No Brasil, assim como nos países onde é forte a influência dos meios de comunicação de massa no cotidiano da população, a mídia reproduz não apenas os principais fatos e acontecimentos nacionais. A sua penetração na realidade brasileira é tamanha que ela incorporou as funções de entidades públicas e representativas, como os partidos políticos e o próprio governo, e dita o que deve ser ou não absorvido pela sociedade. Essa prática foi marca da cobertura da imprensa ao longo dos oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso e se propaga atualmente, desde a posse de Luiz Inácio Lula da Silva na presidência da República em 2003.
Como afirmam Maria Helena Weber (2000) e Canelas Rubim (1999), o Estado, os partidos e outras instituições precisam dos meios de comunicação de massa para que as suas decisões se tornem de conhecimento público. Isso concede autonomia suficiente à mídia e aos produtores de informação para decidirem aquilo que é mais relevante para se tornar público.
Nesse sentido, a definição da agenda nacional de discussões ao longo do governo FHC foi prerrogativa da mídia brasileira. Com o pensamento empresarial voltado para as regras do mercado econômico, os donos e empresários dos veículos de comunicação priorizaram a cobertura de temas que foram de interesse direto das empresas de comunicação de massa, sem deixarem de ter como foco assuntos com forte repercussão junto à sociedade.
As autoridades políticas brasileiras, como o ex-presidente Fernando Henrique, adaptam suas performances e discursos às principais necessidades da mídia e obtém destaque de acordo com o que ela julga ser mais adequado para ser apresentado à população. Neal Gabler (1999) ressalta, ao discutir os meios de comunicação de massa norte-americanos, que os políticos sabem exatamente como agir frente à imprensa para obter maior credibilidade e espaço junto à opinião pública.
Entre os assuntos que mais atraem a atenção dos profissionais da imprensa, mesmo nas coberturas presidenciais, estão os voltados ao entretenimento dos leitores. Se um fato tiver a chance de ser focado de maneira a revelar curiosidades, deslizes e intimidades de seus protagonistas, a possibilidade de ganhar as manchetes dos meios de comunicação de massa aumenta. Mauro Wolf (2001), assim como José Arbex Jr. (2001) e Maria Helena Weber (2000), consideram o ‘espetáculo’ e a ‘capacidade de entretenimento’ como um dos principais valores-notícia que fazem um fato comum tornar-se acontecimento jornalístico. Para Arbex Jr. (2001) e Pierre Bourdieu (1997), cada jornalista observa um fato em busca de fatos sensacionais e espetaculares.
A espetacularização da notícia, nesse contexto, é um elemento fundamental para que uma notícia se torne interessante aos leitores do ponto de vista do entretenimento. Fatos tradicionalmente considerados mais densos para a compreensão do público, como as discussões políticas e econômicas do país, podem receber uma nova roupagem capaz de prender a atenção dos leitores e garantir maior vendagem aos jornais. Os principais acontecimentos políticos nacionais podem inclusive, como enumera Maria Helena Weber (2000), ser tipificados como ‘espetáculos midiáticos’ com a intenção de facilitar a compreensão dos leitores e atraí-los para o seu conteúdo.
A cobertura midiática do governo Fernando Henrique Cardoso teve como uma de suas principais características a espetacularização da notícia. As ações do ex-presidente ou de sua família ganharam tanto ou maior destaque nos principais jornais do país que as decisões políticas tomadas por ele enquanto chefe de Estado. Um exemplo do foco curioso que a mídia concedeu ao ex-presidente ocorreu quando da visita ao Brasil dos reis da Espanha, Juan Carlos e Sofia, em julho do ano 2000. O fato que mereceu capa nos quatro jornais de maior temática nacional do país na época (O Globo, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e Jornal do Brasil) foi a quebra de uma compoteira por um segurança espanhol, presente que havia sido dado em forma de cortesia pela rainha Sofia.
Os temas políticos e econômicos tratados durante a visita foram ofuscados por este fato curioso, embora banal, que mereceu mais destaque que as decisões tomadas no encontro. Alguns tratados econômicos e bilaterais foram assinados durante a ocasião, mas nem chegaram ao conhecimento do público, já que a mídia preferiu substituí-los pelo episódio da compoteira.
