Um gigante em constante vigia altera as relações sociais, ele tudo ‘vê e sabe’. A partir de sua interferência, uma realidade que só existe se transformada em discurso midiático passa a influenciar as próprias ações sociais do real. Dessa forma, vivemos em um tempo mediatizado – um real consolidado na perspectiva do simulacro de si mesmo. Afirmativa que está propensa a se tornar um clichê, visto a presença efetiva dos media na sociedade atual. Contudo, é cada vez mais necessário um olhar crítico em relação aos meios de comunicação de massa para que se pesquise a interferência e as transformações causadas na sociedade pelos meios tecnológicos de comunicação. Em tempos de quebra de aceleração do tempo e esvaziamento psíquico, como atesta a psicanalista Maria Rita Kehl (Correio do Povo: 2009), é necessário um olhar sobre a mídia que vá além das pesquisas tradicionais, que ora carregam a crítica pessimista, ora os posicionamentos otimistas, que valorizam a presença de um ator-receptor ativo em relação aos meios de comunicação de massa.
O essencial é que a análise dos processos comunicacionais proporcione mais estudos interdisciplinares. Áreas do saber, como a psicologia social, associada à sociologia, história e a filosofia, por exemplo, devem buscar um diálogo ainda maior, pois isso acarreta em inúmeras vantagens para uma observação completa acerca da interferência dos mass media na sociedade.
Entender como se dá a criação e a produção jornalística, bem como a estruturação de uma linguagem ‘oficial’ para a maioria dos meios de comunicação de massa, onde os pressupostos do ofício jornalístico são regidos sob cânones de imparcialidade e objetividade, desperta a necessidade de pesquisar os elementos intrínsecos de subjetividade, cujos processos de editoração transformam o fato noticiado em produto jornalístico. Partindo de tal enfoque (a produção subjetiva nas reportagens) pode-se entender como ocorre o poder da mídia em uma sociedade cada vez mais dependente dos meios tecnológicos de comunicação de massa para suas relações.
A comunicação e a representação do real
Desde a gênese da imprensa, no século 15, a comunicação social realizada através do jornalismo definiu mudanças que afetaram a evolução do homem em sociedade, determinando a expansão de processos culturais que se mantêm atuais na atual era de globalização da informação. Os meios de comunicação passaram a ter um papel essencial na construção das sociedades contemporâneas a partir do século passado. O avanço tecnológico permitiu a expansão de uma indústria cultural que através dos mass media definiu novos conceitos de representação das culturas em escala global, formando, assim, o que entendemos hoje como globalização. Contudo, como salienta Canclini (2007) não se trata de uma globalização acolhedora e que permita a atuação dos mais diversos atores sociais além de suas fronteiras geográficas, mas trata-se de uma globalização construída para atender aos interesses econômicos onde as minorias continuam silenciadas e excluídas do debate pelos grandes conglomerados de comunicação.
O desenvolvimento da comunicação fez com que houvesse uma transformação radical na produção de discursos à sociedade. Esse processo advém da expansão do capitalismo industrial e da formação de um sistema moderno de estados-nação (THOMPSON: 1995). Portanto, a imprensa irá remodelar a produção de discursos com a justificativa de que é necessário um jornalismo objetivo e preciso distante da ‘fantasiosa’ e ‘mentirosa’ imprensa de ‘um centavo’, acusada, segundo Lage (1999) de realizar um jornalismo voltado ao popular, com uma vulgarização de manchetes e textos que exploravam o sensacionalismo para vender. É a partir da popularização dessa imprensa sensacionalista que se buscou a difusão de técnicas jornalísticas elaboradas com maior rigor buscando uma abordagem objetiva e imparcial, formato desenvolvido pela imprensa americana na tentativa de superar o sensacionalismo. Fruto do espírito científico do século 19, a tentativa da imparcialidade é uma das principais posturas que influenciaram novas formas de tratamento em reportagens.
‘Espelho da realidade’ e a formatação do real
No campo informativo, os meios de comunicação de massa apresentam-se como portadores de uma espécie de ‘espelho da realidade’ – instrumento que reforça o poder ‘vigilante’ dos veículos tecnológicos de comunicação perante a sociedade. Porém, é um ‘espelho’ que não reflete o real, mas funciona como uma espécie de ‘vitral do cotidiano’, onde fachos de luz de diferentes formas e cores transpõem o vidro. Essas formas, compostas por cores diversas, quando iluminadas, criam ‘imagens’ – isso porque tais figuras estão inseridas no vidro. Se levarmos em conta tal analogia na descrição de como funciona os meios de comunicação e sua cobertura diária, poderíamos identificar os fachos de luz como as notícias diárias que são projetadas sob ‘formas presentes no vidro’. Esses símbolos seriam os mecanismos de construção dos fatos em notícias, que seguiriam um processo determinado de acabamento. Ou seja, a luz poderia ser distinta, em inúmeros tons ou ângulos de projeção, mas a figura a ser iluminada permaneceria a mesma. Em outras palavras: não é o real que é apresentado pela mídia, mas apenas a formação de uma representação do real, recortada, constituída, produzida e divulgada à sociedade como o ‘fato real’, levando em conta aspectos de repetição. A reiteração de um discurso jornalístico como a apresentação do real cria um simulacro social.
