Este artigo vincula-se ao amplo campo dos estudos de economia política da comunicação [nossa vinculação se dá ao seguirmos os debates teóricos sobre determinados problemas para a Economia Política da Comunicação, especialmente os relacionados ao trabalho e formação profissional. Ver Bolaño (2000); Braga (2007); Dantas (2007); Ramos e Santos (2007)] e visa a aprofundar os conhecimentos sobre o trabalho e a produção no setor brasileiro de comunicação, a partir das inflexões induzidas pelos processos de globalização e flexibilização. Também pretende discutir as condições de construção das trajetórias profissionais e de integração dos sujeitos às suas estruturas produtivas. Os enfoques adotados aspiram contribuir para a adoção de instrumentos de políticas públicas que intervenham positivamente nos processos de inserção e desenvolvimento profissional dos sujeitos no campo da produção jornalística.
Contexto contemporâneo
Inicialmente, devemos trazer à cena, as mudanças mais significativas nas estruturas de produção e nas práticas de emprego, transformações que vem ocorrendo nas últimas décadas, além de analisar seus impactos na relação dos indivíduos com o trabalho e a formação profissional tradicional, com seus modelos dissociativos e fragmentadores. Contudo, é condição fundamental, para tanto, voltar as atenções para a tão propalada revolução digital, sob os processos de globalização e flexibilização. A citada revolução, que já modifica os modos de produção dos produtos comunicacionais, afeta os pressupostos da formação dos profissionais da área da Comunicação. A adequada qualificação profissional surge como um problema, levando pesquisadores e educadores a questionar os objetivos e o próprio sentido da formação em Comunicação, especialmente no jornalismo. Tudo a partir da percepção da inegável discrepância ‘entre a formação institucionalizada, a prática profissional e os anseios de transformação da sociedade’ (KORMAN DIB e DIAS, 2009).
Em termos cronológicos, pode-se considerar que, nas últimas quatro décadas, as relações de produção e trabalho passaram por transformações significativas nas sociedades capitalistas. Essas modificações, vale ressaltar, integram um contexto mais amplo de reestruturação do capitalismo mundial integrado. Os objetivos são aqueles apontados por Castels (1999): aumento da produtividade, da competitividade e da rentabilidade visando ao apoio do Estado para esse fim; a desregulamentação das economias, suspendendo ou atenuando as barreiras para a mobilidade de bens, serviços e capitais financeiros; e a privatização de setores ocupados pelo Estado. O objetivo final é permitir às empresas menores custos de produção e mercados mais lucrativos. Drucker (1986), Sennett (2006) e Castells (1999) apontam que a aplicação das tecnologias de informação e comunicação (TICs) nos processos produtivos e gerenciais, a desintegração vertical e a terceirização das operações produtivas associadas ao modelo japonês de produção com um número extremamente reduzido de trabalhadores levam a uma nova configuração organizacional e a uma reestruturação do emprego em múltiplas escalas. Outra mudança a ser mencionada refere-se à desregulamentação dos mercados de trabalho e à flexibilização das práticas de emprego (LARANGEIRA, 2004; JATOBÁ e ANDRADE, 1993).
Essas transformações influenciaram de forma decisiva as dinâmicas culturais e as práticas sociais (PAIS et al, 2005). Nesse contexto, parece perder sentido uma série de crenças e garantias que, sem dúvida, sustentavam os pilares do mundo do trabalho. A consequência desse novo cenário são os impactos contundentes sobre as culturas profissionais e a relação do sujeito com o trabalho e o devir profissional (KORMAN DIB, 2007; SENNETT, 2006; BAUMAN, 1998). Remetendo às contribuições de Pais et al (2005), Campo (2005) e Bourdieu (1997), o panorama contemporâneo afetou o sistema educacional. A partir da realidade do fim do ‘pleno emprego’, as trajetórias educacionais não garantem mais a inserção profissional. Quanto aos sujeitos produtivos, não trabalham obrigatoriamente na mesma área de sua formação. Não se pode negar o desencanto, e mesmo desânimo, que ronda a formação para o mercado de trabalho. Fazendo uma breve digressão histórica, em outros tempos as trajetórias seguiam a direção das carreiras legitimadas nas empresas. Hoje, as carreiras passaram a ser de responsabilidade dos sujeitos, com a descontinuidade marcando as trajetórias profissionais. Em outros termos, existe o que podemos considerar de ‘fases de emprego’ e ‘fases de desemprego’. E, como mudou também o perfil dos profissionais, acabou surgindo uma série de desafios ao sistema educacional, especialmente ao ensino superior e o profissionalizante, voltados para a formação e qualificação [tradicionalmente, a qualificação é definida como um conjunto de saberes e conhecimentos que o trabalhador precisa possuir como requisito para desempenhar determinado cargo ou função dentro de uma organização; esse conjunto de saberes e conhecimentos é classificado e certificado na forma de cursos, graduações, pós-graduações etc.] da força de trabalho.
