A gíria das redações tem uma palavra para definir trapalhada jornalística: ‘barriga’. Diferente do ‘furo’ (que é a informação dada com exclusividade), uma ‘barriga’ é tudo o que um jornalista não quer, já que isso afeta diretamente a seriedade e a credibilidade de seu trabalho. No final de 2003, o Monitor de Mídia colheu nas páginas dos jornais catarinenses um episódio recheado de ‘barrigas’ que transformou a vida de uma anônima mulher em Joinville. Se num dia ela pensava estar grávida, logo depois seria presa e acusada de ter matado ou vendido o próprio bebê.
O caso Juliana tem ingredientes dignos de filme policial: uma mulher com medo de agulhas, um suposto rapto, um feto desaparecido, e muitas declarações conflitantes. Some-se a isso alguma imprudência médica, a freqüente pressa jornalística e contradições entre os depoentes. O Monitor de Mídia acompanhou o caso pelos jornais e escolheu as edições de A Notícia para apontar os principais deslizes cometidos numa cobertura que, desde o início, escolheu a vítima como culpada de um crime nunca cometido.
O mistério
No dia 11 de agosto, a microempresária Juliana da Silva Souza de Jesus, de 29 anos, desapareceu quando se dirigia a uma manicure. De acordo com a reportagem publicada no dia 14, a ida à manicure era um dos preparativos de Juliana para a cesariana pela qual estava prestes a passar. As informações davam conta de que a mulher deixara a casa com pouco dinheiro, levando o telefone celular, por meio do qual fez contato com o marido antes de sair.
Passados mais de três meses, novamente os jornais voltam a noticiar o caso. Desta vez, a mulher desaparecida passa a ser tratada como suspeita de crime. No sábado, 22 de novembro, A Notícia traz uma foto no alto da primeira página onde Juliana aparece algemada. Ao lado, a chamada ‘Presa mulher que sumiu de casa’. Na seção policial, a matéria afirma que apesar de localizada a desaparecida, a polícia tinha outro enigma a decifrar: onde estaria o bebê que Juliana estava esperando antes de sumir? Apesar de negar a gravidez, Juliana recebeu voz de prisão e ficou detida na Delegacia Regional de Joinville.
No dia seguinte, o jornal traz novos detalhes da história, mas trata Juliana com desconfiança: ‘Juliana agora alega gravidez psicológica’ é o título da matéria à página A12 da editoria de Polícia. De acordo com A Notícia, Juliana teria descoberto que se tratava de uma gravidez psicológica e, por isso, teria fugido para o Paraná, onde tinha amizades. A edição daquele domingo trazia ainda que ‘A mulher morava em Campo Mourão e trabalhava em Pitanga, uma cidade próxima, em uma casa de prostituição. A polícia suspeita que ela tenha vendido o recém-nascido porque naquela região paranaense onde foi encontrada há investigações sobre tráfico internacional de crianças e até de mulheres. Exames, nesta semana, vão comprovar se Juliana esteve grávida’.
Na terça, 25, nova carga sobre a acusada: o jornal dá voz às afirmações do ginecologista e obstetra que a estava acompanhando no caso. Conforme ele, Juliana estava grávida antes de desaparecer. Apesar de o médico não falar com a imprensa e não autorizar a divulgação de seu nome, o AN deu crédito ao profissional e difundiu sua versão. O jornal teve a informação de que o médico teria trazido dois envelopes com exames à polícia, mas teve acesso a eles. Acreditou na versão, sem checá-la devidamente. E cometeu mais um erro: deu as acusações, mas não ouviu o outro lado, no caso Juliana. A sucessão de erros na apuração e no equilíbrio das versões se alimenta de outros dois elementos: o ginecologista admitiu que a paciente não era freqüente no pré-natal e o marido confirmou que só a acompanhou em duas das consultas.
No dia seguinte, um detalhe vem à tona, acrescentando mais mistério ao caso: a acusada chama o delegado responsável pelas investigações, ergue a blusa e força a região abdominal, projetando a barriga para frente. A autoridade policial compara o estado de Juliana com as fotos tiradas na época em que contava oito meses de gravidez e comprova volumes abdominais semelhantes. Pela primeira vez, o delegado admite que ela possa ter simulado a gravidez. A Notícia informa que o novo fato pode alterar o rumo das investigações. A acusada passa por novos exames periciais. O marido, o advogado Hipócrates Fernandes, é ouvido e reafirma que ‘sentia o bebê se mexer’ e que teria acompanhado toda a gestação. O ginecologista que a atendia não comenta a novidade no caso. Mais uma vez, Juliana não é ouvida pela reportagem.
A perícia
Na quinta-feira, 27, ainda presa na Delegacia Regional de Joinville, Juliana aguarda o resultado dos exames feitos ‘para provar inocência’, noticia o AN. Desta vez, ganham destaques as falas da psicóloga Rita de Cássia Ferreira Ternes que passa a avaliar o caso. A especialista acha que não houve mesmo gestação, e que não deve ter acontecido gravidez psicológica, pois este estado se mantém apenas até o quarto mês de suposta gestação. Neste período, exames mais específicos detectam uma possível fraude. Segundo a psicóloga, Juliana desejava parto normal, mas seu médico preferia cesariana. Com pavor por agulhas, a paciente teria fugido um dia antes da cirurgia para ter o bebê por métodos naturais.