A representação de um suposto ‘fato real’ é criada e transmitida pelos mass media obedecendo aos processos próprios que têm sua formação ligada à comunicação e as demais práticas sociais que acabam por consolidar a esfera pública, seja através de discursos, ritos, como por manifestações culturais. Tais aspectos são considerados por alguns teóricos da psicologia social como mediações sociais. Essas mediações produzem uma relação dialética entre representações sociais e esfera pública. Em tempos de transformação do espaço público e a exaltação da imagem privada, a sociedade perde o campo da conversação, debate e troca de informações, passando para uma ‘institucionalização’ da esfera pública forjada pelos meios de comunicação de massa. Como salienta Jovchelovitch:
‘[…] os meios de comunicação se tornaram constitutivos da vida social. Eles alteram modos de interação, transformam o acesso a, e o consumo de bens simbólicos, re-estruturam a política institucional e como não poderia deixar de ser eles mudaram radicalmente as fronteiras entre a esfera pública e privada’ (JOVCHELOVITCH, Sandra: 2000, p 89).
Portanto, vivemos uma formatação do ‘real’, um contexto baseado pelos media que não apenas descaracteriza os fatos que ocorrem – já que os fatos noticiados são apenas aqueles que chegam ao nosso conhecimento devido à escolha da empresa de comunicação –, mas também limita a participação dos atores sociais na perspectiva da construção de um espaço público para discussão.
O discurso subjetivo e a mitologia
A mediação social feita pelos veículos de comunicação denota o poderio das empresas de mídia que estabelecem de que forma, e como serão apreendidas e divulgadas as notícias que devem ser… Noticiadas. Fora desse universo, construído e constituído de acordo com os interesses midiáticos, uma gama de ações são realizadas por setores marginalizados pela imprensa tradicional e divulgados no ciberespaço, a internet. Esse refúgio, ainda democrático, possibilita no virtual que, por exemplo, diversos movimentos sociais levem as contestações das minorias para limites inimagináveis. Também é possível a formação de redes que auxiliam na perspectiva de revitalizar o debate não mais realizado na esfera pública tradicional, bem como busquem, através de uma práxis utópica, a descentralização do próprio controle de informação realizado pelos mass media.
Em suma: É uma alternativa realizada por um jornalismo alternativo ainda fundamentado por uma utopia anacrônica, mas que funciona em micros universos, seja através das ondas de rádios comunitárias ou pela navegação sem limites de espaço e tempo da internet.
Em um artigo que busca evidenciar os aspectos subjetivos na atual produção jornalística, Motta (2000) defende como hipótese a recriação do real pelo jornalismo, que estrutura as notícias através da disseminação de significados ligados aos mitos estruturantes do passado e que ainda se fazem presentes no mundo. O que seria comprovado com a recriação do material representado em fábulas, por exemplo. A transposição de um conteúdo lúdico e folclórico de tradições universais, para a personificação de personagens diários dos noticiários, é um exemplo, até porque o cotidiano é habitado pela identificação ou não da massa perante os ‘heróis’ midiáticos. Quem acompanha os reality shows observa a construção de valores simbólicos aos participantes que ‘recebem’, como máscaras para a atuação frente às câmeras, a simulação de uma realidade própria de personas para atuarem como protagonistas e antagonistas nos respectivos ‘shows’ midiáticos. Tais papéis conferidos aos participantes são colocados em um roteiro e uma edição que recorta um ‘real artificial’ produzido para a veiculação midiática, veiculando de forma maniqueísta os papéis que cabem a cada participante do espetáculo.
A interpretação individual do que deve ser noticiado
Esse maniqueísmo é confortante para o público consumidor porque este se tornou adaptado a dividir qualquer ação reproduzida no meio televisivo com a eterna dualidade do bem contra o mal. Outro aspecto presente nessa relação do público perante o real espetacular está na comparação de atos heróicos com as provas de resistência. Esses símbolos reforçam a necessidade de recriação dos mitos que são re-trabalhados para atender as demandas psicológicas da massa, esta ainda dependente dos símbolos do passado, estabelecendo, assim, os sentidos de existência, bem como a compreensão de real.
A dependência humana ao mito do herói é um exemplo interessante para ilustrarmos este artigo. Conhecido no mundo todo, esse mito pode ser identificado na mitologia grega e romana, como também se faz presente na cultura oriental e nas tribos primitivas. Com características que seduzem pela facilidade com que identificamos e idealizamos os personagens mitológicos em comparação com a vida real, a simbologia universal dos mitos explica a sociedade através dos tempos. Quase sempre identificamos nos mitos, independente dos territórios e períodos históricos, as mesmas características para a figura do herói: nascimento humilde e milagroso; provas de sua força sobre humana; ascensão rápida ao poder; notoriedade; sua luta triunfal contra as forças do mal; sua falibilidade ante a tentação do orgulho e seu declínio, seja por motivo de traição ou por um ato de sacrifício ‘heróico’, onde sempre morre (JUNG: 1993).
