Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A escola e a herança de Florestan Fernandes

Acho errada a pretensão de abstrair o intelectual do ambiente. Abstraído do ambiente, o intelectual não tem vida. É uma planta de estufa, que morre precocemente. (Florestan Fernandes)

Há alguns anos, passeava por uma das áreas mais pobres de São Gonçalo, o segundo município em população do Estado do Rio, quando me deparei com um Centro Integrado de Educação Pública (Ciep) nomeado ‘Frederico Fellini’. Passei dias pensando quem teria dado àquela escola o nome do ilustre cineasta italiano, certamente desconhecido daquela população tão carente de acesso a bens culturais plurais tal como o cinema – imaginem o europeu. Passou-me pela cabeça o quanto seria interessante, e ao mesmo tempo improvável, se os filmes de Fellini (e não só) fossem exibidos tanto em horas de lazer, quanto em suporte para as mais variadas disciplinas. Por fim, acabei minha breve reflexão me dando por contente se a vida e a obra de mestre do cinema fosse lembrada ao menos pela pergunta de um aluno mais inquieto e curioso, quiçá num momento de rebeldia questionando se não seria mais legítimo uma homenagem a um gonçalense ilustre.

Lembrei-me dessa passagem ao ler um artigo do sociólogo José de Souza Martins [‘Uma escola com o nome de Florestan Fernandes. O Estado de S. Paulo, 6/2/2005 (www.espacoacademico.com.br/046/46ms_martins.htm)] sobre a recém-inaugurada Escola Nacional Florestan Fernandes (Enff), na qual ele questiona se o ‘professor’ estaria de acordo com a homenagem prestada pelo Movimento dos Sem-Terra (MST). Mesmo entendendo o zelo sobre o legado de um dos mais importantes intelectuais brasileiros, com o qual teve relações tão próximas, de caráter profissional e pessoal, não coaduno com a tese de Martins de que a homenagem só será ‘justa’ se os professores e alunos da Enff lerem (‘de cabo a rabo’) e assimilarem as obras mais ‘significativas’ da sociologia do ‘grande mestre’. Considerando que tal tarefa esteja na ordem do desejo e do realizável, sustento que a devoção de Florestan à luta pela substantiva democratização da sociedade brasileira, sempre ao lado dos mais oprimidos, no qual estão inclusos os ‘sem-terra’, seja motivo suficiente para a referida lembrança.

Em todos os campos de atuação, Florestan Fernandes deu vazão à sua indignação com as mazelas do mundo, ainda que calibrada pela sua inteligência para o melhor aproveitamento dos meios que estavam ao seu alcance. Foi assim nos seus escritos jornalísticos, nos seus discursos parlamentares, nos inúmeros auditórios que freqüentou e, inclusive, na própria academia – o que pode ser comprovado pelos objetos que resolveu enfocar em várias de suas obras: o folclore paulistano, a condição dos negros, a questão indígena, o dilema da escola pública e, entre outros, a luta de classes numa sociedade capitalista periférica. Não ficou de fora desta seara a luta pela reforma agrária, da qual o MST é hoje um dos agentes mais relevantes. Por isso, tendo a concordar com Antonio Candido, como já manifestei em outra oportunidade, de que a homenagem prestada talvez seja a que melhor sinalize para as futuras gerações as aspirações do respectivo ‘militante socialista’, que foi também um importante ‘acadêmico’ (Oliveira, 2005).

E aí é que está o ‘busílis’ da questão: Florestan foi um vibrante militante socialista porque foi um grande acadêmico? Ou ele foi um grande acadêmico porque foi um vibrante militante socialista? A crítica de Martins tem seu ponto positivo ao nos lembrar que toda e qualquer referência que se vier a fazer sobre Florestan será sempre parcial. Dificilmente, ao destacarmos um aspecto de sua trajetória, teremos condições de dar conta da complexidade e abrangência de sua obra, o que nos obrigará sempre a fazer um exercício de ir além de nossas intenções. Assim é que vejo a homenagem do MST. Ao nomear uma instituição de ensino que nasce da luta política, os que estão à frente deste movimento não poderão se esquecer que a qualidade da militância dependerá justamente do rigor do ensino a ser colocado em prática. Isso, porém, não nos permite proclamar que haja incompatibilidade absoluta entre a ciência e a política. Talvez a maior herança de Florestan seja justamente a prova dessa possibilidade – com todas as suas dificuldades e constrangimentos.

