[Para o professor e amigo Rodrigo Sales]
Somado ao notório trabalho literário de destacar o valor da subjetividade performática e epistemológica protagonizada pela população afro-descendente, Cuti (Luiz Silva) também se destaca como crítico da comunicação virtual, conforme demonstraremos neste estudo. De forma perspicaz, o poeta paulista, em ‘Tecnofobia’ (Sanga, 2002), desconfia do deslumbramento tecnológico decorrente da promoção, em larga escala, da comunicação virtual, em tempo real e sem fronteiras, como prática arrojada e inovadora a serviço do progresso das relações interpessoais.
Na contramão desse propósito interativo divulgado à exaustão, Cuti destaca a presença marcante dos fenômenos da solidão a dois e da convivência à distância no circuito da interação humana mediada pela rede mundial de computadores. Agindo assim, o poeta alerta a sociedade para os efeitos nocivos relativos à incomunicabilidade humana, ao isolamento dos indivíduos e à mecanização da esfera afetiva, quando os contatos virtuais são mais estimulados do que os relacionamentos de natureza presencial. Em decorrência do que chamamos de ‘tecnoidolatria’, ou seja, o fascínio fervoroso do homem pela tecnologia, ocorre a ‘tecnofobia’, descrita, no poema de Cuti, como o estado de choque vivido pelo eu-poético, ao tomar consciência de que a relação afetiva da qual fazia parte foi construída somente com base nos artifícios tecnológicos da comunicação midiatizada pelo computador.
Tecnologia pode ser benéfica
Tais desdobramentos interpretativos tiveram como nascedouro a poesia de Cuti na sua versão tecnofóbica – trata-se, portanto, de uma literatura avançada, de ponta, que conta com os seguintes versos, nos quais é exposto o surto-circuito interpessoal, capaz de danificar o sistema de convivência afetiva:
Tecnofobia
agora que só há um email da gente se ver
abraço o monitor
acaricio o seu traseiro
brinco
esperando a retribuição do toque
depois de me envolver em seus fios
e cios
levo um tremendo choque (Cuti, 2002, 25).
Logo no primeiro verso, temos a angústia expressa pelo eu-poético, tendo em vista a constatação de que o encontro envolvendo aquela parceria sentimental sofreria o duro golpe da restrição do potencial presencial, protagonizada por uma única possibilidade de acesso íntimo – o e-mail. Este, da condição de meio ou alternativa para viabilizar e aquecer a próxima oportunidade do toque direto ou da carícia mútua à flor da pele, passa a ser perigosamente elevado como o único horizonte possível de expressão afetiva do casal.
Nessa passagem do texto, Cuti inova no tratamento dado ao imaginário da cibercultura, sendo este permeado pela polarização entre o medo e a fascinação, que persegue a questão da técnica desde os tempos imemoriais. O poeta reconhece sobriamente o potencial do e-mail como ferramenta de comunicação, quando este funciona como um trampolim para a efetivação amorosa face to face. Porém, quando o eu-poético de tecnofobia adverte que ‘só há um email da gente se ver’, Cuti ultrapassa a querela entre o que Umberto Eco chamou de apocalípticos e integrados, para mostrar dialeticamente que a tecnologia a serviço do homem pode ser benéfica, desde que atendendo perspectivas éticas face à viabilização do convívio humano.
A presença totêmica da máquina
O poeta paulista não embarca no ufanismo tecnológico, muito menos coloca a Internet na fogueira. Em suma, Cuti destaca criticamente o emprego apocalíptico de uma tecnologia que, sendo bem utilizada, tem o potencial incrível de integrar pessoas. O ponto G da questão, conforme ilustra Cuti, é destacar e avaliar a tendência contemporânea de que o homem, ao se comportar a reboque dos comandos do computador, restringe à viabilização de seus contatos interpessoais somente na esfera virtual, optando, assim, pelo distanciamento em relação às outras pessoas. Adotando esse procedimento, ele é iludido de que pode experimentar com segurança o conforto de um vínculo ameno e, portanto, sem os riscos inerentes à convivência presencial.
