O jornalismo ocupa, nos dias de hoje, um espaço considerável no campo da educação, mas falar de jornalismo como conhecimento ainda é algo que causa estranheza e provoca resistências não só entre educadores como entre os próprios colegas de profissão. Hoje, crianças e jovens tomam de empréstimo dos meios de comunicação muito do que aprendem e apreendem dentro e fora da escola. Nos meios de comunicação tudo está disponível o tempo todo, para qualquer um, independente de faixa etária ou classe social a que pertença.
É importante pensar nos meios de comunicação, em especial, no jornalismo, como agentes formadores dentro da sociedade, capazes de interferir na visão de mundo, na formação de conceitos, na construção de subjetividades. As leituras do mundo que fazemos são mediadas por diversas instâncias (educação, família, comunidade, igreja, política, etc.), entre elas, o jornalismo, que deve ser compreendido com um campo produtor de narrativas sobre a realidade. Assim, por exemplo, a realidade não existindo em algum lugar à espera de ser capturada, ganha concretude por meio das narrativas jornalísticas.
O que aproxima o jornalismo da educação? Acredito que a aproximação desses dois campos se dá pela construção do conhecimento, que envolve processos mediadores. A educação é entendida como um processo em que os sujeitos constroem seus conhecimentos nas interações com o meio, numa inter-relação entre fatores externos e internos. Dessa forma, este processo (da educação), não pode ser percebido sem que se aproximem os demais agentes ou campos sociais que nele interferem e o modificam. O jornalismo como campo social interpenetra o campo da educação e age, ele próprio, como instância educadora e formadora.
Notícia, a matéria-prima
Mas não se deve pensar que o jornalismo age sozinho nessa construção cotidiana da realidade; deve-se ter em mente que o público participa de forma ativa, num processo de interação em que a notícia é apenas um dos elementos no processo de construção dessa realidade. Nesse processo de construção, estão presentes as premissas da objetividade, da realidade e da verdade, que devem ser questionadas sempre quando se fala do jornalismo como conhecimento. Hoje, é possível perceber que a visão instrumental do jornalismo ainda é a mais difundida tanto entre educadores quanto entre jornalistas e outros profissionais da comunicação.
Minha proposta é levantar algumas considerações e questionamentos sobre o jornalismo e o conhecimento a fim de promover reflexões sobre o assunto. Para isso, é preciso questionar os próprios pressupostos do campo jornalístico – verdade, objetividade e realidade. Falar de jornalismo e conhecimento, portanto, significa falar de uma questão complexa que tem sido muito difundida no plano teórico, mas que encontra ainda muitas resistências no dia-a-dia.
É preciso superar algumas dificuldades ligadas ao conhecimento do jornalismo que são apresentadas como problemas, entre elas, o imediatismo da notícia (a história à queima-roupa), o fato de que o jornalismo é considerado menor do que outras instâncias produtoras de conhecimento, os ‘fetiches’ que orientam o trabalho de produção da notícia e a visão instrumental do jornalismo pela educação. Além de questionar os pressupostos da verdade, da objetividade e da realidade, cabe a nós, educadores e jornalistas questionar: ‘que conhecimento é esse que está sendo produzido pelo jornalismo?’; ‘a quem ele interessa?’; ‘quais são as vozes presentes no discurso jornalístico?’
Podemos refletir sobre jornalismo e conhecimento a partir de pelo menos dois pontos: o primeiro deles seria pensar o jornalismo como reprodutor de conhecimentos sobre a realidade; o segundo, seria identificá-lo como produtor de um conhecimento próprio (saber fazer jornalismo). Nos dois casos, é importante o conhecimento das rotinas de produção do jornalismo e de sua principal matéria-prima, a notícia. Também é fundamental que pensemos o jornalismo como uma construção, afinal, ele não foi sempre da mesma forma e mudou em função de elementos externos a ele.
Diversas verdades
O jornalismo como conhecemos hoje teve sua origem no início do século 19, quando se verificou o desenvolvimento da imprensa. Houve aumento no número de jornais, o que permitiu que um número maior de pessoas passasse a se dedicar integralmente à atividade de produzir informação. Os jornais deixaram de ser apenas armas políticas para se configurar em uma nova forma de informar à população sobre os fatos cotidianos. Instalava-se o paradigma do jornalismo como informação em detrimento do jornalismo de opinião. Foi nesse período que surgiu um novo corpo social – os jornalistas – que reivindicava o monopólio de saber o que é notícia e de dominar os métodos de sua produção.