No cenário atual, cada vez mais as empresas buscam trajetórias educacionais não garantem mais a inserção profissional, com visão estratégica do negócio e conhecimentos da realidade em que atuam. Também são alvos aqueles funcionários capazes de agregar valor ao produto e ao cliente, sempre a partir de soluções inovadoras.
A consequência do surgimento desse novo perfil foi também o aparecimento em cena de novas exigências no que diz respeito à qualificação profissional, por um lado, e ao sistema de ensino, por outro. Agora, formar para o mercado vai além do ensino e da aprendizagem das tecnologias, técnicas e ferramentas. Hoje, a formação inclui a implicação subjetiva, análise de contexto, propostas de transformação do entorno, eliminando possíveis barreiras disciplinares no sentido de contextualizar e integrar saberes fragmentados e dispersos sejam eles tácitos ou explícitos (SENNETT, 2006; MORIN, 2002). Aproveitando a contribuição de BOTTINO, DIAS e KORMAN DIB (2006), visualizamos a saída do sujeito da esfera de ação individual para o trabalho coletivo e a criação de visões compartilhadas, com capacidade de tomar decisões e assumir responsabilidades (DUPAS, 1999).
No Brasil, o desafio para as instituições de ensino é formar profissionais capazes de operar nas atuais estruturas produtivas com capacidade crítica. Este desafio pedagógico deve superar a simples incorporação de novos conhecimentos (teorias, métodos, técnicas, ferramentas) aos currículos e programas, ou seja, significa que para determinada instituição se apresenta o imperativo de acompanhar o contexto atual dos diversos campos e saberes. Caso contrário, na hipótese de não se atualizarem, podem se ver na posição, nada confortável, de ensinarem aquilo que já não mais se faz/usa ou que se deixará de fazer/usar em pouco tempo. Oferecer aos sujeitos o desenvolvimento daquela inteligência e daquele comportamento necessários para trabalhar e produzir no sistema capitalista, inserido no processo de globalização, traz à tona a necessidade de reformas no modelo de ensino tradicional, que tem sido alvo de variadas críticas (KORMAN DIB e DIAS, 2009).
Nesse momento, em que se trata do contexto das instituições de ensino diante das novas realidades que se apresentam, o presente texto se aproxima de um ponto fundamental na obra de Bachelard (2000), a partir da discussão que no contexto atual se coloca sobre o campo da comunicação e as diretrizes norteadores para o curso de jornalismo, ou seja, a ruptura proposta com o determinismo científico, com o método cartesiano e com o pensamento objetivo. Segundo o autor, a epistemologia cartesiana é uma epistemologia em crise.
Na sua crítica, ele afirma que ‘o método cartesiano é redutivo, não é indutivo’ (p. 121). Quanto aos métodos de pesquisa, em nenhuma fase do desenvolvimento do pensamento científico eles perdem a força. Para Bachelard, o pensamento complexo é aquele ávido de totalidade. Considera, também, que o fenômeno é um tecido de relações, portanto não há fenômenos simples, natureza simples, nem tampouco substância simples, porque a substância é uma contextura de atributos. Não existem obviamente idéias simples, porque, para serem compreendidas, necessitam ser inseridas num sistema (complexo) de pensamentos e experiências. Ao romper com as evidências, introduzindo o conceito de ruptura com a epistemologia cartesiana, a epistemologia de Bachelard propõe uma pedagogia do pensamento complexo. Mais do que isso, alerta para a necessidade de estarmos, na prática científico-docente, relendo o simples sob o múltiplo, através de uma visão de complexidade. A tarefa de investigar, lançar luz sobre qualquer objeto dentro do universo da Comunicação, com o advento da internet, a convergência de mídias, as tão acessadas notícias, informações em ‘tempo real’, não pode ser realizada por práticas científicas baseadas nos enfoques estritamente racionalistas-positivistas. É necessário promover um exercício com todas as dialéticas. Só assim, tanto o pensamento quanto os métodos poderão apreender o citado objeto.
