O presidente venezuelano Hugo Chávez já havia entrado na escola pública no bairro 23 de Enero para votar. Enquanto dava uma entrevista coletiva no centro de votação, mais de 500 pessoas o esperavam sair, do lado de fora. Estávamos em uma área reservada para fotógrafos e jornalistas esperando para registrar a saída do presidente quando vimos, ao nosso lado, um jornalista da Rede Globo se preparando para gravar.
Sugerimos ao jornalista que nos tomasse uma declaração. Estávamos em um grupo de brasileiros que vivem na Venezuela e tínhamos uma opinião sobre todo o processo na Venezuela, não somente o processo eleitoral daquele domingo (15/2), mas sobre o processo político que vive o país que nos recebe. O jornalista – que, mais tarde, soube tratar-se do ‘novo correspondente da Rede Globo para América Latina’, Carlos de Lannoy – respondeu algo com desdém e desinteresse por uma declaração do grupo.
‘Claro que não’, comentei, ‘as fontes já estão marcadas e o discurso já está pronto para vender.’ No bom espanhol venezuelano, um palangrista (termo utilizado para designar um jornalista que vende um conteúdo noticioso com mentiras no sentido de manipular a opinião pública).
Luta de classes
O funcionário da Globo continuou o seu trabalho e realizou uma tomada dizendo que o referendo tratava da aprovação da reeleição indefinida do presidente Chávez. Um discurso recorrente da oposição, e obviamente dos meios de comunicação privados da Venezuela, que representa uma forte contradição. Uma vez que a emenda constitucional permite nada mais que a postulação a diversos cargos públicos além do cargo de presidente da República, e sempre pela via da consulta popular, seria correto dizer que a oposição venezuelana admite que o presidente Chávez será sempre a única opção do povo. Seria admitir a derrota para sempre da sua defesa política para o país. O que não é bem verdade.
A estratégia dos meios de comunicação privados da Venezuela, assim como internacionais, como é o caso da Rede Globo no Brasil, é para que todo processo de discussão democrática, participativa, que vai contra seus projetos políticos, se pareça sempre com uma nascente ditadura.
A cada momento que a oposição venezuelana e internacional percebe que se está dando um passo mais adiante na luta do povo venezuelano pela ampliação dos direitos democráticos e construção do socialismo, age com a ‘política de mentiras’, assim chamada pelo próprio presidente Chávez.
No vídeo do jornalista da Rede Globo deveria constar um áudio que dizia ‘a Globo mente!’, de dois brasileiros que não conseguiram evitar que a mentira fosse produzida e vendida ao nosso povo. Seguramente, não acabamos com o palangrismo da Globo, somente incomodamos algum jornalista que fazia o trabalho sujo dos meios de comunicação privados do mundo, que temem o exemplo do povo venezuelano na luta pelo socialismo, o que comprova que a história segue se construindo através da luta de classes, mas, evidente que nunca no povo venezuelano.
O que mudou em 20 anos?
Discutimos um pouco com Lannoy sobre alguns pontos de sua reportagem. Quando fizemos uma breve comparação entre o processo político democrático brasileiro e venezuelano, o jornalista, que tinha tanto para dizer, se calou. Dizer que a Constituição brasileira já sofreu 62 emendas sem que nenhuma houvesse passado pela consulta popular deixou o jornalista da Globo em má situação. Admitir que a democracia venezuelana garante o caráter participativo ao seu povo seria exatamente o contrário do que ele tinha que dizer em seu trabalho. O discurso que a Globo e os grandes meios de comunicação privados do Brasil necessitam vender é que sempre será Chávez um ditador, que as liberdades são cerceadas e que não vale a pena o povo brasileiro seguir o exemplo histórico de luta do povo venezuelano.
O debate sobre a comunicação no Brasil é assunto que incomoda a muita gente importante. O que na Venezuela comumente se chama de ‘guerra midiática’, no Brasil, os empresários do setor já declararam vitória faz algum tempo. Na história da comunicação no Brasil, o caminho foi só avançando para a consolidação de impérios midiáticos que influenciaram a opinião pública e jogaram com as relações de poder em todos os seus níveis.
No documentário do canal inglês BBC titulado Muito além do cidadão Kane, a TV britânica entrevistava o então candidato Lula, derrotado nas eleições de 1989. Muito se falou sobre o papel que jogou a empresa de comunicação brasileira para derrotar o favoritismo que vinha tendo o candidato Lula até os últimos dias de campanha. Edições de debates, propaganda no jornalismo, análises tendenciosas, tudo isso foi usado para que Fernando Collor de Melo chegasse à presidência da República naquele ano. ‘Democratizar a comunicação’, essa foi a meta apresentada pelo candidato Lula em 1989. Vinte anos depois e com Lula no governo faz sete anos, é importante pensar o que mudou e o que vem a ser um processo de democratização da comunicação, ou ‘quais são suas experiências históricas’?
