De 1945 a 1991, o território da antiga República Federativa Socialista da Iugoslávia era formado por seis repúblicas (Sérvia, Montenegro, Bósnia-Herzegóvina, Macedônia, Croácia e Eslovênia) e duas províncias autônomas (Kosovo e Voivodina, pertencentes à Sérvia). Hoje, esta região compreende os territórios da Macedônia, Croácia, Eslovênia, Sérvia e Montenegro (que inclui o Kosovo e a Voivodina) e Bósnia-Herzegóvina (composta pela federação muçulmano-croata e pela República Srpska, ou ‘sérvia’).
Na década de 1990 houve quatro guerras nesse território, que levaram à desagregação da Iugoslávia e à conformação atual do território. Conformação ainda não definitiva, visto estar para ser decidido o estatuto final do Kosovo, sob tutela das Nações Unidas e, a partir de 2006, Sérvia e Montenegro poderão votar suas independências.
Em 1991, a guerra estourou na Eslovênia e na Croácia e, em 1992, na Bósnia-Herzegóvina. Na Croácia, apesar de o conflito ter acabado em 1992, seus limite territoriais só se resolveram em 1995, ano em que o acordo de Dayton pôs fim também à guerra na Bósnia.
Em 1998, confrontos entre milícias sérvias e o Exército de Libertação do Kosovo ganharam repercussão internacional. No ano seguinte a Otan interveio militarmente na Iugoslávia (então formada pela Sérvia, Montenegro, Kosovo e Voivodina) para pôr fim ao conflito, no que ficou conhecido como ‘guerra do Kosovo’. Embora a secessão da Macedônia não tenha sido marcada por um conflito de tipo bélico, ocorreram alguns enfrentamentos entre macedônios e a significativa minoria albanesa existente no seu território.
Identificações automáticas
Esses conflitos foram intensamente divulgados pela imprensa. Neste artigo, trago um pouco do que foi meu estudo sobre essa cobertura, que resultou na dissertação de mestrado, ‘Enviado especial à…: uma análise antropológica da cobertura da imprensa brasileira das guerras na ex-Iugoslávia (anos 90)’, e que teve como base artigos publicados pelos jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo.
Pensar a cobertura das guerras na ex-Iugoslávia na imprensa brasileira implica pensar o jornal e seus jornalistas e como o noticiário internacional é realizado. E implica também pensar como se dá a elaboração de uma fala sobre os acontecimentos – no caso, as guerras na ex-Iugoslávia e os sujeitos nelas envolvidos. Trato especificamente deste segundo ponto.
A continuidade, a permanência do conflito e sua repetição ao longo do tempo foram as principais mensagens sobre as guerras na ex-Iugoslávia transmitidas pelos meios de comunicação. Nos jornais, outras imagens e discursos concorreram com essas, mas não as sobrepujaram. Foi possível constatar um modo de representação da região baseado em termos como ‘cultura’, ‘etnia’, ‘história’ e ‘religião’, que se repetia na imprensa e que corroborava – e ainda corrobora – para a manutenção dessa fala e para a estereotipização e apolitização dos conflitos e dos povos neles envolvidos.
Acompanhamos, em primeiro lugar, a transição de um tipo de análise corrente durante a guerra fria – que tratava os conflitos no mundo como parte de um conflito mais amplo, entre ‘capitalismo’ e ‘comunismo’ – para análises culturalistas, ou seja, análises baseadas nos termos cultura, história, religião e etnia. Na ex-Iugoslávia, análises dicotômicas baseadas nestes termos nos remetiam constantemente a formas tradicionais de representar o Leste europeu.
Dessa forma, oposições como barbárie versus civilização (em que a Eslovênia, mais do que as outras repúblicas, representaria a civilização); comunismo versus democracia (de secessionistas, as repúblicas da Eslovênia e da Croácia logo passaram a ser vistas como democratas em contraposição ao regime socialista da Sérvia, personificado na figura de Slobodan Milošević); Ocidente versus Oriente (em termos históricos tais repúblicas fariam parte muito mais de um legado Habsburgo e ocidental do que otomano e oriental), caracterizaram o início das coberturas e se mantiveram mais ou menos constantes nos conflitos subseqüentes.