Como ressalta Fonseca (2008) sobre as formulações de Bachelard referentes às rupturas epistemológicas:
… o conhecimento se estrutura na fronteira do desconhecido e do conhecido, instaurando a permanente necessidade de rupturas e abertura a uma dialética da descontinuidade, de olhares múltiplos para um mesmo objeto. Ainda no campo da noção de rupturas epistemológicas, o autor afirma que a Ciência se opõe à opinião. Em ciência, a opinião está na esfera de outros campos, nada é dado, tudo se constrói. O senso comum e as outras formas de manifestação, o conhecimento vulgar, a sociologia espontânea, a experiência cotidiana são opiniões, formas de expressão, que não representam e não têm o valor de conhecimento científico (FONSECA, 2008, p. 361).
Na prática docente com os alunos, o exercício deve ser o de fazê-los refletir, observar, questionar, assumindo o papel de quem investiga. Com isso, as chances de começarem a caminhar com alguma convicção no sentido do entendimento dos processos complexos com os quais irão se defrontar tornam-se maiores.
Voltando as atenções para o aspecto da discussão que envolve o campo da comunicação, percebe-se um problema referente ao próprio status deste campo, pois não existe unidade conceitual, conforme explicita Martino (2008), nas bibliografias que costumamos qualificar de ‘comunicação’ e, em cada território geográfico-cultural, ‘os estudos de comunicação assumem feições diferentes’ (FELINTO, 2007, p. 47). O objetivo do autor é tentar delinear o que se entende por ‘teoria da comunicação’ a partir do conteúdo das publicações recentes intituladas desse modo. O interessante é que ele não se propõe a observar o campo de fora, mas como participante do jogo – e, consequentemente, partilhando dúvidas e questionamentos a respeito da prática teórica e docente.
Denunciar a filosofia existente e fornecer à ciência a filosofia que merece. Podemos afirmar ser este um dos objetivos de Bachelard (2000) que, no seu projeto epistemológico, caminha no sentido de um pluralismo filosófico e assinala à filosofia o lugar entre a ciência e a poesia, como linha de demarcação que permite a liberdade e a eficácia. Para um espírito verdadeiramente científico todo conhecimento representa uma resposta a uma pergunta, sendo o resultado de um exaustivo trabalho de interrogação da realidade. Nesse sentido, o objeto da História das Ciências apresenta como característica fundamental o fato de que ele não nos é dado. Pelo contrário, deve ser por nós construído, num processo sem solução de continuidade. Por isso, exige do historiador o que Bachelard chama de ‘novo espírito científico’. E, consequentemente, assim como na construção de um objeto de ciência, seja ela qual for, o objeto da História das Ciências exige uma determinada postura intelectual.
Remetendo a Japiassu (1976) a partir das ideias de Gaston Bachelard, deve-se pensar uma história das ciências que não seja meramente descritiva, não se limitando a uma narrativa cronológica das produções do saber exige. Para o autor, de acordo com Bachelard, a história das ciências não é absolutamente empírica, mas sim, a história do ‘progresso das ligações racionais do saber’. O ponto de partida do pensamento bachelardiano é a própria ciência já constituída. Porém, ele não se limita ao relato cronológico das ideias, muito menos a uma ordenação dos problemas científicos, segundo sua complexidade crescente. Contrariamente, ele propõe uma inversão epistemológica e, ao retificar seu ponto de partida, nos faz entender que a realidade estudada pela ciência não é, de modo algum, simples. Ela vem a tornar-se simples como resultado de um trabalho de simplificação. É ‘a solução encontrada que reflete sua clareza sobre os dados’ (JAPIASSU, 1976, p.58).
Até aqui, no presente texto, as transformações nas relações de produção e trabalho foram analisadas em relação a todos os sujeitos produtivos e setores da produção. É pertinente, agora, questionar de que forma as transformações nas relações de produção e trabalho atingem a formação e a posterior integração dos profissionais ao campo da Comunicação, especialmente, do jornalismo?
