Solte a sua imaginação. Qualquer semelhança com situações reais é mera coincidência. Agora imagine a seguinte situação: qualquer pessoa pode produzir uma notícia. Ela escolhe os temas, utiliza meios próprios para levantar as informações, com equipamento próprio, e precisa apenas alcançar um meio de comunicação.
As empresas de comunicação podem empregar menos jornalistas e gastar menos com câmeras e carros de reportagem. Informações às quais provavelmente a redação não teria acesso (acesso à informação às vezes custa, e muito) agora são enviadas pelo público em pouco minutos, já que ninguém ‘perde tempo’ com checagem, contextualização e outras tarefas desnecessárias do velho e antiquado jornalismo. Este processo, que em algumas áreas ainda é chamado pelo nome ultrapassado de ‘racionalização’ ou até mesmo ‘enxugamento’, é denominado hoje em dia de ‘jornalismo-cidadão’. Aliás, um nome emprestado de outro tipo de jornalismo, que tem pouco a ver com esta nova versão. O leitor, que antes podia ser fonte, é hoje ‘repórter-leitor’. O que ele conta ou mostra, que antigamente se chamava ‘informação’, hoje em dia é ‘notícia’.
Ninguém garante que o que está sendo veiculado pelos meios de comunicação tenha alguma relação com a realidade. Mas qual é o problema que há nisto? Afinal de contas, não é possível conhecer a realidade. Simplesmente não é possível saber se o presidente Hugo Chávez estava em Havana ou em Caracas no dia da tentativa de golpe. Nem se o Iraque sob o comando de Saddam Hussein comprou urânio de um país africano ou não. Nem se no Iraque foram encontradas armas de destruição em massa. Nem se há pediatra no posto de saúde. Nem se o deputado X contratou a filha do deputado Y e vice-versa. Além disso, essa história de conhecer a realidade é uma coisa muito filosófica!
Falta de recursos
E ninguém pode dizer também que este ‘jornalismo-cidadão’ não é objetivo. Não é preciso se preocupar que o jornalista fique tentando empurrar a sua opinião porque, afinal de contas, nem sequer jornalista é preciso ser. E depois, se houver qualquer problema, basta ‘ouvir os dois lados’ e – num passe de mágica – tem-se uma notícia objetiva.
Deixando a ironia de lado, é preciso refletir exatamente sobre o que é isso que está sendo chamado de ‘jornalismo-cidadão’, de ‘leitor-repórter’, qual seu potencial, quais os problemas que ele traz, quais as suas causas e as suas conseqüências. Como é que isso funciona concretamente?
Este tipo de ‘jornalismo’ vem sendo praticado não só por meios de comunicação privados, como também públicos, para driblar a falta de recursos ou de vontade de investir. A rede pública BBC tem incluído em sua programação videorreportagens de pessoas que não pertencem a seu quadro de funcionários, jornalistas ou não.
Agenda a repensar
A BBC em Birmingham não trabalha mais com camera teams, mas sim com uma única pessoa, que filma, entrevista e edita o material. As matérias podem vir deste repórter ‘all-inclusive’, oficialmente chamados de videojornalistas, ou de telespectadores. As informações não são checadas pela BBC, como o próprio redator-chefe do programa de notícias locais da BBC em Birmingham, David Hayward, declarou em entrevista à TV pública alemã NDR. ‘Nós não temos razões para crer que o espectador mente’, resumiu.
Quando a matéria trata de assunto controverso as informações são checadas. O problema é que, num jornalismo tão preocupado em economizar, é preferível deixar o potencial de conflito de uma história de lado. A investigação de um conflito representa custos. Para driblar esta situação, uma acusação se transforma em declaração de A que, juntamente com uma declaração oposta de B, vira uma notícia ‘objetiva’. O objetivo da BBC com este novo tipo de ‘jornalismo’ é claro: reduzir custos, como a própria direção da BBC West Milands admite.
Que potencial é possível atribuir a este processo? A principal contribuição de um leitor como receptor ativo não é o de fornecer informações apuradas sem rigor jornalístico para que meios de comunicação interessados em economizar transformem em notícia. O potencial reside na possibilidade de forçar a mídia tradicional a repensar sua agenda e tematizar acontecimentos e problemas que até o momento não foram mostrados.
Correlação objetiva
Aliás, a confrontação com as práticas da mídia tradicional é, segundo o filósofo Jürgen Habermas, a principal contribuição que as chamadas novas mídias podem trazer. Na abertura do encontro anual da International Communication Association (ICA) deste ano em Dresden, Habermas ressaltou que a comunicação online só pode trazer contribuição relevante ao discurso político se questionar a cobertura da mídia tradicional.
