A escolha do padrão japonês ISDB-T como base do Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD), com o decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 29/6/2006, foi uma decisão política. Fatores técnicos e econômicos ficaram em segundo plano. Foi uma vitória do poder político dos radiodifusores sobre o poder econômico das operadoras de telecomunicações.
A TV é o meio de comunicação mais importante no Brasil, com presença em 91,4% das residências em 2005. Os grupos nacionais de comunicação, no entanto, se sentem ameaçados pela presença de gigantes internacionais de telecomunicações, que possuem músculo financeiro para esmagarem as atuais redes de televisão. Mesmo a Rede Globo é pequena frente a gigantes como a espanhola Telefónica e a mexicana Telmex. Isso sem contar os jogadores do mercado de Internet, como o Google e o Yahoo!, que ainda não começaram a apostar firme no mercado brasileiro.
Para se protegerem do poder econômico das teles, as redes de TV recorreram ao seu poder político. O ministro das Comunicações, Hélio Costa, tem identificação forte com os radiodifusores. Ex-repórter do Fantástico e criador da sucursal da Rede Globo em Nova York, Costa foi acionista de uma rádio em Barbacena (MG), sua cidade natal. Ele assumiu o ministério com uma missão: garantir a digitalização da televisão e do rádio no país, sem mudança no modelo de negócios atual, baseado na venda de audiência para os anunciantes.
É errado enxergar Costa simplesmente como homem da Rede Globo. Os outros grandes grupos brasileiros de televisão, como o SBT, a Record, a Bandeirantes e a RedeTV, encontraram no ministro um interlocutor atencioso, depois de serem pouco ouvidos durante o governo Fernando Henrique Cardoso e o começo do governo Lula. Enquanto ministérios mostraram dúvida quanto ao melhor padrão para o Brasil durante o processo de definição, Costa manteve desde o início uma postura consistente, em defesa do japonês, preferido da Rede Globo e, desde o começo de 2006, de todas as redes brasileiras. Por fim, sua visão prevaleceu.
O fato de 2006 ser um ano eleitoral teve um peso importante na decisão. O governo postergou o quanto pôde a escolha do padrão, mas, às vésperas da campanha em que o presidente Lula se lançou à reeleição, não teve mais como segurar. As emissoras têm pressa na digitalização, pois se encontram tecnologicamente atrasadas em relação a outras plataformas de distribuição de conteúdo, como as telefonias fixa e móvel, a TV a cabo e a TV paga via satélite. Elas temem a migração da melhor fatia de sua base de clientes para outras plataformas, o que seria fatal para o modelo de negócios baseado publicidade.
No final do governo FHC foi possível deixar de tomar a decisão porque os grupos nacionais de comunicação se encontravam numa situação financeira difícil. Desde então, a situação mudou. A Globo renegociou sua dívida e encontrou na Embratel, da mexicana Telmex, uma sócia para a Net. As emissoras chegaram em 2006 prontas para investir na transição tecnológica, com apoio do Japan Bank of International Cooperation (JBIC), um dos motivos do apoio ao padrão japonês, e, provavelmente, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Modelo vertical
A TV brasileira é verticalmente integrada, reunindo em uma só empresa produção, programação e distribuição. O padrão japonês é o que melhor se adapta ao modelo atual, pois permite que as emissoras transmitam seu sinal diretamente a celulares, sem passar pela rede das operadoras. Além disso, a tecnologia garante que as empresas recebam um canal completo de 6 MHz para a transmissão digital. Elas temiam receber menos que isso, como aconteceu em países europeus, que optaram por aumentar a pluralidade no mercado de televisão. O governo também beneficiou as operadoras ao criar quatro canais públicos no decreto da TV digital, ocupando o espectro disponível. Com isso, foi afastada a possibilidade de se licitar novos canais e de se criar novas redes nacionais privadas.
Os radiodifusores começaram a estudar as opções internacionais de TV digital em 1994. Seis anos depois, a Universidade Mackenzie comparou os três padrões internacionais e apontou o ISDB japonês como o melhor. Se a decisão fosse estritamente técnica, poderia ter sido tomada nessa época. No entanto, havia condições adversas, como a falta de vontade do governo de tomar uma decisão, politicamente delicada, e a má condição financeira das redes de TV, que não teriam como investir na transição.