O novo jornalismo passou a viver o culto dos fatos e a notícia – sua principal matéria-prima – passou a ser produzida, então, regida pelos ‘fetiches’ da objetividade e da imparcialidade. Essa nova forma de produção surgiu para garantir credibilidade e dar legitimidade ao campo como aquele que carrega a ‘verdade dos fatos’. Até hoje, os mitos da objetividade e da imparcialidade são cultuados por profissionais da imprensa, que se recusam a aceitar a tese da construção da realidade e da notícia por meio do discurso. No plano teórico, a teoria do espelho, na qual o jornalismo apenas relata o que ocorre na realidade, usando a estratégia de ouvir os dois lados e do relato objetivo, já foi superada, mas ainda é difícil falar no tema entre profissionais que estão na linha de frente do jornalismo sem provocar atritos.
Podemos afirmar, então, que a objetividade é o ‘calcanhar de Aquiles’ do jornalismo quando se fala em construção da realidade e do conhecimento, pois a crença na verdade dos fatos também foi ‘uma invenção’, num determinado momento histórico e em um contexto de mudanças e transformações. Esse jornalismo que se pretende imparcial, isento, neutro e que se propõe a apresentar sempre os vários lados de uma mesma questão é uma invenção, assim como são invenções da modernidade a criança, o jovem, a terceira idade etc. As diversas verdades sobre um mesmo fato podem ser apresentadas sob o manto do discurso jornalístico.
Invenção do fato
A objetividade foi compreendida na época e é compreendida nos dias de hoje como oposta à subjetividade, mas essa é uma ‘verdade’ que não se sustenta. Estudiosos apontam que quando surgiu no final do século 19, a objetividade se constituiu como um ritual estratégico, uma série de procedimentos utilizados por determinada comunidade (os jornalistas) para assegurar credibilidade aos relatos sobre a realidade. A visão da notícia e da realidade como construção aponta para uma impossibilidade de separar objetividade e subjetividade e ainda de opor um conceito ao outro.
É a partir de critérios ditos objetivos que os jornalistas escolhem o que será notícia, e, uma vez escolhido o recorte, escolhe-se a abordagem, a editoria, as fontes, o tipo de texto, o título, etc. O culto à objetividade e sua crença pela sociedade leva a crer que os fatos são descritos com fidelidade, como se o discurso jornalístico pudesse dar conta da totalidade de um fato. Essa premissa cai por terra, ao passarmos os olhos pelo jornalismo diário e percebermos as intencionalidades e parcialidades presentes nas narrativas. A estratégia de ouvir os dois lados, na maior parte das vezes, se constitui em ouvir dois lados do mesmo lado.
Há entre os jornalistas uma dificuldade muito grande em aceitar o caráter subjetivo da informação jornalística, pois é inaceitável que a imprensa veicule informações que não correspondam à realidade. Mas, o culto à objetividade não explica, no entanto, o uso de qualificações como gangues, galeras, criminoso e menor em determinadas situações em que seria possível informar sem utilizar tais adjetivos. O jornalista crê (e a sociedade legitima essa crença) que sabe identificar o que é notícia e. Ele supostamente detém um conhecimento que permite identificar o que é importante para depois produzir narrativas sobre os fatos de modo a que elas pareçam isentas e objetivas.
A tese da invenção da realidade pode encontrar suporte em algumas reflexões: a primeira é a que dá conta da impossibilidade de separar a realidade de sua produção, uma vez que as notícias são peças que ajudam na construção dessa realidade; a segunda é o fato de que a linguagem não é neutra e, por isso, não pode funcionar como transmissora direta de significados. Nelson Traquina diz que há no ato de produzir a notícia a partir de um fato uma invenção do fato a partir de uma narrativa sobre ele.
Percepção e prioridades
À primeira vista, a notícia parece se esgotar na sua produção, que inclui a definição de uma pauta, a coleta de dados, a redação, a edição e sua publicação. Mas é importante destacar que como narrativa ela só se completa no momento em que é consumida pelo seu destinatário final. É na hora em que chega ao destinatário, de forma direta ou indireta, que se dá a produção final do sentido. Dessa forma, as narrativas jornalísticas são histórias marcadas pela cultura da instituição e dos integrantes dela.
