A obrigatoriedade do diploma universitário para o exercício do jornalismo tem gerado milhares de comentários que afetam diretamente a validade do jornalismo como profissão. Na intenção de contestar o sistema que instituiu a necessidade do diploma inúmeros articulistas acabam, mesmo sem a intenção, discutindo – indiretamente – a essência da atividade de forma equivocada. Na ânsia de imporem seus pontos de vista, acabam mirando a exigência do diploma, mas acertando o exercício da cidadania apregoado pela atividade.
Os que defendem o envio da exigência do diploma para os confins da história, o fazem sob os argumentos de que tal exigência fere princípios da liberdade de expressão, foi criada pela ditadura como instrumento de controle da liberdade política, atende a princípios capitalistas dos donos das universidades e também porque as escolas de jornalismo não têm sido capazes de formar jornalistas suficientemente aptos para o exercício da atividade. Que tais empresas, ops, escolas agem indistintamente no propósito comercial de arregimentar meros ‘clientes’, e não jornalistas, ninguém duvida. No entanto, os argumentos usados pelos ‘combatentes do diploma’ são mais tolos do que os programas dominicais de TV.
O grupo dos que defendem o fim da exigência do diploma para o exercício da profissão é formado, em sua maioria, por profissionais que atuam na profissão, mas não são formados – o que, de certa forma, é mais do que óbvio! – por intelectuais do tipo ‘faz tudo’, e também por jornalistas formados. No arauto de sua onipotência, o grupo alega que o sistema acadêmico (trata-se aqui da formação específica de jornalistas) tem se mostrado ineficiente e jogado no mercado de trabalho centenas, milhares, incontáveis ‘bestas semi-alfabetizadas’. Na tentativa de se mostrarem – e o mais importante: se legitimarem – como intelectualmente superiores, bravejam aos quatro cantos do planeta e aos mais longínquos confins do universo, digo, espalham pela imprensa que para ser um jornalista é preciso ter cultura, muita cultura, intimidade com a língua vernácula e, acrescento eu, verbalizar dezenas de aforismos lingüísticos que tanto os fazem parecer autodidatas. Afinal de contas, em um país semi-analfabeto e com nível cultural pífio como o Brasil, disseminar raciocínios ininteligíveis é uma das formas de ascender à categoria dos ‘intelectuais’.
Artifício de manipulação
Pois bem, da onde vem esses argumentos é fácil saber… Não é possível negar que o mercado está saturado de ‘bestas semi-alfabetizadas’, que as universidades – pelo menos a maior parte delas – não têm competência na formação destes profissionais etc. No entanto, o fim da obrigatoriedade do diploma é defendido de forma equivocada. Levando-se em conta que no Brasil nenhuma área do conhecimento se considera completamente ‘feliz’ quanto à formação de seus profissionais, o mais correto não seria aperfeiçoar o sistema acadêmico? Se uma coisa funciona de forma errada, o mais plausível não seria corrigi-la?
É preciso discutir o principal e o mais absurdo argumento usado por essa ‘facção’: a liberdade de expressão. Propositalmente – ou talvez por incompetência mesmo – os ‘Caçadores do Diploma’ confundem e fazem confundir liberdade de expressão com liberdade de imprensa. Tal equívoco, ocasionado pela Justiça, foi o que provocou toda essa confusão em torno da obrigatoriedade do diploma.
Pois bem, humildemente e sem nenhuma remuneração de qualquer espécie – garanto! – presto-me ao trabalho de esclarecê-los: liberdade de expressão é um pressuposto democrático garantido a todos os cidadãos. Isso significa que o ser humano é livre para dizer o que pensa sem ter que se preocupar com nenhum tipo de represália governamental. Significa dizer que ninguém vai denunciá-lo ou entregá-lo à polícia ou a qualquer outro tipo de autoridade por você dizer ‘A’ ou ‘B’ de qualquer regime político. Já a ‘liberdade de imprensa’, atente-se, é um artifício usado pelos donos dos meios de comunicação para explorar a liberdade de expressão.
A gosto do veículo
Para não parecer pedante, traduzo: não existe, liberdade de imprensa. A única liberdade real definida em uma sociedade ‘democrática’ é a liberdade de expressão. Todos os cidadãos têm o direito de ‘meter o pau’ em qualquer vereador, prefeito, governador, deputado, senador e até mesmo no (companheiro) presidente. É claro que isso não lhe dá o direito de incorrer em ofensas pessoais, o que poderia acarretar em calúnia, injúria ou difamação.
Já a dita ‘liberdade de imprensa’, pasmem!, é o uso da liberdade de expressão por meio de um veículo de comunicação. Isso é o que caracteriza o jornalismo: usar a capacidade intelectual aliada à liberdade de expressão para comunicar algo a outrem.