Conforme as análises empreendidas, torna-se nítida a constatação de que o campo da comunicação está no centro desse amplo processo de mudanças. Ele é, assim, força transformadora e objeto/campo em transformação. Os avanços da tecnologia – com destaque para a revolução digital e os artefatos dotados de larga capacidade de processamento de informação – multiplicaram os fluxos de objetos técnicos que atravessam a sociedade contemporânea e induziram ‘a constituição de um campo de mediação generalizada, em cujo centro está instalada a própria tecnologia. A generalização da mediação técnica acarreta transformações profundas nos modos de atuação das práticas produtivas’ (AGUIAR, 2005, p.86). Aqui remetemos à contribuição de Wolf (1987, p.13) para quem as comunicações são um importante setor industrial, um objeto simbólico objeto de consumo em grande escala, um investimento tecnológico com expansão ininterrupta, uma experiência pessoal vivenciada no dia-a-dia, uma esfera de embates políticos, um modo do sujeito obter informações e de passar o tempo, além de um sistema de intervenção cultural e de agregação social.
Cabe ressaltar as discussões já apreendidas por Martín-Barbero (2005, 2004, 2001), Canclini (2000), Ortiz (2003) e Sarlo (2000), ao destacarem que os meios de comunicação de massa e as indústrias culturais, especialmente no contexto latino-americano, vem exercendo papel de fundamental importância no momento em que pensamos na formação de um espaço público. Como aponta Canclini (2001), o ingresso efetivo dos países na esfera do capitalismo globalizado acontece de diversas maneiras e em diferentes condições. Porém, na acentuada expansão tecnológica e econômica das indústrias culturais em escala global, os países latino-americanos ocupam, inegavelmente, uma posição periférica, o que pode ser observado na reduzida participação no que se refere à produção e ao faturamento global do setor (CANCLINI, 2001).
O campo da Comunicação experimenta enorme diversificação de produtos e, ao mesmo tempo, a integração de suas estruturas de produção e distribuição. Ao tomar como exemplo a produção do jornalismo, Winck (2006) observa que, com a convergência de mídias, o jornalismo impresso e o jornalismo audiovisual tendem a se fundir, oferecendo produtos informativos com som, texto e imagem. Nesse aspecto, as novas tecnologias promovem novas formas de linguagem, percepção, sensibilidade e sociabilidade, levando a um redirecionamento nas identidades dos meios de comunicação em sua dimensão social. O principal impacto acontece sobre os processos de constituição e exercício da cidadania e na configuração do espaço público (MARTÍN-BARBERO, 2004).
Especificidades no campo da comunicação
As transformações descritas apontam desafios para a pesquisa e formação profissional na área da Comunicação, principalmente para a formação específica para o jornalismo. Mesmo com o aumento dos estudos sobre as TCIs, segundo Rebouças (2005) e Martin-Barbero (2004) há uma predominância tendência dos enfoques tecnicistas e gerenciais nas análises sobre a atualização tecnológica, bem como a preferência, quase que exclusiva, pelo estudo dos impactos das novas tecnologias na recepção dos produtos. Aparecem de forma incipiente as reflexões sobre os interesses políticos e econômicos que conformam e direcionam as mudanças tecnológicas, seus propósitos e lógicas produtivas.
Entre os assuntos relegados a segundo plano, estão os impactos sobre a formação profissional e as possibilidades de inserção profissional no campo do jornalismo. As transformações impostas pela digitalização da comunicação e da informação nos modos de produção e consumo modificam as áreas de atuação do jornalista, aprofundando o fosso entre a realidade profissional e os pressupostos da formação do bacharel em jornalismo.
Deve-se pontuar que a discrepância entre as premissas que orientam a formação e a complexidade da vida social representa uma questão mais profunda, com reflexo na formação dos profissionais de todos os setores produtivos e não apenas na área da Comunicação ou no ensino de jornalismo. Esse fato tem origem principalmente nos princípios de organização dos saberes e das experiências no processo de ensino-aprendizagem que constituem o modelo de ensino, que tendem à dissociação (MORIN, 2002). No caso da formação específica para o jornalismo, essa contradição é agravada ao ser concebido como habilitação do curso de Comunicação Social, levando ao enfraquecimento da sua especificidade teórica, epistemológica, profissional e ética. Historicamente, esse processo se vincula aos confrontos políticos decorrentes do período pós-segunda guerra mundial e aos resultados da conferência da Unesco, realizada em Paris em 1948, e a criação do Centro Internacional de Estudos Superiores de Jornalismo para a América Latina (Ciespal) em 1960, com sede na Universidade Central de Quito, Equador. Como lembra Ianni (1976, p. 47), em 1961, a Conferência de Punta del Este conclui ser necessário um programa de ‘modernização’ da educação latino-americana que inclui, entre outros pontos, despolitizar o processo de ensino-aprendizagem e implementar o controle centralizado do sistema educacional.
