No ano de 1808 nascia no Brasil José da Silva, filho de um comerciante português com uma escrava brasileira. José nasceu no mesmo ano da chegada da família real ao Brasil e da chegada da imprensa. Filho dedicado, teve, por meio do pai, rico, uma educação nos melhores colégios na capital, Rio de Janeiro. O seu primeiro contato com jornais foi através do diário publicado por um brasileiro, Hipólito da Costa, editado e produzido fora do país, chamado Correio Braziliense. Uma dúvida permeava a mente do jovem Zé. Por qual motivo o jornal era feito longe do Brasil e sua distribuição restrita a um pequeno grupo de pessoas?
Nascia sob o efeito da censura o primeiro jornal brasileiro. Os únicos diários que circulavam traziam notícias e informações sobre a família real e todo material contrário aos interesses da corte era apreendido e seus respectivos escritores, presos. José da Silva apaixonou-se pela profissão e decidiu seguir a carreira de jornalista.
Entramos no século 20 e José, no auge dos seus 122 anos, observa a chegada ao poder de um governante com ideologia favorável ao nacionalismo exacerbado de Adolfo Hitler e nomeado como o pai dos pobres, Getúlio Dornelles Vargas. Vargas inicia, no ano de 1937, uma nova era para o Brasil conhecida como Estado Novo. Marca registrada desse período, a censura aos meios de comunicação. Ao lado de figuras que marcaram época no jornalismo brasileiro, como Samuel Wainer, Jorge Amado, Euclides da Cunha, Rachel de Queiróz e Carlos Lacerda, Zé, como ficara popularmente conhecido, usava as técnicas jornalísticas apreendidas durante o seu longo período de vida para burlar e fugir da fiscalização do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), órgão criado pelo governo Vargas, temeroso com o ‘perigo vermelho’, que vinha da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, direcionado para analisar obras literárias e materiais noticiosos e decidir o que poderia ou não ser publicado.
Sem interferência ou subjeções
O Estado Novo idealizado por Getúlio teve fim no ano de 1945, quando o clamor popular por eleições diretas para presidente ganhou forma. Começava ali para José da Silva um período de calmaria e grande criação cultural. Pois mesmo após a volta de Vargas ao poder em 1945, dessa vez eleito pelo povo, não iniciava até então uma nova fase de censura aos jornais e revistas brasileiros. Vargas suicidou-se no ano de 1954 e outro presidente ascende ao poder eleito pelo povo, Juscelino Kubitschek. Com JK no poder, Zé, então com 146 anos, pode finalmente expor suas idéias e opiniões, oferecer ao público leitor uma cobertura jornalística baseada na imparcialidade e respeito aos valores que regem a profissão.
Um fato ocorrido no ano de 1959 refletiria cinco anos mais tarde na vida e na rotina de trabalho de José da Silva. Estamos em plena guerra fria e ao lado da superpotência capitalista do norte ocorre uma revolução socialista. A revolução cubana trouxe novamente o pavor ao ‘perigo vermelho’ de volta ao continente latino-americano.
Estamos no mês de março no ano de 1964 e mais um período ditatorial se iniciava no Brasil. Jose da Silva não mais se assustava com revoluções e golpes de Estado. A única medida a ser tomada era continuar o seu trabalho como jornalista e relatar ao público o novo período político que se iniciava no Brasil. Para surpresa de Zé, outras siglas foram denominadas para trazer de volta ao país a censura dos tempos do Brasil Colônia e do Estado Novo de Getúlio Vargas. O Ato Institucional nº 5 oferecia ao governo plenos poderes para tomar decisões, sem nenhum tipo de interferência ou subjeções, e mais uma vez fiscalizar tudo o que seria publicado na imprensa escrita e televisiva.
Favorecimento em licitações públicas
Para fugir da censura, Silva passa a integrar o time responsável pela publicação do jornal O Pasquim no ano de 1969. A marca registrada dessa publicação estava direcionada para uma crítica bem-humorada da situação vivida no país. Nomes como Ziraldo, Paulo Francis, Millôr Fernandes e Sérgio Cabral fizeram parte integral da publicação e as linguagens em sentido figurado, expostas em muitas matérias, auxiliaram os jornalistas a burlar a censura e os órgãos do governo.