No trocadilho envolvendo as palavras ‘meio’ e ‘email’, mas também no jogo sonoro presente nos termos ‘cios’ e fios’, Cuti nos chama a atenção para os riscos que a humanidade corre ao adotar como política afetiva a esfera virtual em substituição ao mundo de consistência real. Trate-se, a nosso ver, de um remake do mito da caverna de Platão. De costas à concretude da existência e indiferente à sua historicidade, o Homem toma as sombras por realidades, a exemplo do que ocorreu com aquele grupo de prisioneiros acorrentados numa caverna, sem nunca poder se virar, conforme narra o filósofo grego, no livro VII da República.
Nesse sentido, os prisioneiros da wwwesfera, entendida como alegoria da caverna digital pós-moderna, descarta ou ignora o mundo exterior por julgar as sombras e o eco das vozes repercutidos no computador mais dignos de serem reais do que a experiência interpessoal presencialmente efetivada. Amor por e-mail é meio amor. Não é amor por inteiro. Cada vez mais, aciona-se o endereço www.eu.sem.voce. Desse modo, o efeito interativo presente na expressão ponto com sai da rede. Podemos deduzir que Cuti teme que o afeto humano dependa exclusivamente do computador para se manifestar, proporcionando o fenômeno chamado por nós aqui de triângulo nada amoroso. Ou seja, entre as pessoas, existe a presença totêmica da máquina, que administraria os desejos daqueles sujeitos, a partir de um código ordenado pelo desempenho produtivo facilitador e contratual, que disciplinaria a desenvoltura do empenho performático provocador e atritivo presente no campo presencial-afetivo.
Alteridade comprometida
Esta inversão de valores é tributária da concepção hipermoderna de ‘máquinas desejantes’, conforme pontua Felix Guattari, em Caosmose (apud PRATES, 1999, 258). Para além do aparato técnico, a máquina passa a constituir um sistema complexo que inclui o corpo como componente fundamental. Embora as máquinas técnicas precedam o advento do capitalismo, o mecanismo maquínico surge de forma mais incisiva quando os setores hegemônicos da sociedade inserem conjuntamente seres humanos e máquinas num composto único. A noção de corpo, nesse sentido, é processada como unidade que se mescla à ferramenta para compor a máquina, ‘um corpo pleno agindo como uma agência de engendramento’ (GUATTARI apud PRATES, 1999, 258).
Tais procedimentos se escondem abaixo da multimidiática superfície das ciberrelações, fato este que choca o eu-poético construído por Cuti, quando toma consciência de que os carinhos dedicados à outra pessoa estavam, na verdade, sendo dados à máquina. Acompanhemos novamente a sombria experiência das relações eróticas à distância contada poeticamente pelo poeta paulista: ‘abraço o monitor/ acaricio o seu traseiro/ brinco/ esperando a retribuição do toque/ depois de me envolver em seus fios/ e cios/ levo um tremendo choque’ (CUTI, 2002, 25).
O formato computacional do afeto tira o corpo fora, e a relação de cada um, intermediada somente pela internet, é reduzida ‘ao desempenho do eu’, conforme salienta Goffman (apud CAIAFA, 1999, p. 251). É estranho pensar em erotismo na ausência do corpo. Por isso, ocorreu o tremendo choque experimentado pelo eu-poético de ‘Tecnofobia’, extrapolando, portanto, a noção denotativa da súbita corrente de descarga elétrica sofrida pelo usuário do computador ao utilizar a máquina indevidamente. Numa operação de terceirização amorosa, ele emprestou afeto a um computador, o que demonstra de forma acachapante como os sujeitos, na verdade, estão trocando rejeições ou indiferenças mútuas, ao invés de experimentarem vínculos presenciais. Naquela cena poética, a alteridade se encontra comprometida, pois a postura narcisista e reificadora dos envolvidos são incentivadas. Fenômenos como a solidão a dois, a convivência à distância são cada vez mais frequentes. Emerge naquelas circunstâncias um relacionamento desvinculando um indivíduo do outro, sendo esta história pseudo-afetiva compreendida como um desdobramento da ‘objetificação maquínico-desejante do biopoder capitalista’, conforme situa Eufrásio Prates (1999, 270).