No caso do ensino de jornalismo, esta ‘modernização conservadora’, como a chamou Florestan Fernandes, ou ‘modernização reflexa’, segundo Darcy Ribeiro, implicou uma ruptura da orientação teórica das escolas, que até então era centrada numa formação clássico-humanística, com ênfase nos estudos éticos, jurídicos, filosóficos e literários. Esta orientação, por influência do Ciespal, será rejeitada por ‘não-científica’, e substituída pelas disciplinas valorizadas pelo funcionalismo norte-americano (MEDITSCH, 1999, p. 2).
Após o golpe militar de 1964, esse programa liderado pelo Ciespal é posto em prática [no decorrer de 1965, são realizados quatro seminários na América Latina, um dos quais, no Rio de Janeiro, sob a coordenação de Celso Kelly, dirigente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e professor com formação no Ciespal]. A política de controle centralizado foi expressa através do currículo mínimo [o Parecer 984/65, do Conselho Federal de Educação, foi elaborado por Celso Kelly a partir da necessidade de uma formação polivalente do jornalista, ‘de modo que se habilite ao exercício da profissão em qualquer dos ramos e, ainda, no campo das investigações específicas, no das relações públicas e no da publicidade’ (KELLY, 1966, p. 76)], no qual se substituía o curso de Jornalismo e a formação específica do jornalista pelo curso de Comunicação Social e por um novo tipo de profissional polivalente: o comunicador [a Resolução 11/69, do MEC, de 06 de agosto de 1969, determinou a implantação do curso de Comunicação Social com cinco habilitações, entre as quais, o jornalismo]. O problema, conforme aponta Meditsch (1999, p. 4) é que os cursos de Comunicação Social – ‘introduzido como estratégia política na Guerra Fria’ – surgiram e permaneceram quase sempre separados das atividades profissionais, nutrindo um desprezo pela prática jornalística e produzindo diversos efeitos perversos, dentre os quais, ‘a violentação das expectativas dos estudantes que ingressam na universidade em busca da carreira profissional a que se sentem vocacionados’ (idem, p. 5) [a outra consequência dessa perversão é se tornarem ‘comunicadores sem mercado de trabalho e sem prática, só encontrando colocação na própria universidade como comunicólogo’ (MEDITSCH, 1999, p.5)].
A profissionalização do jornalista – ou seja, a ideia da construção de uma carreira profissional – possui vínculos estreitos com o processo histórico de construção das sociedades democráticas. É possível entender a história do jornalismo na democracia a partir de duas polarizações: na vertente econômica, a imprensa se torna, no século 19, com a instituição da informação enquanto mercadoria, em um negócio empresarial; e, simultaneamente, na perspectiva política, a profissionalização dos jornalistas – resultado da comercialização da imprensa –, que implicou na disputa pela definição das notícias em função de valores éticos e normas deontológicas, que ressaltam o papel político da informação nas democracias. Segundo Traquina, não só a expansão comercial dos jornais possibilitou a criação da carreira jornalística, como esse novo paradigma – fornecer informação – permitiu a emergência de valores que continuam sendo identificados com o jornalismo: ‘a notícia, a procura da verdade, a independência, a objetividade e uma noção de serviço público’ (TRAQUINA, 2005, p. 34).
Evidentemente, cada período histórico é capaz de definir jornalismo e uma resposta simplista não é suficiente na contemporaneidade, já que as TCIs permitem a qualquer um proclamar que ‘faz jornalismo’. Portanto, mais do que tentar responder a uma indagação formulada em termos do pensamento metafísico-platônico – ‘o que é jornalismo’ interroga pela essência imutável do jornalismo –, uma pergunta na perspectiva do método genealógico visa compreender um regime de diferença no passado em relação àquilo que se apresenta no presente. É nesse sentido que a pergunta feita por Kovach e Rosenstiel (2004) – ‘para que serve o jornalismo?’ – adquire uma dimensão ético-política para ultrapassar determinados impasses aqui discutidos. ‘A principal finalidade do jornalismo é fornecer aos cidadãos as informações de que necessitam para serem livres e se autogovernar’ (KOVACH e ROSENSTIEL, 2004, p. 31). Para esses autores, até mesmo os pioneiros da chamada imprensa sensacionalista, no final do século 19, ou dos tabloides da década de 1920 enxergavam a promoção da democracia e a construção de um sentido de comunidade como valores fundamentais do jornalismo [para aprofundar essa discussão sobre a chamada imprensa sensacionalista, a lógica da sensação e o entretenimento como um critério de noticiabilidade, ver AGUIAR (2009; 2007)].