Veículos comunitários e alternativos
Voltando à Venezuela, é importante pensar por que, para a oposição venezuelana liderada pelos veículos de comunicação privados e também para a Rede Globo, a ‘política de mentiras’ é tão importante e tão vital. O medo: democracia.
Há quem diga que devemos socializar os meios de comunicação. Estaremos sempre de acordo com isso quando pensarmos em um processo socialista materializado no fim da propriedade privada dos meios de produção, o que inclui a comunicação social. Acontece que o processo político na Venezuela apresenta o socialismo ainda como alternativa ao capitalismo. Entendo, portanto, que a socialização dos meios de produção ainda não é um feito, apesar do avanço com a nacionalização de setores importantes da economia, como foi o caso da indústria do cimento e siderurgia, ambas nacionalizadas em 2008.
Isso explica por que na Venezuela grandes empresas de comunicação ainda operam com grande influência na formação da opinião pública, pelo grande acúmulo de poder historicamente construído graças à política de comunicação social antes do presidente Chávez. Para minar as estruturas de poder desses grandes impérios midiáticos, uma solução foi encontrada pelo governo bolivariano: democratizar a comunicação.
Depois do golpe de 2002, claramente orquestrado por grandes grupos e empresas de comunicação, o governo Chávez declarou guerra aos empresários do setor. Naquela ocasião, frente ao total controle que tinham os golpistas de todos os aparatos de comunicação, ocorreu o que Earle Herrera, jornalista e professor da Universidade Central da Venezuela e atual deputado na Assembléia Nacional pelo PSUV, chama de ‘o povo se fez jornalista’. Não fosse o famoso ‘boca-a-boca’, o povo não conseguiria uma mobilização em massa e o retorno de Chávez apenas dois dias depois do golpe.
A partir daí, o surgimento de meios alternativos e comunitários de comunicação foi vigoroso. Herrera, no livro Extravio dos meios, publicado na série ‘Textos breves’ do Ministério das Comunicações da Venezuela, comenta que ‘os grandes processos de transformação são férteis para este fenômeno’. O processo de fomento aos veículos comunitários e alternativos começa a partir da iniciativa da TV Comunitária Catia TV, que exerceu um importante papel durante os acontecimentos de abril de 2002, transformada hoje em uma incubadora de TVs comunitárias em todo o país.
O povo como protagonista
Em 2006, o presidente Chávez anunciou que não renovaria a concessão pública para o canal RCTV, principal canal opositor ao governo até o último dia em que esteve no ar. A RCTV foi responsável direta na conspiração midiática que proporcionou o golpe de Estado em 2002. Desde a saída da RCTV do sinal aberto, o governo vem investindo na criação de meios públicos de comunicação e incentivando, através do Ministério das Comunicações, o surgimento de mais de mil veículos livres alternativos e comunitários em todo o país.
A Venezuela hoje possui um Sistema Público de Televisão, que inclui além dos canais institucionais como a ANTV, da Assembléia Nacional, uma agência de notícias, a ABN (Agência Bolivariana de Notícias), VTV (Canal 8), antiga televisora estatal, antes um cabide de empregos, hoje completamente transformada, dotada de uma programação diversificada com programas educativos, de opinião, entretenimento e os noticiários de maior peso em audiência; a Telesur, canal formatado como uma empresa transnacional-governamental, que tem 51% de capital venezuelano e o restante aberto aos países que desejem aderir à iniciativa, que até agora são Cuba, Colômbia, Argentina, Bolívia, Paraguai, Uruguai, Equador e Nicarágua; a Vive TV, outro canal do Sistema Público de TV venezuelano que funciona como uma TV educativa, porém, com uma linguagem e uma programação super-avançada em relação às TVs educativas do Brasil; e por fim a Ávila TV, canal alternativo que apresenta debates importantes e discute temas políticos com uma linguagem voltada para a formação de um público jovem.
Toda a estratégia que vem fazendo no sentido de democratizar o acesso à comunicação vem minando os espaços dos grandes empresários na Venezuela, que temem algum dia não exercer a influência que jogam no país e que um dia possam vir a desaparecer no contexto de uma comunicação possível de ser exercida pelo próprio povo. ‘Não vejam TV, façam TV.’ Assim deve ser. O medo toma conta dar redações dos impérios das notícias. O medo da democracia, do socialismo, do povo como protagonista, pois somente ele é capaz de mover a história na sociedade de classes.
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Jornalista