No entanto, a liberdade de imprensa não é algo de uso exclusivo do jornalista, e sim dos donos dos meios de veiculação da notícia.
A liberdade do jornalista restringe-se – parafraseando Cláudio Abramo – a seguir ‘a regra do jogo’, ou seja, ele pode interpretar e redigir matérias da forma como acredita ser a mais ética/honesta, cabendo aos capitalistas proprietários do veículo de comunicação publicar ou não.
Um exemplo salutar desse sistema é a recente demissão do jornalista Alberto Dines do Jornal do Brasil. Isso aconteceu porque a capacidade intelectual do senhor Dines aliada à liberdade de expressão confrontou a liberdade de imprensa, que é exclusiva dos donos dos meios de comunicação.
Para frisar: a liberdade de expressão é o direito do cidadão opinar sobre o que bem quiser da maneira que quiser. Já a liberdade de imprensa caracteriza a divulgação de notícias por meio da capacidade intelectual do jornalista aliada à liberdade de expressão. No entanto, o resultado desse processo sai a gosto do veículo, e não a do freguês.
Os argumentos do patronato
Logo, ao afirmar que o exercício do jornalismo se dá por meio da liberdade de expressão e que por isso deve estar ao alcance de qualquer cidadão, equipara-se conceitos paradoxalmente distantes.
Se para os que defendem o extermínio do diploma liberdade de expressão é a mesma coisa que liberdade de imprensa, então todos os cidadãos de países ‘democráticos’ são jornalistas! No fim das contas, o raciocínio que diz que o jornalismo pode ser exercido por qualquer cidadão acaba por destruir o exercício da profissão. Isso porque para ser jornalista é preciso apenas ter liberdade de expressão.
Para ser jornalista é preciso muito mais do que saber ler, escrever e exercer a liberdade de expressão. É preciso estar apto para lutar contra ‘Golias’! É necessário ser ‘cabeça dura’ para não deixar os seus valores de lado por causa da falta de emprego, saber lidar com a pressão exercida por verdadeiros ‘Renatos Mendes’ (personagem de Fábio Assunção, em Celebridade), pelas influências de mau-caratismo (troca de favores)…
De certa forma, desregulamentar a obrigatoriedade do diploma não é nada mais do que o reflexo atual do mercado de trabalho, que discrimina o pensamento crítico e a organização profissional da categoria. Cada vez mais, os jornalistas estão se alinhando aos carteiros – apenas levam-e-trazem. Quando se atrevem a confrontar o império são retirados do ar (caso Jorge Kajuru).
Atualmente, os empresários de comunicação defendem mais do que ninguém o fim da obrigatoriedade do diploma. Para isso, usam argumentos do tipo ‘tecnicamente, podemos treinar um jornalista em três meses’. Particularmente, não concordo… três meses é muito. Dois meses em regime intensivo são mais do que suficientes!
Cláudio Abramo, o exemplo
No entanto, não dá para acreditar nos argumentos de quem pensa em reduzir o jornalismo a um cursinho técnico. Se bem que, o tipo de profissional almejado hoje por esses empresários não pode ter status maior do que o de um ‘técnico em jornalismo’. Tal profissional deve saber redigir um lead, uma manchete, ter alguma noção de como se checa uma informação, pensar… Pensar? É, pensar, mas não com muita freqüência… Isso pode ser financeiramente subversivo para o veículo. E o principal: ter uma ética ‘maleável’. Maleável o suficiente para não respeitar o Código de Ética dos Jornalistas, principalmente, no âmbito salarial. Como todos os colegas sabem, o referido código estabelece uma remuneração mínima para diversas funções dentro do jornalismo. Contudo, todos os colegas sabem também que 90% dos jornalistas do país recebem salário abaixo do que o estabelecido pelas categorias sindicais. Portanto, são antiéticos. Para quem tem alguma dúvida, o código é claro:
Art. 10. O jornalista não pode:
a) Aceitar oferta de trabalho remunerado em desacordo com o piso salarial da categoria ou com a tabela fixada por sua entidade de classe.
‘É a demonstração cabal de que a liberdade prevalente é a liberdade do poder econômico. Cotidianamente, muitos jornalistas são constrangidos a atender a caprichos de seus empregadores em detrimento da ética jornalística que foram vocacionados a praticar. O desemprego nos grandes centros urbanos e o enxugamento de redações medianas são os fantasmas que deixam os profissionais imobilizados ou indiferentes diante das mais abomináveis práticas que ainda perduram nas redações brasileiras.’ (OI)
As recentes demissões de Alberto Dines (Jornal do Brasil) e Jorge Kajuru (Band) são a prova inconteste desse regime que privilegia o profissional acrítico. E qual o mais eficiente meio para produzir profissionais eticamente ‘maleáveis’? Destruir o jornalismo como profissão organizada e tirar do jornalista características que o tornariam pleno. Com isso, produzir-se-á, a cada três meses, uma leva de redatores, apenas redatores.