Pulitzer e outros barões da imprensa popular fizeram dos imigrantes seu público básico. O estilo de escrever era muito simples, de forma que os imigrantes pudessem entender tudo. As páginas editoriais os ensinavam a ser cidadãos. Os novos americanos se reuniam todas as noites, depois do trabalho, para conversar sobre o que haviam lido nos jornais, ou ler para outros amigos e discutir os fatos relevantes do dia (KOVACH e ROSENSTIEL, 2004, p. 252).
Nessa mesma linha de análise, Traquina (2005, p. 50) lembra que a criação de um ‘novo jornalismo’ no século 19 – o jornalismo de informação – conseguiu não só aumentar a circulação dos jornais, mas, com preço acessível, também passou a incorporar um público mais amplo e generalizado, além de politicamente menos homogêneo. Esse modelo de produção jornalística destaca, principalmente, notícias sobre os fatos locais do cotidiano, os processos de justiça, os crimes e as catástrofes, sem qualquer artigo opinativo sobre política, contribuindo para consolidar o novo conceito de jornalismo, que separou e valorizou o fato em detrimento da opinião, e efetuou a passagem de um jornalismo de opinião para um jornalismo de informação [a partir da discussão de Walter Benjamin, podemos também afirmar que a fase de produção industrial dos jornais também trouxe a ‘perda da aura’ que envolvia a fase publicista da imprensa, com seus longos artigos opinativos voltados para a educação política de seus leitores, conforme os ideais iluministas. Ver AGUIAR, 2007, p. 19].
É nesse contexto histórico e cultural que se dá o desenvolvimento da formação profissional e do ensino universitário em jornalismo, outros dois pontos fundamentais no processo de profissionalização e constituição da carreira de jornalista. Segundo Traquina (2005, p. 84), a formação profissional em jornalismo no ensino superior aparece nos Estados Unidos nos anos 1860, na atual Universidade de Washington e Lee [o ensino em jornalismo aparece logo em seguida em outras universidades: Missouri (1878) e Pennsylvania (1893)]. No início do século 20, já estão difundidos dois padrões de funcionamento acadêmico dos cursos: de um lado, as escolas de jornalismo que funcionam de modo independente dentro das universidades, conforme estabelecido em Missouri (1908); de outro, os departamentos autônomos no interior das faculdades de ciências sociais e humanas, tal como na universidade de Wisconsin (1904). Foi o padrão da escola independente – especialmente a da Universidade de Missouri, que tinha em sua grade curricular, simultaneamente, disciplinas teóricas específicas e disciplinas da prática profissional, como a disciplina ‘Jornal-laboratório’ – que serviu de base para a proposta de criação do curso superior de jornalismo apresentado pelo I Congresso Nacional de Jornalistas, realizado em 1918, no Rio de Janeiro, pela Associação Brasileira de Imprensa. Contudo, os primeiros cursos de jornalismo [em 1946, o Ministério da Educação definiu as diretrizes pedagógicas para o ensino de jornalismo e fixou sua estrutura curricular] do país só começaram a funcionar em 1947, em São Paulo [somente em 1958, com o Decreto 43.839, passou a ser permitido o ensino de jornalismo em instituição autônoma, surgindo a Faculdade de Jornalismo Cásper Líbero. O curso de jornalismo dessa faculdade, criado em 1947 e, geralmente visto como o primeiro do país, funcionava junto a Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras de São Bento (LOPES, 1989, p. 25)] e, no ano seguinte, na Universidade do Brasil, na cidade do Rio de Janeiro. Ao contrário da reivindicação original da categoria, os cursos de jornalismo foram implantados dentro de faculdades de Filosofia, acarretando uma grade curricular com a predominância de disciplinas de formação cultural geral, sem contemplar um equilíbrio com as disciplinas de formação profissional.