Embalagens públicas do privado
De maneira poética, Cuti discute o transtorno afetivo presente no mundo virtual, a exemplo do que fez o crítico Edmond Couchot, ao teorizar sobre o modo particular como a subjetividade é construída no ciberespaço. Trata-se do conceito de ‘sujeito-SE’ (apud MACHADO, 2002, 86). Fazendo acoplar à palavra ‘sujeito’ o pronome indefinido ‘se’, Couchot busca exprimir uma outra experiência de subjetividade, aquela que deriva não de uma vontade, de um desejo, de uma iniciativa de um sujeito ‘real’, mas dos automatismos do dispositivo técnico. Quanto maior for o índice de indeterminação do sujeito, mais o indivíduo se assujeita aos desígnios da tecnologia, deixando de atuar como ‘sujeito-EU’, conforme alerta Couchot (apud MACHADO, 2002, 90).
Nesse sentido, estimula-se, segundo Arlindo Machado, o ‘acasalamento homem-máquina’ (2002, 87). Quer retrato mais desconcertante do mencionado processo do que o momento literário promovido por Cuti, no qual o eu-poético faz do computador uma espécie de boneca inflável cibernética para dar vazão a um desejo erótico cujo efeito chocante foi o do reforço da castração apática? No lugar de pontes concretas, muros digitais cada vez mais altos separam o ‘eu’ do ‘outro’. Superficialmente, apresentam-se relações íntimas. Essencialmente, temos embalagens públicas do privado, isto é, conexões entre ‘espectadores de quase tudo sem participar de quase nada’, segundo Jean Baudrillard (apud GIUGLIANO, 1999, 51).
Um ‘tremendo choque’
Nos termos de Simone Pereira de Sá (2002), é possível afirmar que poeticamente Cuti realizou, em ‘Tecnofobia’, uma ‘netnografia das redes digitais do computador’ (SÁ, 2002), ao demonstrar como as relações sociais virtualizadas e desterritorializadas estariam consumando o projeto da ‘sociedade de controle’, conforme salienta Deleuze (1992). Em contraposição a esse modelo autoritário, o poeta ressalta que os contatos virtuais não podem ser pensados como substitutos para as genuínas formas de relação presencial e emocional. Chegamos, assim, ao paradoxo no qual a proliferação de meios de encurtamento das distâncias resulta em extremos de isolamento, desterritorialização, encapsulamento, frustração de desejos psico-orgânicos e incomunicação. Obviamente, o problema não está na ferramenta em si mesma, mas nos modos como ela é ideologicamente engendrada e manipulada.
O ser-humano-maquínico – mente-corpo descorporificado, virtualizado em sinais elétricos que percorrem linhas telefônicas –, ao contrário do que se poderia esperar de uma era de tantos avanços tecnológicos, parece sintetizar a perversão impetrada pela lógica racionalista do capital. Nela, o consumo, o lucro e a ânsia de poder determinam a mediatização técnica controlável de relações ‘humanas’.
A exemplo de obras como Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, 1984 (1949), de George Orwell, e Eu-robô (1950), de Isaac Asimov, o poema ‘Tecnofobia’ (2002), de Cuti, filia-se, a nosso ver, a uma tradição literária que tem se esforçado para desmistificar ficcionalmente a panacéia prometida pelo discurso científico, problematizando as conquistas tecnológicas sob uma perspectiva ética, sem o frenesi propagandístico e mercadológico. Conforme alertam de forma contundente os versos de Cuti, o que nos parece aconselhável, como seres de uma era virtual, é assumir uma atitude crítica que mantenha a integridade de nossos corpos-mentes na vivência de dores e prazeres espírito-carnais. Caso contrário, conforme se deu com o eu-poético de ‘Tecnofobia’, levaremos um ‘tremendo choque’.
******
Doutorando em Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG (Bolsista de Doutorado do CNPq). Mestre em Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG. Pesquisador voluntário do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade (NEIA/FALE/UFMG). Jornalista, formado pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB