), um caso específico que o demonstre, que o prove: a venda de um carro roubado a ‘Batman’. Ao final, o repórter não esconde sua satisfação por construir, perfeitamente, seu mito: carros roubados podem ser facilmente adquiridos em São Paulo. Corrobora-se, assim, o mito da burocracia e da incompetência dos órgãos oficiais do Estado responsáveis pelo trânsito.
Expectativa
Uma conseqüência direta do moralismo é a zombaria na ineficiência do Estado ante a situação irregular e ilegal. Já o título possui boa dose de ironia, ao afirmar que ‘Batman’ comprou um carro roubado. Logo na primeira frase do texto, Benevides revela sua intenção irônica: ‘Vender um carro roubado ao Homem-Morcego é uma boa piada…’. A ironia está presente ao longo de praticamente toda a narrativa, principalmente pelo fato de o autor utilizar-se do nome de Bruce Wayne, personagem fictício de história em quadrinhos, para comprar o carro roubado. A função da falsa identidade é justamente reforçar o argumento do discurso (o mito produzido): compram-se carros roubados com absoluta facilidade em São Paulo. O último parágrafo da narrativa é quando a ironia chega ao ápice:
‘Quinta-feira, 19: de manhã, as placas foram entregues ao despachante e à tarde recebemos o certificado número 964.330, expedido em nome de Bruce Wayne, residente à avenida São João, 613, apartamento 53. Na verdade, o endereço de Bruce é outro: ele mora nas revistas em quadrinhos e nos seriados de televisão para crianças, onde dirige o Batmóvel, um carango muito mais quente do que o velho Chevrolet 1939 que a polícia anda procurando.’ [Idem, p. 199]
O suspense está também presente na narrativa de Benevides: embora o autor revele, desde os dois parágrafos iniciais do texto, o resultado de seus propósitos, algumas ‘funções’ encontram-se distendidas ao longo do texto, gerando, senão o suspense, a expectativa. Assim, o fato de o guarda não dar atenção ao velho Chevrolet em situação irregular (‘O guarda, entretanto, limitou-se a brincar um pouco e a indicar um borracheiro’) precede, algumas linhas acima, a displicência e o desinteresse de outro policial com o roubo do carro: ‘O escrivão, sorridente, antes de saber a idade e as condições do Chevrolet: – Então, roubaram o teu carango?’ [Idem, p. 197]
Outra ‘função’ geradora de expectativas é quando o repórter telefona para saber sobre o certificado do veículo:
Quarta-feira, 18: quando telefonamos, às 18 horas, para saber se o certificado já estava com o despachante, alguém informou que tinha havido um problema e pediu para telefonarmos mais tarde, pois o encarregado ainda não voltara do DET. Teriam descoberto a queixa de roubo do carro? Ela fora apresentada no 4º Distrito Policial, na rua Frei Caneca e, em seguida, nós mesmos levamos o ofício comunicando o fato à Delegacia de Furtos de Automóveis, no prédio do DEIC. Caberia a essa delegacia comunicar o furto às demais. Teria a DET recebido a comunicação? [Idem, p. 198]
As duas perguntas criam certa expectativa no leitor, ainda que ele já saiba a resposta através do próprio autor, no início do texto. Mesmo assim, a resposta a elas vem logo no parágrafo seguinte: como as funções estão intercaladas, o efeito de suspense perde sua força: ‘Ao telefonarmos novamente, soubemos que o problema era outro: o Departamento de Trânsito exigia que as placas do carro fossem depositadas, pois estavam vencidas desde janeiro’ [Idem, p. 198].
Silêncio
Outra técnica da narrativa policial ficcional utilizada pelo autor é o fato de nada esconder do leitor: todos os elementos necessários ao desenrolar da narrativa estão explícitos e claros no discurso. A maior evidência disso são os dois primeiros parágrafos do texto, em que, antes de entrar no enredo propriamente, o autor relata seus propósitos e o resultado de sua experiência ‘detetivesca’.