Presidente discreto
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, conhecido no meio acadêmico e político como um homem discreto, voltado às atividades intelectuais e avesso a badalações, à primeira vista não possuía o perfil que agradava à mídia no quesito espetacularização da notícia. A rotina do presidente não contribuía para a mídia conceder grande destaque à sua vida privada. Quando não estava trabalhando em seu gabinete no Palácio do Planalto, o presidente aproveitava seu tempo livre para descansar em sua residência oficial (o Palácio da Alvorada), na fazenda de sua família em Buritis (Minas Gerais), ou em seu sítio em Ibiúna (interior de São Paulo).
Ao contrário de antecessores como Fernando Collor de Mello e Itamar Franco, Fernando Henrique freqüentava muito pouco a vida noturna de Brasília, com raras aparições em restaurantes da capital federal. Apenas nas viagens internacionais o presidente se permitia desfrutar um pouco mais dos prazeres que a vida de um cidadão comum oferece. Além de uma vida privada discreta, o passado político de Fernando Henrique contribuiu para que o ex-presidente tivesse credibilidade junto aos meios de comunicação de massa brasileiros sem necessariamente realizar ações de impacto para a imprensa.
Embora reunisse uma série de características que, a primeira vista, não facilitavam a espetacularização, Fernando Henrique não fugiu à regra de ex-presidentes. Dentro e fora do Brasil, sua rotina foi vista de perto por todas as câmeras, lentes e gravadores da imprensa brasileira. Se a sua vida privada não despertava tanto interesse midiático, suas ações como chefe de Estado atraíam os olhares dos jornalistas.
Assim como ocorreu com todos os presidentes desde que o regime democrático foi reinstituído no país, a rotina de Fernando Henrique foi acompanhada diariamente por uma série de profissionais da imprensa contratados pelos veículos de comunicação especificamente com este objetivo. O Palácio do Planalto, sede do Poder Executivo brasileiro, reserva até hoje uma sala para os profissionais de imprensa que acompanham todas as ações do chefe de Estado. O ‘Comitê de Imprensa Tancredo Neves’, como o local é denominado, está situado no térreo do Palácio, atrás do salão de entrada principal.
Em 2001, já no segundo mandato de FHC, eram credenciados no Planalto 338 profissionais da imprensa, entre repórteres, cinegrafistas e fotógrafos. Até setembro de 2002, estavam credenciados no Palácio 351 profissionais. Apenas cinco profissionais de cada veículo podem ser credenciados anualmente no Planalto, número suficiente para transformar a sede do Executivo em uma das principais fontes de notícia da mídia nacional brasileira.
Situações inusitdas
Uma análise desenvolvida pela autora deste artigo nos quatro jornais de maior circulação nacional durante o governo FHC, publicada sob o formato de tese de mestrado na Faculdade de Comunicação Social da UnB (Universidade de Brasília), mostra que O Globo, O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e Folha de S. Paulo narraram não apenas o cotidiano político do ex-presidente da República. Os quatro jornais priorizaram a cobertura de situações ‘inusitadas’ vividas pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em momentos formais do cotidiano de um chefe de Estado.
Não fosse o olhar atento dos jornalistas e a percepção momentânea dos fotógrafos, seriam episódios corriqueiros da rotina presidencial. As matérias publicadas nos quatro jornais, entretanto, revelaram momentos de gafes, deslizes, constrangimentos e quebras de protocolo vivenciadas pelo presidente da República que se tornaram prioridade dos quatro jornais ao longo dos oito anos de governo FHC. Em todos os episódios, os profissionais da imprensa tiveram como foco o desvio da cobertura do fato político para as curiosidades ocorridas com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso
Dos quatro jornais analisados, o Estado de São Paulo foi o que mais buscou um equilíbrio no enfoque entre temas políticos e assuntos voltados para o entretenimento. Os demais jornais, especialmente O Globo e a Folha de São Paulo, destacaram os fatos ‘inusitados’ e concederam menor ênfase aos temas densos da cobertura presidencial. É importante ressaltar, contudo, que os quatro jornais analisados, mesmo com maior ou menor registro de espetacularização das notícias, reservaram grande espaço para as chamadas matérias de interesse humano. Cada um à sua maneira, O Globo, a Folha de S. Paulo, o Estado de S. Paulo e o Jornal do Brasil mantiveram a característica atual do jornalismo de reservar espaço para temas considerados ‘mais leves’ que os políticos e econômicos.