Esta gama de símbolos é usada com força pela mídia para construir heróis contemporâneos. Podemos traçar um paralelo entre os heróis presentes nos mitos com os astros do rock, endeusados por milhões de pessoas através de uma construção midiática. Na hora de noticiar, diversos pontos da carreira e da vida dos ídolos das multidões, os repórteres não se furtam a usar elementos que recorrem a esses símbolos – o que comprovaria a dependência de criar e manter para a civilização os heróis de nosso inconsciente. Tal reprodução faz que se estabeleça a figura do mito perpetuada até hoje pela indústria cultural, e isso se torna um processo banal com diversas personalidades que são representadas pela mídia, cujo processo de produzir notícias acaba buscando inúmeros aspectos subjetivos para mitificar ou desmistificar posteriormente as personalidades midiáticas.
Referindo-se a Thompson (1998), Motta nos desafia a identificar a presença dos mitos em nosso cotidiano: Onde estarão presentes as máscaras que fazem com que nossa dependência com a simbologia ancestral nos explique a cada passo, a cada gesto, bem como a nossa própria capacidade de efetuar relações em sociedade?
Motta observa como a presença constante de manifestações arcaicas, como as imagens ligadas aos mitos, e como isso faz com que demonstre ao jornalismo, mesmo que seja defendida uma práxis objetiva e imparcial, a imposição de imagens ocultas do inconsciente, trazidas ao longo dos séculos através de ritos, tradições e do próprio folclore. Isso se torna implícito na hora de fazer a reportagem, onde o consciente submete-se a recortar uma realidade observada pelo repórter que destaca o contexto histórico e ambiental para o condicionamento dos contornos sociais, para que aí, sim, possa ser descrita a interpretação individual ao que deve ser noticiado.
Herança de ritos do passado
Esse tratamento de contextualizar o fato, com o que deve ser escrito em forma de notícia, determina uma operação própria do agente (jornalista) com a sua formação acadêmico-profissional, além da experiência de vida que traz consigo em uma série de recursos mentais conscientes e inconscientes. É nesse ‘jogo de imagens e símbolos’ que ele irá definir (subjetivamente) como irá abordar o fato, colocando (muitas vezes sem saber), arquétipos milenares que o auxiliam na ‘fabricação’ da notícia, podendo assim abordar da melhor forma e, com os elementos mais interessantes, o texto a ser criado.
O jornalista, segundo o autor, ao trabalhar diariamente com fatos anormais e de riscos, busca, através dos símbolos, uma melhor compreensão para que interprete e construa o real da notícia. Contudo, esses símbolos serão usados de tal forma que as notícias serão repetidas infinitamente, mesmo mudando os personagens e situações. Citando Bird e Dardene (1988), o autor define que a notícia, assim como os contos e, todos os produtos culturais, oriundos da tradição dos mitos, terão como fator primordial à necessidade de ‘colocar ordem no caos de sentidos da sociedade moderna‘, através das recriações das representações mais arcaicas e primitivas da sociedade. O sentido dramático da repetição de conteúdos das noticias divulgadas incessantemente nos dias atuais é caracterizada pela idéia de ressonância, não porque a matéria em si é a mesma, mas a forma como ela foi constituída; o processo de adicionar símbolos faz parte da busca da identificação do público frente ao que é contado. Essa oferta de ‘imagens’ que evoquem sentimentos ao público receptor é herança dos ritos do passado, mesmo que o ato de ler notícias seja algo moderno em nossa história milenar.
Considerações finais
O autor destaca que o registro jornalístico situa e ordena o mito no dia-a-dia, garantindo a todos a harmonia e a continuada normalidade. A idéia de ‘normalidade’ que os mitos trazem de forma intrínseca aponta para o fato de que as mesmas estórias ao passar dos tempos, quando evocadas nas reportagens, reproduzem os sentidos de moral, além de explicar as contradições contemporâneas.
A interação social, que nos dias atuais ocorre cada vez mais midiatizada, demonstra que o cientificismo tecnológico, herança racionalista do iluminismo, aparentemente, relegou ao vazio a influência dos mitos para a sociedade atual, tal a dimensão das experiências tecno-mediadas integradas na vida atual. Todavia, o processo comunicacional, por mais reducionista que foram as tentativas de esquematizá-lo em esquemas, é dúbio em conceitos e teorias porque o ato de comunicar e, principalmente de produzir reportagens, são atos imbricados em subjetividade, instaurados e imersos no que os autores de psicologia ressaltam da ‘atmosfera fantasiosa do mundo simbólico’ (JUNG, 1993).
Esse sentido mágico, emocional e onírico parte tanto do emissor da notícia, como do sujeito receptor, porque ambos estarão continuamente ‘dialogando’ com uma linguagem composta de símbolos tão arcaicos quanto à civilização que conhecemos.
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Jornalista, Bagé, RS