Escudo da ‘neutralidade’

Eliane Veras Soares já demonstrou, contrariando a hipótese de sua orientadora (Bárbara Freitag, um caso raro de humildade acadêmica), que ‘a questão de se definir se Florestan foi mais acadêmico ou mais político, se houve ou não uma ‘ruptura’ em sua trajetória passa a ser uma questão secundária’ (Soares, 1997, p.126). O fundamental é que ‘o político já se encontrava encubado no jovem Florestan, estudante de Sociologia, do mesmo modo que no deputado federal; nunca se silenciava a voz do sociólogo crítico, dissecando a realidade brasileira. Na categoria do intelectual que constitui uma ‘constante’ na vida de Florestan, se condensam as duas dimensões de sua personalidade: a academia e a política’ (Freitag, na introdução de Soares, 1997, p.13).

O próprio Florestan não cansou de registrar que sua intenção sempre foi a de imbricar as duas vocações, ainda que tivesse (de forma tática ou inconsciente) de privilegiar uma ou outra em determinada conjuntura. Um exemplo está em suas respostas ao suposto ‘funcionalismo’ da primeira fase de sua obra sociológica, quando deslegitima as interpretações de sua obra como ‘síntese de conveniência’ ou ‘ecletismo bem temperado’ para tornar evidente o valor-primeiro da boa tradição sociológica a qual se incorporava: a investigação sobre os obstáculos à emancipação humana, que no caso de Florestan, como afirma Garcia (2002, p. 26) ‘está na base de uma ‘identificação afetiva com os que sofrem o drama do desencontro’’. Tema que, como sabemos, é muito caro ao próprio Martins (1998).

Mesmo quando alertava que a relação em questão deveria ser tratada de modo transitório (ou seja, com ênfases calibradas), Florestan afirmava que a conjunção entre ciência e política é sempre produtiva para o pesquisador, já que assim ele pode descobrir coisas ignoradas quando se fica sob a proteção do escudo da ‘neutralidade’. Ao apresentar suas idéias em público, aproveitando as colaborações do auditório, o sociólogo e a sociologia respondem às pressões e interage com o ambiente. Supera-se, assim, ‘o patamar de uma sociologia profissional ressentida, em busca de uma sociologia na qual sociólogos com formação profissional participam e põem o trabalho intelectual deles, como e enquanto sociólogos, em interação com expectativas e preocupações da coletividade’ (Fernandes, 1978, p.69).

Sobrevida de idéias

A exposição do intelectual fora da redoma acadêmica em nada colabora para o demérito de sua contribuição científica, se se tem como pressuposto de que a objetividade científica depende (inclusive) da investigação das preferências e dos valores do cientista para se trazer à tona uma nova objetividade sociológica, já que ela (a objetividade científica) nasce do próprio estudo sociológico. Como indicava Pierre Bourdieu (2000), a produção da verdade sociológica depende de fatores ligados à posição ocupada pelo sociólogo na sociedade e na luta de classes. Afinal, se o sociólogo consegue produzir alguma verdade, não é apesar de seu interesse em produzir esta verdade, mas sim por causa deste mesmo interesse.