Em uma perspectiva histórica complementar a de Traquina, Marques de Melo (2004) enxerga também em dois diferentes modelos acadêmicos das universidades norte-americanas mais uma outra polêmica que permanece no ensino de jornalismo no Brasil. Enquanto a Universidade de Missouri adotou o modelo da graduação, formando basicamente repórteres – visando, como mercado de trabalho, os jornais de médio e pequeno porte -, a Universidade de Columbia [Joseph Pulitzer, que em seu célebre ensaio de 1904, ‘A escola de Jornalismo’, defendia a formação superior em jornalismo realizou uma doação de dois milhões de dólares para a Universidade de Columbia] implementou, em 1912, o modelo da pós-graduação, objetivando preparar editores e analistas para a grande imprensa, com diplomados em outras áreas de conhecimento.
A contextualização histórica aqui apresenta é fundamental para objetivo proposto nesse artigo: o jornalismo é um instrumento político imprescindível para o avanço da democracia no país, pois a informação jornalística é um dos dispositivos simbólicos que cria as condições de possibilidade para a sociedade ter capacidade de se autogovernar e atuar politicamente. É nesse sentido que a Comissão de Especialistas [a comissão foi instituída pela Portaria n. 203/2009 e composta pelos seguintes membros: José Marques de Melo (presidente, Universidade Metodista de São Paulo), Alfredo Eurico Vizeu Pereira Junior (Universidade Federal de Pernambuco), Eduardo Barreto Vianna Meditsch (Universidade Federal de Santa Catarina), Lucia Maria Araújo (Canal Futura), Luiz Gonzaga Motta (Universidade de Brasília), Manuel Carlos da Conceição Chaparro (Universidade de São Paulo), Sergio Augusto Soares Mattos (Universidade Federal do Recôncavo Baiano), Sonia Virgínia Moreira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)] recebeu do Ministério da Educação a tarefa de discutir o ensino de jornalismo – polarizado entre a formação específica versus a formação como habilitação em comunicação – no contexto das transformações vividas pela sociedade brasileira e visando o fortalecimento da democracia. O relatório [a comissão foi instalada em fevereiro de 2009, realizou três audiências públicas no país – Rio, Recife e São Paulo – e entregou o relatório de 26 páginas no dia 18 de setembro de 2009] da comissão propõe ao MEC que as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Jornalismo sejam desmembradas das Diretrizes Curriculares Nacionais para a área de Comunicação Social e suas habilitações [as DCN para a área de Comunicação foram estabelecidas pela Resolução CNE/CES 16/2002. É o único caso de diretrizes formuladas para uma área, pois a Lei 9131/1995 estabelece em seu artigo 9 que as diretrizes devem ser formuladas para os cursos. O curso de Cinema e Audiovisual foi desmembrado das DCN da área de Comunicação pelo CNE através da Resolução n. 10/2006].
Trata-se de um desafio para os cursos de graduação plena, cuja autonomia curricular constitui imperativo para a reciclagem dos seus projetos pedagógicos, restaurando a identidade do jornalismo sem abdicar de sua inserção histórica na área da comunicação e de sua natureza acadêmica como ciência social aplicada (Comissão de Especialistas, 2009, p. 14).
O relatório destaca ainda que, no plano internacional, a Unesco reviu seu erro político e reconheceu a importância do jornalismo para o desenvolvimento social e a consolidação da democracia, passando a recomendar a formação específica de nível universitário e não mais uma habilitação atrelada à área de comunicação. Em 2007, essa nova proposta curricular da Unesco foi apresentada no I Congresso Mundial sobre o Ensino de Jornalismo. No Brasil, esse movimento de retomada do estudo específico do jornalismo foi marcado pela criação do Fórum Nacional dos Professores de Jornalismo (FNPJ) e da Sociedade Brasileira de Pesquisadores de Jornalismo (SBPJor), assim como instituição do Programa de Qualidade do Ensino de Jornalismo, lançado pela Federação Nacional dos Jornalistas e assinado pela Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós), Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação (Enecos), Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), SBPJor e FNPJ. Segundo a Comissão de Especialistas, estas iniciativas não representam um rompimento com a área acadêmica maior da Comunicação, e sim, ‘a sua revitalização, pelo fortalecimento de sua diversidade [a atual diretoria da Compós parece não compreender a importância política da diversidade para a área, visto que no documento ‘Posição final sobre proposta de diretrizes de Jornalismo’ manifesta sua preocupação com a ‘atomização do campo comunicacional’. Com uma perspectiva conservadora e historicamente ultrapassada, entende que o contexto atual favorece ‘o comunicador polivalente’. (Diretoria da Compós, 2009, p.1) e dos vínculos com as práticas sociais e culturais que a originaram, justificando sua existência’ (Comissão de Especialistas, 2009, p. 14).