Na sexta, 28, a resolução do caso: a perícia comprova que Juliana não esteve grávida naquele ano e que jamais pariu. A Notícia estampa uma foto ocupando cinco das seis colunas do jornal, logo abaixo da manchete do dia. Na foto, Juliana parece comemorar o desfecho do caso com a família. Não há texto de apoio ou chamada, apenas a legenda: ‘FORA DA PRISÃO – A microempresária Juliana da Silva Souza (D) é abraçada pela irmã Nádia (c), depois de ser libertada pela polícia de Joinville. O marido Hipócrates Fernandes (e), emocionado, enxuga as lágrimas. Exames mostraram que ela não engravidou este ano. ‘Provei minha inocência’, declarou’. Na página A18, a matéria trouxe dados importantes para o entendimento do caso: o médico que acompanhava Juliana não teria feito ultra-sonografias nem exames de avaliação de risco fetal a pedido da paciente; os laudos dos exames periciais mostram que a paciente nunca deu a luz e que apresentava um mioma, mas ele não poderia ser confundido com um feto; a psicóloga Rita de Cássia Ternes afirma que Juliana passara por uma ‘gravidez iatrogênica’, isto é, provocada pelo médico durante o pré-natal e reforçada pela relação de confiança que se estabelece entre ambos. Com esses elementos e com os exames, o Caso Juliana estaria resolvido em tese.
Mas não foi o que se viu. No dia seguinte, 29, A Notícia dá continuidade ao assunto, dando destaque na sua primeira às acusações do médico que aparece pela primeira vez. A chamada é ‘Médico diz que foi enganado por Juliana’ e o título da matéria nas internas é ‘Médico de Juliana afirma que ela forjou a gravidez’. No texto, o ginecologista e obstetra Salomão Nassif Sfeir Filho parte para a ofensiva: ‘Ela é diabólica. Nem cheguei a tocar na barriga dela’. Ele admite que não fez ultra-sonografia, que apresentou à polícia um laudo feito por suas funcionárias com base nas informações do pré-natal que não foram perdidas numa pane que teve no computador, e que marcara a cesariana para que a paciente passasse por exames mais específicos já que ela se recusava a tal. O médico se defendeu, dizendo que a gravidez não era iatrogênica. O Conselho Regional de Medicina seria colocado no caso pela polícia. Mesmo tendo os laudos ao seu favor e alegando inocência desde a primeira matéria desde a sua localização, Juliana não foi ouvida por A Notícia neste dia. Só as acusações e justificativas do médico foram publicadas.
Os erros
Aliás, em nenhum momento da cobertura, Juliana foi tratada como vítima pelo jornal. Sempre recaiu sobre ela a dúvida, a suspeita sobre suas declarações. É o que se percebe na reportagem do dia 25 de novembro, onde o leitor encontra o trecho: ‘[o delegado Marco Aurélio] Marcucci comanda as investigações sobre o paradeiro do bebê, que tem pouco mais de três meses’. Perceba-se o tempo do verbo: presente do indicativo. Não há condicional, não há dúvida de que ele não exista.
É evidente que o jornalismo é uma atividade que se alimenta da dúvida. Diariamente, repórteres e editores se questionam sobre os fatos do cotidiano e orientam suas condutas por um ceticismo profissional. Duvida-se de tudo. A crença é de que este procedimento permita que o jornalista não se envolva com nenhuma das partes de um conflito e que, assim, possa dar a versão mais equilibrada e imparcial possível. A dúvida é necessária na condução das informações e na sua apuração. Entretanto, este Monitor de Mídia observou no caso Juliana uma sucessão de erros jornalísticos que não apenas alimentou uma dúvida salutar sobre as fontes de informação. Houve pré-julgamentos, o jornal deu mais peso a versões de um dos lados envolvidos, não se respeitou um princípio fundamental do Direito: ‘Todos são inocentes até prova em contrário’. Não havia provas de que Juliana tivesse dado à luz um bebê, e se não havia corpo, não havia crime. Repórteres, editores e redatores embarcaram apressados numa única versão, a que tinha um verniz mais científico, indubitável.
Em uma semana de jornais, Juliana passou de desaparecida a acusada de homicídio ou tráfico de crianças; permaneceu presa por sete dias; teve a sua imagem difundida na primeira página de um dos mais importantes jornais catarinenses, aparecendo algemada; esteve próxima do suicídio (conforme contou na edição de 12/12); foi desacreditada pelos próprios familiares (principalmente o marido, em 26/11).
O episódio convida a refletir sobre algumas questões: O jornal deve estampar fotos de suspeitos algemados na capa, mesmo ainda não estando provadas suas culpas em crimes? No meio de versões conflitantes, deve-se sempre dar mais crédito às declarações de quem possui mais instrução ou especialização profissional? É prudente um jornal publicar versões mesmo que a fonte não decline sua identidade ou o jornal tenha acesso às declarações por terceiros? O jornalismo que faz cobertura de casos policiais tem claro em seus procedimentos a diferença entre provas, indícios, suspeitas, acusações e culpabilidades?
Em 12 de dezembro, A Notícia informou que Juliana iria processar seu médico por negligência. O título da matéria da página A16 dá outro tratamento à mulher: ‘Estilista vai processar médico ginecologista’. Juliana prometia requerer indenizações por danos morais e materiais. A justiça deve avaliar se no caso em questão houve prejuízos. Interessa a este Monitor de Mídia analisar a conduta dos jornais catarinenses na produção do noticiário. A Notícia não foi o único diário a errar no caso. Serviu apenas de instrumento para dar visibilidade ao tipo de cobertura que o leitor teve acesso. Não foi uma cobertura ideal, e infelizmente, no caso da falsa gravidez de Juliana, a barriga maior foi dos jornais.
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Projeto da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) de acompanhamento dos jornais catarinenses, coordenado pelo professor Rogério Christofoletti.