A derrocada do regime militar começou no início do ano de 1975. Mergulhado em uma crise econômica, com altos índices de inflação e a pressão para abertura política, o país propiciou, no final dos anos 1970, uma nova arrancada para os ideais democráticos. Surge então uma nova oportunidade para Zé retomar a sua profissão de forma livre e sem os olhares atentos da censura iniciada no ano de 1964.
Na década de 1980, após a eleição de 1985 – a primeira após 21 anos de ditadura militar –, José da Silva, então com 177 anos, um ‘veterano’ do jornalismo brasileiro é contratado pelo jornal O Estado de S.Paulo e incumbido pela direção do jornal de cobrir os bastidores do Senado e da Câmara dos Deputados em Brasília. Finalmente, após dois séculos de existência, Da Silva se vê livre da censura em torno da imprensa e, movido pela revolução tecnológica do século 21, publica os seus artigos e matérias no site do jornal e em um blog destinado à divulgação do seu trabalho.
Porém, os dias e anos de tranqüilidade são interrompidos mais uma vez. Com o escândalo envolvendo o empresário Fernando Sarney, acusado de favorecimento em licitações públicas para empresas privadas em troca de cargos públicos fazendo-se valer do sobrenome famoso. Esse caso, baseado no histórico da família Sarney, gerou grande repercussão e foi noticiado por todos os grandes jornais brasileiro.
‘Moral e honra’
Para o jornal O Estado de S. Paulo, a cobertura do caso durou até o dia 31/07/2009, data em que o desembargador Dacio Vieira acatou o pedido do empresário Fernando Sarney sobre a proibição de veicular qualquer material noticioso sobre a sua família e sobre o escândalo. O argumento usado pelo juiz para acatar o pedido foi que a investigação sobre o caso corria sob ‘segredo de justiça’ e seria antiético veicular o áudio das gravações que flagraram o empresário envolvido em operações fraudulentas nas páginas e no site do jornal.
A decisão de proibir um jornal de publicar uma matéria sobre um escândalo que gerou grande repercussão e envolve um sobrenome famoso reabre, dentro das esferas democráticas em que vivemos, um precedente muito perigoso: o de que toda a luta pela liberdade de imprensa realizada durante a ditadura do Estado Novo e nos anos de chumbo da ditadura militar nos levam a uma reflexão sobre o passado e se algum dia esses dois períodos nebulosos da nossa história podem retornar.
Não seria exagero afirmar que, através dessa medida, outros oligarcas da política brasileira também com sobrenomes famosos e tradicionais, poderiam, às voltas com um escândalo, impetrar na justiça ações que impeçam os meios de comunicação de publicarem ou transmitirem algo que ferisse a ‘moral e honra’ própria ou de seus familiares.
Resgatar antigas técnicas
Dessa forma, novamente estaríamos expostos a outro período de censura prévia, época em que o próprio Estado de S. Paulo, quando impedido de veicular alguma matéria, publicava poemas, versos de Camões e receitas de bolo na página principal. Imaginamos como seria se outros escândalos mais recentes que ocorreram no cenário político brasileiro, como no processo que resultou no impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Melo, casos de sobrenomes famosos envolvidos em irregularidades – Calheiros, Magalhães e Maluf. Se todos os envolvidos resolvessem entrar com ações para impedir que seus nomes fossem veiculados, investigações realizadas não fossem divulgadas pela imprensa, com certeza viveríamos um outro período de censura dessa vez com o aval do ‘Estado democrático de direito’.
José da Silva, então com 201 anos, 180 dedicados à profissão de jornalista, se viu novamente às voltas com a censura. Dessa vez sem a ameaça de prisão, tortura ou expulsão do país; uma censura consentida pela justiça brasileira. Resta a Da Silva resgatar antigas técnicas jornalísticas e, mais uma, vez aguardar que o período de proibição do sobrenome Sarney volte a ocupar as páginas do jornal O Estado de S. Paulo.
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Jornalista recém-formado e escritor