Ao apresentar a fundamentação sobre as diretrizes propostas, o relatório da Comissão assume as perspectivas das multiplicidades teóricas sobre o jornalismo. Ou seja, entende que existe uma disputa teórica e política dentro do campo sobre o seu fazer e saber jornalísticos. Desse modo, a partir das teorias construcionistas, estruturalistas e interacionistas, entende o jornalismo com múltiplos e novos papéis: a) uma forma de conhecimento (p. 25); b) um dispositivo simbólico de construção da realidade social (p. 5); c) uma dimensão da cultura, engendrando mapas de significado e uma gramática cultural (p. 6-7); lugar de fala dos definidores primários e de negociação entre fontes de informação e jornalistas (p. 5).
Numa profissão em que a liberdade de informar constitui requisito essencial e numa atividade em que a independência editorial representa fundamento basilar e em que os valores do interesse público se tornam vetores determinantes das decisões cotidianas, as razões das escolhas têm de resultar evidentemente da consciência cívico-social. A ética que interessa à sociedade e ao jornalismo é aquela definida e sintetizada na Declaração Universal dos Direitos Humanos. É o ideário de um mundo a construir e o compromisso politicamente assumido de construí-lo. É, também, o referencial cultural mais avançado e sábio a que o jornalismo e os jornalistas se devem ater, na relação crítica com a realidade próxima a transformar (Comissão de Especialistas, 2009, p. 7).
Considerações finais
A formação específica de nível universitário para o exercício da profissão de jornalista é essencial para garantir o direito ao desenvolvimento de uma esfera pública democrática na sociedade brasileira contemporânea, caracterizada pela complexidade. As sociedades complexas requerem qualificações profissionais e formações acadêmicas específicas para diversas profissões; com o jornalismo, não pode ser diferente, pois o campo jornalístico configura-se como lugar de produção de um tipo de informação e de uma linguagem bem característica – a notícia e a reportagem – por ser amplamente acessível aos mais diferentes setores da sociedade.
A formação acadêmica em jornalismo não é, como muitos pretendem fazer crer, um cerceamento à liberdade de expressão e de opinião, pois a qualificação específica é um instrumento político de garantia do interesse público por informações de melhor qualidade jornalística, produzidas com responsabilidade social e parâmetros éticos. O que impede a livre e irrestrita divulgação de pensamento dos diversos segmentos sociais são os interesses econômicos e/ou políticos das empresas jornalísticas e dos monopólios da indústria cultural. No cenário das práticas de democracia participativa, o jornalismo deve ser entendido como um lugar de produção de conhecimentos singulares sobre a dinâmica imediata da realidade social e um campo de mediação discursiva dos interesses, conflitos e opiniões que disputam o acesso à esfera pública nas sociedades democráticas. Para que tal cenário se efetive, a formação desses profissionais deve atentar para a emergência de novas cartografias, nas quais os projetos não se realizam apenas como inserção e desenvolvimento na carreira, mas principalmente com implicação e envolvimento nas questões que permeiam as políticas de comunicação.
Em suma: o processo de fabricação da informação jornalística configura-se como um espaço público de lutas micropolíticas no qual diversas forças sociais, políticas e econômicas disputam, pela construção discursiva, a produção de sentido sobre a realidade social. No âmbito da economia política das cartografias profissionais, é imprescindível uma política pública de comunicação que garanta a formação específica em jornalismo. Os setores organizados da sociedade brasileira, representados na Comissão de Especialistas do MEC, avançaram ao recomendar uma formação profissional centrada na ética, na capacidade crítica e na competência técnica. Certamente, quem mais vai desfrutar da produção de informação jornalística de qualidade é a democracia e a sociedade brasileira.
******
Respectivamente, professora doutora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da PUC-Rio; professor doutor do Programa de Pós-graduação em Comunicação da PUC-Rio; e professora doutora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da PUC-Rio