Outra reportagem com características diretas da literatura policial é a de Carlos Alberto Luppi, ‘Caso Araceli: mortes, ameaças e impunidade’, publicada na Folha de S. Paulo em novembro de 1978, sobre o caso Araceli, uma menina de oito anos e meio ‘cujo corpo foi encontrado em Vitória, no Espírito Santo, seis dias depois de ter sido raptada, seviciada, drogada e assassinada, em maio de 1973’ [Carlos Alberto Luppi em Igor Fuser. A arte da reportagem, p. 243]. Esta é uma das reportagens do autor sobre o caso.
Nela, Luppi narra, desde a época do assassinato, tanto o destino do processo contra os acusados quanto o ocorrido com os principais suspeitos nesses cinco anos. À primeira vista, pode parecer que são os suspeitos do crime os principais personagens da narrativa, mas um exame mais detalhado indica a presença constante do repórter/detetive/narrador, principalmente através de suas opiniões sobre o andamento do caso e pelo modo como pontua a narrativa, sempre a partir de seus próprios julgamentos.
Assim, embora do ponto de vista exclusivamente textual os suspeitos possam ser considerados personagens eminentes, do ponto de vista do discurso enquanto ‘aliciador’ da voz do próprio autor, segundo Barthes, notamos a sobressalência do repórter ao longo de toda a narrativa: ‘(…) como explicar o estranho silêncio dos pais de Araceli, dona Lola e senhor Gabriel Sanchez, cujos depoimentos não convencem nem mesmo uma pessoa de cultura mediana?’ [Idem, p. 244]
Estereótipo
Como já vimos, o moralismo no discurso pode ser considerado algo mitológico, um sistema semiológico forjado pela cultura ‘burguesa’ para condenar as irregularidades narradas. Nesse texto, constata-se que a presença do narrador na narrativa se dá especialmente sob o aspecto do moralismo, que serve para extravasar o sentimento de revolta do próprio autor e, conseqüentemente, do leitor. Há vários trechos da narrativa com esse viés:
As investigações feitas pelo capitão Araújo no primeiro inquérito chegam a ser ridículas. O capitão vai ao absurdo de afirmar que ‘o assassinato de Araceli deu sorte na colocação do corpo no local do achado do cadáver e no recolhimento da menor de seu caminho na saída do colégio’. (…) Pergunta-se: que espécie de policial é o capitão Araújo para não chegar a nenhuma pista sobre o assassinato com tantas provas materiais na época à sua disposição? Outra pergunta: por que o grande interesse do ex-superintendente José Gilberto Faria em dizer que as investigações do corregedor Frasson no caso Araceli são ineptas? (e elas são as únicas do caso todo) [Idem, p. 253].
É sintomático que o moralismo do discurso do autor se exerça sobretudo sob a forma de perguntas. Ao simples discurso factual, objetivo, imparcial, Luppi constrói o seu discurso mitológico, ao acrescentar ao fato o seu questionamento, a sua indagação: mas isso está certo? Deconstruindo o primeiro sistema, Luppi o refaz pela perspectiva moralista, dando ao fato um direcionamento, um sentido diverso do inicialmente proposto. O resultado é um sistema que, além de ideologicamente mitológico, é jornalisticamente ‘manipulador’ da realidade, exatamente por que se pretende interpretativo desta.
Além do moralismo, o autor também demonstra sua presença na narrativa por meio da ironia. Um caso evidente ocorre logo nos dois primeiros parágrafos do texto, em que o autor zomba da pomba branca da paz sobre o túmulo de Araceli:
Agora, o juiz vai mandar colocar sobre o túmulo de Araceli, no pobre cemitério de Carapina, esculpida em gesso, uma pomba branca da paz.
Ironicamente, entretanto, após cinco anos e seis meses de seu desaparecimento e morte – completados ontem – Araceli Cabrera Sanchez não está em paz.’ [Idem, p. 244]
Mas a ironia do autor dirige-se principalmente à inépcia, à covardia e às relações escusas da polícia local com os principais acusados do crime, todos pertencentes à alta sociedade capixaba. Este último fato serve para reforçar ainda mais o tom moralista/irônico do discurso do narrador, repetindo o estereótipo da desigualdade social.