Pode-se argumentar que esta é a história do lugar e explica a rivalidade, a oposição entre os grupos e a desagregação do país acompanhada de guerra. No entanto, a utilização desses termos, de modo dicotômico e estanque, se faz a-historicamente ao transformar a história em atributo cultural e alienar sua temporalidade intrínseca. Por exemplo, quando se explica tais diferenças a partir do pertencimento otomano ou Habsburgo dos territórios ex-iugoslavos, contextualiza-se historicamente os povos e os conflitos, mas o uso que é feito da história neste caso é um uso tendencioso, já que tal contextualização – Habsburgo ou otomano – é por si só categorizadora: uma remete a características ocidentais, católicas, a outra, a características orientais, ortodoxas ou islâmicas e, logo, a todas as implicações simbólicas e imaginárias dessas definições que autores como Edward Said (2001) já apontaram, e que conotam de antemão uma cosmovisão específica de sua história e de seu destino.
Assim, a Eslovênia principalmente, mas também a Croácia, eram e ainda são sempre conectadas ‘culturalmente’ ao Ocidente e a valores dito ‘ocidentais’, como democracia, liberdade, desenvolvimento e civilização, em contraposição às demais repúblicas e províncias iugoslavas, ‘tradicionalistas’, ‘comunistas’ e ‘atrasadas’. Tais identificações passam, portanto, a ser automáticas e arranjam e organizam o modo como pensamos os conflitos nos Bálcãs – além de nos ‘auxiliar’ a pensar também diversos contextos/conflitos ao redor do mundo, particularmente na África, algumas partes da Ásia e Oriente Médio, regiões mais distantes daquilo que consideramos ‘Ocidente’ ou ‘civilização’).
Mistura étnica
A cobertura dos conflitos na ex-Iugoslávia não era, porém, apenas explicativa. Ela podia apontar para os últimos acontecimentos (confrontos e negociações diplomáticas), sendo este tipo de relato o mais comum, já que mais factualista e mais ‘quente’. E podia também descrever atrocidades e destruição de cidades e trazer relatos das vítimas. Mas era principalmente quando a ‘explicação’ tomava a pauta que a cobertura mais nos remetia a esse uso de categorias plenas em significados, passando a ser marcadamente etnicista e o conflito caracterizado definitivamente como um conflito étnico ou religioso entre sérvios e croatas, primeiramente, e, logo a seguir, com o início da guerra na Bósnia, entre sérvios, croatas e muçulmanos.
O ápice do ‘conflito étnico’ se concretizou no Kosovo, onde sérvios e albaneses têm seus destinos selados desde a ‘grande’ batalha do Kosovo de 1389, e seriam ‘realmente’ diferentes em termos étnicos e religiosos, culturais, históricos, lingüísticos… Contudo, foi também no Kosovo que houve uma mudança na forma de vermos este e outros conflitos que vieram depois: em suas articulações internacionais.
Apesar de o problema do Kosovo ter sido colocado em termos étnicos, novas questões como direitos humanos, intervenção militar internacional, legitimidade e eficácia da ONU, nova ordem mundial etc. passaram a predominar na cobertura e a nortear a política de atores ‘mais importantes’ – como Estados Unidos, Rússia e União Européia, principalmente – em suas relações com os demais Estados, incluindo, atualmente, o chamado ‘Eixo do Mal’.
Cabe sublinhar ainda que o problema apontado aqui não se encontra especificamente na verdade ou inverdade do motivo étnico ou cultural ou nacional das guerras na ex-Iugoslávia, já que foi a partir das categorias étnicas/nacionais que se insuflou o ódio e que se demarcou os lados da guerra, mas sim no modo como tais categorias são utilizadas.