No começo do governo Lula, o ministro das Comunicações era Miro Teixeira. Ele anunciou a proposta de criação de um sistema brasileiro, para ser comparado aos internacionais. Na época, a medida foi criticada, com o argumento de que seria uma maneira de beneficiar Eugênio Staub, presidente da Gradiente, um dos primeiros empresários a apoiar Lula na campanha eleitoral vitoriosa de 2002. O Instituto Genius, que surgiu da Gradiente, seria um dos maiores beneficiários. Depois das críticas, o processo foi aberto a universidades e institutos de pesquisa de todo o país. Mesmo participando de grupos de pesquisa, o Genius não ocupou posição de destaque.
Com a saída de Miro do ministério, no começo de 2004, o governo começou a dar sinais de que abandonaria o projeto do sistema brasileiro, e os grupos internacionais retomaram as negociações. No fim de 2005, os consórcios de pesquisa apresentaram ao governo o resultado de seus trabalhos. O decreto da TV digital e o acordo com os japoneses, no entanto, não definem quanto da pesquisa local será incorporada no sistema a ser adotado aqui. Mais importante: o governo não destinou recursos para a continuidade dos trabalhos dos consórcios em 2006, o que pode prejudicar a transformação de tecnologia em produto.
A questão dos semicondutores
Na reta final das negociações com os japoneses, entre o fim de 2005 e o começo de 2006, o governo quis afastar do processo a aparência de uma decisão política, e colocou na mesa a exigência de uma fábrica de chips. O Brasil tem um problema real nesta área, tendo importado 2,9 bilhões de dólares em semicondutores em 2005. Entretanto, não era uma questão que estivesse diretamente ligada à TV digital e nenhum dos grupos seria capaz de oferecer a fábrica. Os investimentos em semicondutores são projetos mundiais, voltados à exportação, que dependem de questões como infra-estrutura logística adequada, carga tributária competitiva e bom funcionamento do sistema alfandegário. Nenhum dos grupos internacionais se comprometeu a instalar a unidade fabril aqui. Os japoneses falaram somente em participar de estudos de viabilidade.
Como já foi dito, se fosse uma questão estritamente técnica, o governo poderia ter adotado o padrão japonês em 2000. Ou poderia ter optado pelo resultado da pesquisa brasileira, que buscou combinar o melhor das tecnologias internacionais tendo em vista as características do mercado local. O ex-ministro Miro Teixeira havia falado em comparar o SBTVD com os sistemas internacionais, antes de uma decisão. A comparação nunca aconteceu. Os americanos e os europeus também sugeriram fazer uma nova rodada de testes das tecnologias internacionais, alegando melhorias desde 2000. Os novos testes não foram feitos.
Como os japoneses não garantiram a fábrica de semicondutores (que nenhum dos grupos garantiria), também não pode ser dito que os critérios foram econômicos. Do ponto de vista das exportações, o melhor padrão seria o americano, pois permitiria um sistema único nas Américas. Hoje, o Brasil exporta televisores principalmente para países da América do Sul. Uma parte também vai para os Estados Unidos, que não têm indústria local de aparelhos. As empresas brasileiras poderiam brigar por esse mercado. Do ponto de vista do preço ao consumidor, o melhor padrão seria o europeu, conforme mostrou um estudo do CPqD, contratado pelo governo. A escala maior garantiria preços mais baixos.
Em 9 de novembro de 2005, mais de seis meses antes da decisão oficial, Costa já anunciava publicamente sua preferência pelo padrão japonês, em audiência à Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara. A preferência explícita pelo padrão japonês colocou dúvida sobre toda a negociação que se seguiu. Em abril de 2006 o governo assinou um memorando de entendimento com o Japão, e se recusou a assinar um documento equivalente com os europeus, apesar de garantir que ainda não havia decidido.
Cenários extremos
No embate entre teles e TVs, existem dois cenários extremos que seriam muito nocivos ao espectador e à liberdade de informação no país. Num deles, as operadoras de telecomunicações, com sua musculatura financeira, esmagariam os grupos nacionais de comunicação e passariam a controlar não somente a distribuição e a programação, mas também a produção, abrindo cada vez mais espaço para conteúdo importado.
No outro cenário perigoso, as emissoras conseguiriam transferir seu controle da produção, programação e distribuição de conteúdo para as novas tecnologias, obrigando as empresas internacionais a pagarem pedágio a grupos nacionais para exibição de qualquer conteúdo, nacional ou importado. Mesmo sem o controle acionário das redes, os grupos locais poderiam, na prática, decidir que conteúdo seria distribuído pelas operadoras de telecomunicações. O resultado seria um reforço aos desequilíbrios e à concentração de mercado que existem hoje na TV aberta.
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Repórter do Estado de S. Paulo; www.renatocruz.net