As chamadas soft news (notícias de interesse humano ou fait divers, para os franceses) possuem carga espetacular potencialmente maior. Normalmente, elas são narrativas que estão mais próximas da linguagem literária, com textos mais livres que se relacionam com fatos não necessariamente imprescindíveis para uma comunidade. As hard news (notícias de conteúdo jornalístico mais denso, como as editorias de política e economia) possuem estrutura de texto mais rígida e são normalmente prisioneiras da estrutura jornalística da pirâmide invertida – lead, sublead e corpo da matéria. Os jornalistas raramente inserem nas hard news palavras e expressões de conteúdo emotivo e tradicionalmente ilustram esse tipo de matéria com fotos das autoridades citadas na matéria ou com infográficos com o resumo das informações citadas no texto
Além do episódio da ‘quebra da compoteira’, os jornais publicaram matérias como ‘a dança presidencial’ do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em reunião do Mercosul na Colômbia; os ‘bocejos’ de FHC nas comemorações do Dia da Independência em 2001 na Esplanada dos Ministérios; além dos ‘beijos de esquimó’ que o ex-presidente foi obrigado a reproduzir ao receber no Brasil autoridades da Nova Zelândia em 2001. Os episódios mostram que o ofuscamento dos temas políticos ocorre quando a intenção do jornalista é, de fato, conceder uma conotação menos formal à matéria.
Nas chamadas matérias de interesse humano é possível notar com maior clareza a utilização de elementos como a inclusão de linhas pretas ao redor das matérias, até a publicação de box com informações curiosas sobre o acontecido. Quando a intenção é transmitir ao público uma visão mais ‘espetacular’ de um fato, como no episódio da dança presidencial na Colômbia, os jornalistas utilizam esses recursos de forma recorrente.
Busca pelo leitor
Luiz Gonzaga Motta (2002b) resume a questão do estilo das matérias de entretenimento no que chama de ‘contraditória convivência entre a objetividade e a subjetivação’ no jornalismo brasileiro. Segundo ele, embora o paradigma dominante da profissão ainda seja a questão da objetividade, as notícias publicadas nos meios de comunicação de massa revelam a contradição vivida pelos profissionais da imprensa. Ao mesmo tempo em que perseguem textos e narrativas objetivas, também estão em busca de elementos que transmitam ao público imagens reis do que aconteceu. ‘Na contemporaneidade, o jornalismo é o lugar por excelência de realização da ambigüidade e da complexidade da experiência do ser humano’, afirma o autor.
Tamanho espaço para as chamadas soft news durante o governo Fernando Henrique Cardoso se justifica com o argumento de que as notícias de interesse humano agradam aos leitores também porque eles vivem, diariamente, os mais diversos tipos de situações que irrompem o fluxo tradicional da vida. Mesmo as celebridades do meio político, que a primeira vista parecem viver de maneira distinta do restante da população por se dedicarem publicamente às atividades profissionais, também enfrentam momentos de descontração e entretenimento que despertam a atenção do público.
Os fatos menos formais da rotina de figuras como o presidente da Republica aproximam a sua realidade do restante da população. A vida, por si só, não é constituída apenas de experiências objetivas e formais. Ao redigir notícias que revelam curiosidades das personalidades públicas do país, os jornalistas têm a oportunidade de aproximar realidades tão distintas. Como afirmam Richard Sennett (1998) e Neal Gabler (1999), os espectadores precisam ver nos atores do processo político traços de sua personalidade.
Até mesmo em relação a uma figura costumeiramente marcada pela sobriedade, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a espetacularização da notícia tornou-se característica de seus oito anos de mandato. Seria simplista definir a consolidação da espetacularização baseada apenas na justificativa de que esse tipo de matéria impulsiona as vendas dos jornais. É mais do que isso. Embora muitos temas importantes não sejam publicados em detrimento das matérias de interesse humano, as soft news estão consolidadas na dinâmica da produção de notícias dos principais meios de comunicação de massa do país.
Bibliografia
Arbex Júnior, José. Showrnalismo: a notícia como espetáculo. São Paulo: Casa Amarela, 2001.
Bourdieu, Pierre. Sobre a televisão: seguido de
a influencia do jornalismo e os jogos olímpicos. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
Gabler, Neal. Vida, o filme. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
Motta, Luiz Gonzaga. Imprensa e Poder. Brasília: Editora Universidade de Brasília, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002a. 366 p.
______ (org). Explorações sobre uma antropologia da notícia. Mimeo, UnB, 2002b.
Rubim, Antonio Albino Canelas. Mídia e política no Brasil. João Pessoa: Ed. Universitária/UFPB, 1999.
Sennett, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
Weber, Maria Helena. Comunicação e espetáculos da política. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2000.
Wolf, Mauro. Teorias da Comunicação. 6. ed. Lisboa: Editorial Presença, 2001.
******
Docente da Uniceub, Brasília, DF