A questão é se este potencial está sendo utilizado. O redator-chefe da BBC West Milands, David Holdsworth, afirma, por exemplo, que jornalistas não devem temer por seus empregos, porque são eles que vão continuar escolhendo, classificando e interpretando o que vai ser divulgado ou não. Ou seja, a relação da mídia tradicional com a nova é determinada pelas mesmas pessoas de acordo com os mesmos critérios, o que impede que ocorra o questionamento dos parâmetros utilizados pela primeira. O potencial das novas mídias com relação ao problema da relevância não é aproveitado e ao mesmo tempo gera-se um problema de objetividade.
Do ponto de vista da objetividade (é isso mesmo que você acabou de ler: objetividade), o maior problema neste tal ‘jornalismo-cidadão’, feito por ‘leitores-repórteres’, não é necessariamente o fato de se pretender um ‘enxugamento de pessoal’. O desejo de alcançar uma racionalização é a causa. A conseqüência é a perda da noção de realidade. Esta, em sua complexidade, não pode ser conhecida totalmente, mas há uma dimensão concreta, a qual nós não só podemos ter acesso, como também dependemos em grande parte do jornalismo para fazê-lo. Isto é que é objetividade: a correlação entre o que se lê ou se vê na mídia e o que aconteceu.
Cortando o galho
Neste caso, o problema não é que a realidade não possa ser conhecida por uma questão epistemológica etc. A realidade do jornalismo, a dos eventos singulares, que nos revelam uma parte essencial da realidade, pode ser conhecida, sim. E, se não o é, não é porque o sistema nervoso humano não permite, mas sim porque a fonte não quis contar o que sabe, o jornalista não conseguiu acesso à fonte que tem a informação ou esta foi levantada, mas não pôde ser checada com uma segunda fonte e assim por diante.
Conhecer esta realidade custa. É preciso investir num profissional competente, que saiba investigar, nos meios que ele precisa para apurar a informação, dar-lhe o tempo necessário para fazê-lo. O tal ‘leitor-repórter’ coloca isto em jogo. O problema não é necessariamente a falta de jornalistas. Mesmo que o tal leitor seja um profissional, se as informações não forem checadas e colocadas em determinado contexto o problema continua. O que falta não são necessariamente jornalistas, o que falta é jornalismo.
Parte da responsabilidade deste processo é dos próprios jornalistas. Quando um profissional resume a sua atividade a reescrever um release, ou a simplesmente ouvir a fonte citada neste para ‘completar a matéria’, ele se torna superficial. Como o professor de Jornalismo e ex-correspondente da revista Der Spiegel Michael Haller diz, nesta passividade em relação ao trabalho de relações-públicas os jornalistas estão cortando o galho no qual estão sentados.
Critérios viciados
Por outro lado, o caso dos leitores e telespectadores que fornecem ‘notícias’ em fotos, vídeos de celulares ou blogs no lugar de repórteres e até mesmo de correspondentes de guerra mostra que os jornalistas não precisam necessariamente de relações-públicas para se comportarem de maneira passiva. Mas isto também revela – embora os jornalistas também devam fazer seu mea-culpa – o que realmente define o que e como se investiga alguma coisa: as condições oferecidas pelas empresas de mídia.
As novas mídias têm grande potencial para o jornalismo. Mas, ao lidar com elas, as mídias tradicionais o ignoram e preferem enquadrá-las em seus próprios modelos. As chances que a comunicação online oferece, como a revisão dos valores-notícia tradicionais pela interação direta com o leitor, estão sendo desperdiçadas. Neste contexto, o que interessa não é o que dissidente chinês conta em seu blog, mas as fotos de celulares da baleia em Londres. Checagem dos fatos é considerada desnecessária, o que significa que não só o problema da relevância fica, como outro de objetividade surge (ou continua?). Se um relato semelhante ao do dissidente chinês chegar a alcançar a mídia tradicional, pode-se esperar uma ‘checagem’ do tipo ‘o governo chinês nega’.
As novas mídias estão sendo invadidas e utilizadas pelas mídias tradicionais de acordo com critérios viciados e convenientes às empresas de comunicação. E o que é pior: este processo tem sido legitimado pelo tal discurso de democratização.
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Jornalista, mestre em História e doutoranda em Comunicação pela Universidade de Leipzig