A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, passeia pelo imaginário da imprensa ora como uma guardiã inexpugnável em defesa da Amazônia, ora como fanática religiosa mistificadora dos problemas da maior reserva natural e ainda preservada da biosfera. A tão questionada imparcialidade da prática jornalística tem sua melhor definição num dos trechos do poema ‘Versos Íntimos’, do poeta proscrito pelas academias literárias Augusto dos Anjos: ‘A mão que afaga é a mesma que apedreja’. Um paradoxo com ares de virtude.
As chamas de uma inquisição às avessas ardem sobre a ministra desde meados de janeiro, quando ela participou do 3º Simpósio sobre Criacionismo e Mídia, organizado por um centro universitário adventista. Agora é a imprensa, falsamente laica, que se lança num arremedo de jornalismo em defesa da ciência numa busca por tudo e todos que não comungam com sua titubeante cartilha com pretensões racionalistas.
Em sua edição 506 (de 28/1/2008), a revista Época dá a manchete de página ‘A ministra criacionista’ e em seguida discursa sobre as contradições entre o criacionismo e o evolucionismo. Como se o tema fosse uma novidade em meio às surradas e ineficientes pautas que prezam pelo oportunismo de quarta categoria e se afogam na mesmice.
Vaticano aceita evolução
Muito mais ágil, o site O Eco deu, na edição de 15 de janeiro, sob o título ‘Em nome dele’, a tendência religiosa da ministra. E disparou:
‘Não é de hoje que Marina Silva pende com força para o lado religioso da política. Além de não desgrudar de sua bíblia católica, a ministra, ligada à Assembléia de Deus, participa agora de eventos voltados à difusão do criacionismo.’
Bíblia ‘católica’ usada pelos protestantes pentecostais da Assembléia de Deus? Isto demonstra o quanto somos, como profissionais de imprensa, acometidos por deslizes ao tratar de assuntos sem o devido preparo; embora – por cretinice – busquemos manter o estereótipo de enciclopédias ambulantes numa tentativa de disfarçar, muitas vezes, nossa ignorância aguda. Particularmente agora, com o jornalismo científico se tornando e ditando moda dentro das redações.
Vale lembrar que o Vaticano, este sim, orientador do culto católico, já aceitou a Teoria da Evolução das Espécies em 1992, com João Paulo II. E demorou 341 anos após a morte de Galileu para absolvê-lo do processo que o condenou durante a Inquisição, no qual o cientista postulou sobre o heliocentrismo – já tratado por Copérnico.
Academicismos e intenções polemistas
O Estado brasileiro se diz laico, mesmo sem conseguir se explicar em que se baseia para manter os feriados santos, a existência de crucifixos em departamentos dos três poderes e o próprio carnaval datado a partir de uma atividade cristã. Neste cenário de papéis difusos, a ministra Marina Silva confundiu sua opção pessoal com sua posição no governo.
Ela foi buscar no arcaico puritanismo sulista norte-americano a idéia de propor aulas de criacionismo nas escolas sob o argumento de que o evolucionismo é matéria curricular. Extrapolou, sem dúvida. Num estado constitucionalmente laico, a educação formal é desenvolvida nas escolas de ensino regular e a formação religiosa é de responsabilidade familiar ou de interesse individual.
Faltou à ministra distinguir o que é crível, por ser cientificamente provado, e o que se trata de dogma de fé, isento assim de comprovação. O evolucionismo, apesar de todas suas falhas é tema pesquisado, estudado e detentor de base científica. No editorial ‘Criacionismo, não’, a Folha de S.Paulo (20/1/2008) foi ao cerne da questão:
‘Que a religião fique onde está, e não se faça de ciência: eis uma exigência, afinal modesta, mas inegociável, da modernidade.’
O site O Eco também alertou para a posição da ministra, apesar de não submeter o assunto como temática principal em sua abordagem. Contudo, a reportagem da revista Época ignorou o que seria o foco da questão, optando pelo discurso pejorativamente diletante, entupido de academicismos e de intenções polemistas, e negligenciou em abordar as complexas relações entre religião e Estado.
Declaração surpreendente
A revista optou pelo caminho mais fácil, o de tratar a ministra Marina Silva como uma fanática religiosa ou ‘uma ex-candidata a freira que se tornou evangélica e é missionária da igreja Assembléia de Deus desde 2004 – defendeu o ensino nas escolas do criacionismo ao lado do evolucionismo’. Esse foi o máximo que conseguiu se aproximar do que, necessariamente, nortearia uma produtiva discussão.
Como nenhum dos órgãos de imprensa foi questionar a própria ministra, mantendo-se a lógica da Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota) – ‘atira primeiro e pergunta depois’ –, o cientista Antonio Donato Nobre, ecólogo do Instituto de Pesquisa da Amazônica (Inpa) e membro do IPCC, cumpriu o papel que caberia aos jornalistas. Tratou do assunto com a protagonista da polêmica, num dos intervalos da conferência sobre mudanças climáticas, ocorrido em Bali, em dezembro último.
Marina esteve longe de se mostrar uma fanática religiosa enrustida em seus dogmas. Conversou tranqüilamente com o pesquisador, mostrou seu ponto de vista como crente no cristianismo e na criação divina, sem a defesa literal das escrituras do livro do Genesis. Ou seja, a ministra pode ter derrapado, porém continua trilhando os caminhos da confiabilidade e credibilidade.
Diante disto, surgem novas e inquietantes perguntas: até que ponto a crença de Marina Silva afetou ou afeta sua ação dentro do Ministério do Meio Ambiente? Houve até o momento algum pedido, por parte dela, para que a população brasileira se ajoelhe e ore pelo futuro da Amazônia, como se a única solução fosse uma intervenção divina segundo suas crenças? Que se saiba, a resposta é negativa em ambos os questionamentos.
Marina Silva, essa mulher franzina, de gestos comedidos e incansável defensora da floresta – e agora lançada pelo Partido dos Trabalhadores como candidata ao prêmio Nobel da Paz –, precisa mesmo crer em algo muito superior aos que estão em seu entorno. Basta ter ouvidos para os discursos oscilantes e temerários do presidente Lula em relação à maior reserva natural do planeta. Numa amostra clara de sua incapacidade de bloquear o ímpeto destrutivo dos que garantem os saldos superavitários da balança comercial – os quais trocam a floresta por um punhado de grãos.
A incoerência federal está muito além do criacionismo de uma ministra, como mostrou o Estado de S. Paulo (13/2/2008), com a surpreendente declaração de Lula. ‘Não somos daqueles que defendem a Amazônia como um santuário da humanidade’. Com certeza, mostrou toda sua sensibilidade quanto à preservação do complexo amazônico e seu apreço aos que lutam para manter a floresta em pé.
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Jornalista e pós-graduado em jornalismo científico