Mistérios
Outra característica muito tradicional da literatura policial empregada por Luppi é o suspense. De um modo geral, o suspense concentra-se tanto na impunidade dos acusados quanto na ‘maldição’ que se abateu sobre alguns dos que se envolveram com o caso. Logo no início, a função-resumo da narrativa é deste modo enunciada:
Além disso, a morte de Araceli é o exemplo típico de caso em que, à impunidade dos culpados, misturam-se fatos graves de omissões policiais, destruição criminosa e roubo de provas, tráfico de influência, interesses políticos, suspeição sobre autoridades, pressões. Tentativas de suborno sobre testemunhas válidas e amedrontadas, laudos malfeitos, tentativas grosseiras de desqualificação de testemunhas convincentes, intromissão de pessoas estranhas e interessadas em esconder o crime nas investigações policiais, ameaças, mentiras, mortes de envolvidos em condições estranhas e criminosas, desaparecimento de pessoas, perseguições, tráfico de drogas, tentativas de protelar indefinidamente o processo e corrupção. [Idem, p. 244]
Todos os itens enumerados pelo autor são depois ‘homeopaticamente’ dissecados em funções mais detalhadas, ao longo de todo o texto. Com esse recurso, Luppi consegue manter a atenção do leitor fixa: o texto ganha um mistério que efetivamente ‘prende’ aquele que o lê.
Outras funções mais específicas são encontradas no texto, como quando o autor narra o acidente provocado por Dantinho, um playboy viciado em drogas acusado pela morte de Araceli. O fato de o autor revelar que Dantinho atropelou uma jovem aparentemente pobre e seu filho de pouco mais de um ano é sintomático da provável capacidade do rapaz em assassinar Araceli, fato revelado pelo autor alguns parágrafos adiante. O ‘alongamento’ entre um e outro fato (ou função) gera o suspense.
A ocasião em que o autor narra a morte de um dos envolvidos no caso é outra função geradora de suspense. A primeira delas é meramente genérica: ‘Outro envolvido no caso Araceli e que morreu assassinado é o sargento Homero, da polícia capixaba.’ Em seguida, o autor discorre sobre o grau de envolvimento do policial no caso e seu misterioso afastamento das investigações, enquanto o leitor se pergunta sobre a ocasião da morte do policial. Somente cerca de 20 linhas depois da primeira função é que Luppi revela a função-causa, a que complementa a primeira: ‘Dias depois, foi escalado para a diligência contra o bandido Boca Negra, em Vitória. Nessa diligência morreu assassinado com um tiro pelas costas quando corria atrás de Boca Negra.’ [Idem, p. 247]
Contraponto
A clareza é mais um elemento da narrativa policial ficcional empregado por Luppi: o autor não omite nenhum dado ao leitor capaz de dificultá-lo na possível solução do crime: pelo contrário, o repórter dá ao leitor todas as pistas e sugestões (nas entrelinhas ou não) necessárias para este último tirar suas próprias conclusões (embora, como já foi dito, o repórter as manipule em certos momentos).
A clareza chega ao limite quando Luppi curiosamente enumera os principais suspeitos da morte de Araceli: seu texto lembra muito as anotações de um detetive ou policial, escritas de um modo ao mesmo tempo frio e irônico. São 21 suspeitos descritos de um modo bastante inusitado para uma narrativa jornalística:
A participação das seguintes pessoas justifica maiores diligências sobre o caso:
1 – Dante de Barros Michelini – indiciado. Acompanhou as investigações iniciais ilegalmente, destruindo provas porque seu filho Dantinho estava envolvido no assassinato. Dante alegou que ajudou a Polícia ‘colocando à disposição veículos, materiais e gasolina’. Que polícia é essa – a do Espírito Santo – que nem sequer tem gasolina própria?’ [Idem, p. 254]
Por tratar de fatos muitas vezes aparentemente não correlatos, tramas complexas e documentos esparsos, é que o jornalismo investigativo se utiliza, ainda que inconscientemente, de estruturas discursivas pré-elaboradas: o mocinho contra o bandido ou a briga em família da telenovela, o suspense kafkiano, o cinismo dos romances policiais de Rubem Fonseca. Assim é que, como contraponto ao caráter frugal do jornalismo diário, subjazem no jornalismo, em especial o ‘investigativo’, técnicas narrativas atemporais, emprestadas da literatura.
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Jornalista, mestrando em Teoria Literária na Universidade Estadual Paulista, São José do Rio Preto, SP