Florestan parece também concordar com essa idéia, já que afirmava que a pretensão de se abstrair o intelectual do ambiente social é sempre um grande erro. ‘Abstraído do ambiente, o intelectual não tem vida, é uma planta de estufa, que morre precocemente’ (Fernandes, 1978, p.27). E a prova concreta da justeza e validade da homenagem do MST está justamente no fato de ter suscitado, no décimo ano de falecimento do grande sociólogo, as primeiras reflexões públicas sobre sua vida e obra, inclusive o próprio artigo de José de Souza Martins – que, por sua vez, motivou uma resposta crítica de Heloísa Fernandes [Florestan Fernandes, universidade e MST. Caros Amigos, nº 96, p.17, março de 2005.], filha de Florestan.

Estamos, portanto, ao contrário do que acredita Martins, longe do risco da iniciativa do MST representar um segundo ‘funeral’. Mas, dada à complexidade e a pujança de sua obra, a herança de Florestan certamente será, como aconteceu com outros pensadores, motivo de muita disputa, sob inúmeras e contraditórias interpretações. Para além dos problemas que isso possa suscitar, se a referência maior dos debates for – sobretudo – os seus próprios textos, estar-se-á garantida a sobrevida de suas idéias, ações e exemplos.

Sistema em xeque

Oxalá outras ações como a da Enff possam, além de resgatar as lições desse mestre da ciência social brasileira, sensibilizar a nossa mídia a abrir espaços para o pensamento crítico autóctone (especialmente o marxista), talvez não tanto quanto o faz com os ‘tanques do pensamento’ liberal ou conservador (o que seria pedir demais), mas, ao menos, similar à exposição dada a intelectuais esquerdistas estrangeiros. Não se faz aqui nenhum manifesto nacionalista, muito menos uma demanda corporativa, até porque eu próprio sou um consumidor ávido das matérias sobre o inglês Eric Hobsbawm, o italiano Domenico Losurdo, o húngaro István Mészáros e, entre tantos, o norte-americano Noam Chomsky. O que me intriga é o não-questionamento sobre as motivações dessa, quem sabe, ignorância, estrangeirice ou esquecimento – já que não creio que isto seja sintoma de uma possível falta de referências ou referenciais. E se for, onde está o debate?

Um exemplo concreto de oportunidade perdida está na última edição da revista Cult [O retorno de Lenin. Cult, nº 90, Capa, março de 2005. Disponível em (http://revistacult.uol.com.br/cult_90_mat1.htm)], que traz uma entrevista com o esloveno Slavoj Zizek [A quem devo, com Fredric Jameson, Milton Santos e Gisálio Cerqueira Filho, a inspiração para minha pesquisa As cidades-totais: o sublime espaço pós-moderno (Niterói/RJ: UFF, Departamento de Ciências Sociais, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, 2003. Monografia de conclusão de curso] tendo como foco o resgate que ele faz de Lênin, em seu último livro, para encontrar respostas sobre os dilemas que assombram este início de século. Sem desconsiderar o mérito da empreitada e a qualidade da reportagem, a matéria poderia fazer uma pequena alusão ao trabalho de difusão dos ideais leninistas no Brasil, especialmente ao realizado por Florestan nos anos 1970 e 1980.

Com isso, a revista faria uma remissão importante a esta dimensão da trajetória do nosso ‘sociólogo militante’. Mas, fundamentalmente, daria (como a Cult já fez em várias de suas edições, vale lembrar) combate à política (consciente ou inconsciente, dependendo do caso) de silenciamento do pensamento radical brasileiro – que, numa hipótese que ouso aventar, se propaga pelo fato de que essas vozes colocam em xeque, entre outras coisas, o papel que nós, jornalistas (um tipo habitual de intelectual da ordem), cumprimos nessa nação subcapitalista – que padece, entre outros males, da falta de democracia no acesso e na produção da informação. Mas, acredito que isso se deva, sobretudo, ao fato de que um olhar crítico sobre o sistema capital, forjado no intestino de uma condição periférica, demanda uma sofrida e difícil auto-avaliação de idéias, valores e ações – o que ultrapassa, é claro, o campo da comunicação.

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Jornalista e cientista político, doutorando em Educação Brasileira pela Universidade Federal Fluminense