Por exemplo, ao enfatizar uma suposta história de ódios ancestrais, que ora estão latentes, ora estão atuantes, a imprensa abole a história e naturaliza os conflitos, despolitizando-os. Os povos são considerados diferentes dado suas ‘diversas’ origens históricas ou étnico-religiosas, e isto, por si só, determinaria suas histórias subseqüentes e fez da federação iugoslava um país inviável e predestinado a se acabar em guerras.
Na época do marechal Josep Broz Tito, que governou a então Iugoslávia de 1945 até sua morte, em 1980, ninguém questionava, na grande imprensa mundial, a possibilidade ou não do Estado iugoslavo. A Iugoslávia, como a União Soviética, era um fato, apesar da constante repressão a dissidências nacionalistas. Muitos dos conflitos desse período, apesar de explicados a partir das dicotomias da guerra fria, apontavam também para questões territoriais e nacionais.
Os tratados pós-guerras mundiais, por exemplo, resolveram alguns problemas territoriais, mas criaram outros – o do Estado de Israel é um dos mais emblemáticos deles. Vemos, igualmente, que o problema criado pelos tratados de paz pós-Primeira Guerra Mundial, que reconheceram o Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos (logo depois renomeado ‘Iugoslávia’), não decorria da mistura étnica em si, mas da distribuição de poder entre os então denominados ‘povos estatais’ e ‘minorias nacionais’ (Cf. ARENDT, 1989).
Pontos de vista hegemônicos
Criou-se assim o conflito, não um conflito secular, mas um conflito moderno, baseado nas estruturas políticas do Estado nacional moderno. Maria Todorova (1997) afirma que também um imaginário sobre a região, congelado e estereotipado, contribuiu para que as guerras fossem vistas como decorrentes de uma suposta essência balcânica, quando estas foram fruto, em última instância, justamente da europeização dos Bálcãs, que levou à perda do legado imperial otomano e à assunção e incentivo ao homogêneo e burocrático Estado-nação europeu como forma normativa de organização social. Vemos assim que o que é tomado como origem é, na realidade, efeito de processos históricos recentes.
Resulta que, a imprensa, ao utilizar-se de termos auto-explicativos dos conflitos, adjetivos culturalistas e só aparentemente históricos, participa de processos de categorização/estereotipização, ou seja, de processos que diminuem a complexidade e simplificam os eventos para os leitores, ancorando-os, no caso, em um imaginário pré-existente à desagregação da Iugoslávia.
Ao comprar a verdade de que a Iugoslávia foi um país criado artificialmente (como se todos os demais países também não o tivessem sido), uma associação de várias línguas, etnias e religiões e que não poderia mesmo dar certo, a imprensa acabava sendo, ela mesma, porta-voz de um discurso nacionalista, de suas mitologias nacionais e da fórmula ‘para cada Estado, um povo, uma nação’, além de abolir um período da história da ex-Iugoslávia.
Pode-se argumentar que nem todos os artigos sobre as guerras na ex-Iugoslávia enfatizaram os pontos aqui elencados, que existiram bons jornalistas, que muitos artigos de intelectuais foram publicados, que os jornais brasileiros mandaram enviados especiais para cobrir o conflito etc. E é aí que reside a dificuldade – e a possibilidade – de se escrever algo sobre ‘a’ cobertura, ainda mais das guerras na ex-Iugoslávia, que diferentemente de outras longas guerras tiveram cobertura constante de 1992 a 1995 e de 1998 a 1999 – com momentos mais quentes e outros nem tanto, mas sempre com espaço nos jornais.
Após a pesquisa algo ficou – uma imagem, uma fala predominante, um discurso, que, ao meu ver, utilizavam-se de uma determinada noção de cultura e de história que nortearam a compreensão e o entendimento desses conflitos. E esse foi o trabalho realizado, e brevemente aqui exposto: o de pensar a contribuição do noticiário internacional para a constituição/manutenção de pontos de vista hegemônicos e de sensos comuns acerca do ‘outro’.
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BIBLIOGRAFIA
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
SAID, Edward W. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. Tradução Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
TODOROVA, Maria. Imaging the Balkans. New York: Oxford University Press, 1997.
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Mestre e doutoranda em Antropologia Social pela Unicamp (Campinas/SP)