‘Cada vez mais são raros os locais em que o exercício da crítica é encarado como prática de efeito depurador.’ (OI)
O fato de a liberdade de imprensa ser bônus do empresariado contraria também outro ponto do Código de Ética:
Art. 9º
c) Defender o livre exercício da profissão.
O debate proposto aqui não diz respeito ao fato de haver ou não jornalistas capacitados à profissão sem terem passado pelas cadeiras universitárias. Exemplos aí existem aos montes. E, com certeza, Cláudio Abramo foi um grande jornalista mesmo sem formação específica, pelo menos não teórica.
Para pior
A grande questão abordada aqui é o fato de estarmos vivendo um momento histórico/político/social e até mesmo trabalhista totalmente diferente de quando a obrigatoriedade foi estipulada. Se naquele momento de repressão política, de tentativa de exploração universitária da atividade o exercício da profissão estivesse amadurecido, a profissão teria sido oficializada de forma diferente, talvez mais bem estruturada. Mas tentar desregulamentar a obrigatoriedade do diploma hoje, tendo em vista a nova realidade do país, soa como um retrocesso. Isso porque o jornalismo nunca foi tão questionado como agora. Por isso, o que parece mais adequado atualmente é aperfeiçoar a atividade profissional no local – apesar dos pesares – destinado para a formação, questionamento e reflexão da profissão – nas universidades.
Se para tornar-se jornalista é preciso apenas ter cultura – não que isso seja pouco – qualquer profissional da área de humanas – ou por que não de qualquer área? – poderia sê-lo. O que faz de alguém um jornalista não é a quantidade de livros que leu e nem a quantidade de autores que conhece/decorou. O que faz de alguém jornalista é passar horas/dias – isso na universidade – refletindo sobre como abordar um assunto com um entrevistado, como conseguir e checar a verdade dos fatos, como os órgãos de comunicação atuam e atingem/influenciam a sociedade, qual a importância do jornalismo para a sociedade, como a sociedade é estruturada…
Um profissional bem preparado sabe que ele também faz parte do processo da notícia, já que está inserido no processo de newsmaking. Apesar disso, aprende a controlar o seu juízo de valor no momento de filtrar as informações (gatekeeping). E isso não se aprende no mercado de trabalho, e sim na universidade. Não é o ensino superior que forma um jornalista, mas é ele quem possibilita as ferramentas para isso.
Segundo Rui Barbosa, o jornalismo são ‘os olhos da nação’. No entanto, essa profissão nunca precisou tanto quanto hoje de defensores. Isso decorre do fato de que tudo mudou, mas para pior. Nos últimos tempos, a imagem do jornalismo brasileiro foi chacoalhada pela proliferação de revistas de fofoca, por jornalistas que se comportam e se impõem como ‘estrelas’, por profissionais que venderam suas imagens para campanhas políticas e publicitárias etc.
Essência e razão
Esses acontecimentos fizeram com o que o jornalismo perdesse parte de sua imagem institucional. Antigamente, o jornalista representava alguém que incomodava por mostrar o que os poderosos se esforçavam em esconder. Hoje, a profissão é associada a um certo glamour, a um tom pejorativo decorrente da perseguição e exposição da vida de ‘artistas’ e a atividades rocambolescas para conseguir informações – efeito ‘fitismo’.
Muito dos profissionais envolvidos nesses três processos são formados. O que é uma pena, pois isso revela que eles pouco aprenderam. Todavia, isso não invalida a formação acadêmica; apenas faz-se perceber a necessidade de melhorar a educação, ou talvez o aprendizado.
Tais profissionais, apesar das idiossincrasias em defesa própria, sabem que não exercem as aplicações e o Código de Ética da profissão como deveriam. Em parte, talvez isso seja resultado da percepção de que o jornalista não é mais do que um peão, ou seja, um pau-mandado. Revistas de fofoca dão lucro, a exigência do furo leva ao ‘fitismo’ e comportar-se como ‘estrela’ é inevitável quando não se consegue manter o ego dentro das calças…
As decorrências de todos os fatores citados acima afetam diretamente o jornalismo como atividade profissional. Por isso, o exercício da atividade precisa de força, de defensores… É mais do que notória a necessidade de se fortalecer as instituições que representam a categoria, aprimorar o ensino universitário, criar mecanismos eficazes de punição às transgressões éticas – Conselho Federal de Jornalismo – para conseguirmos resgatar os princípios da atividade e de sua função social. Somente com a legitimação de instrumentos de autodefesa é que o jornalismo vai manter a sua essência e a sua razão de existir.
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Jornalista