Há uma série de implicações que o jornalismo oferece que não são tão visíveis. As leituras de mídia são também indiretas e os discursos que surgem no suporte do jornalismo já foram reinterpretados e o serão mais uma vez pelos receptores de seus produtos. Essa reelaboração das mensagens jornalísticas é coletiva e também individual, pois cada sujeito é único e dotado de singularidades que tornarão a recepção aos produtos de mídia igualmente única.
Podemos tomar como exemplo o caso recente da morte de Isabella, que comoveu o país e ocupou por bastante tempo o espaço dito nobre do telejornalismo brasileiro. Posso afirmar que não li uma linha sobre o caso e não assisti a uma reportagem sequer. Mas não pude escapar, em diversas ocasiões, de participar de discussões sobre o assunto nos mais diversos lugares. Ou seja, eu não acompanhei, mas fiz leituras indiretas por meio da leitura que outras pessoas já tinham feito. O jornalismo pautou a conversa de muita gente, durante muito tempo. Enquanto isso, em uma cidade da região metropolitana de Vitória, houve um caso bem semelhante que não mereceu mais que algumas linhas no jornal local.
A compreensão do jornalismo como conhecimento permite pensar em formas de inserir a produção jornalística no campo da produção educativa, seja ela formal ou informal. Não são poucos os estudiosos que defendem que os estudos do jornalismo devem ser considerados prioritários para a consolidação e manutenção da democracia. As mensagens veiculadas pela mídia interferem nos processos de cognitivos das pessoas, alteram o estatuto da percepção e estabelecem prioridades.
A linguagem muda da violência
No caso dos jovens pobres, moradores de bairros periféricos, submetidos a condições limitantes de vida e expostos à violência (alvo de pesquisa desenvolvida durante mestrado concluído em 2006, na Universidade Federal do Espírito Santo), há uma distância muito grande a separar a realidade vivida por eles daquelas materializadas no discurso jornalístico. Para a imprensa, a violência e o crime ocupam um espaço delimitado fisicamente pela classe social a qual pertencem os envolvidos. A violência é percebida e relatada sob o ponto de vista do seu acontecimento, como se não houvesse passado ou futuro.
Os jovens demonstram ter essa percepção quando falam da forma como a ‘sociedade’ os vê. E os vê por meio da imprensa, que funciona como uma amplificadora de conceitos, modos de ver, de sentir e pensar e que fala para uma sociedade que não se insere no ambiente das periferias. O ensino crítico da mídia pode e deve ser considerado no processo educativo. A produção do conhecimento no jornalismo está ligada diretamente ao fato de que ele cria realidades de uma forma muito complexa.
Não se trata de uma relação pautada apenas na escolha dos jornalistas e na escolha dos receptores. Há no meio do caminho diversos outros campos a se inserir, se infiltrar e a lançar seus tentáculos para formar outros significados e sentidos para as diversas realidades que se conjugam no hibridismo do relato noticioso. Há pouco tempo, o documentário Falcões, meninos do tráfico [MV Bill e o produtor Celso Athaíde percorreram, durante sete anos, comunidades pobres do país e mostraram a rotina desses meninos que ‘trabalham’ desde cedo para o tráfico. As histórias dos bastidores do documentário foram reunidas em um livro. No dia 19 de março de 2006, o documentário foi exibido pelo Fantástico, da Rede Globo. Nesse dia, 16 dos 17 meninos retratados no documentário já haviam morrido], do rapper MV Bill, provocou ondas de indignação na sociedade. Ao ser exibido no Fantástico, o relato cruel sobre a vida de meninos que se vêem forçados a entrar na vida do crime aos 8, 9 ou 10 anos, chocou, deixou boquiabertas pessoas que nunca passaram próximas a um lugar onde reina a pobreza e a carência material e afetiva em seu mais elevado nível. O relato mostrado no Fantástico trouxe para a realidade de públicos distintos daqueles a quem se deu voz, e que só têm à sua disposição a linguagem muda da violência.
O grande desafio
Para quem não convive com a realidade dos bairros periféricos, onde há altos índices de violência – fome, desemprego, doença, abandono, execuções e tráfico de drogas –, o documentário Falcões representou uma tomada de consciência. É como se aquela realidade passasse a existir a partir daquele momento e, ainda assim, num lugar onde está situado o ‘outro’ da sociedade. Então, pensar no jornalismo sob a perspectiva do conhecimento supõe um exercício incansável de questionamento sobre verdade e realidade. Esses pressupostos devem ser sempre acompanhados de uma análise do lugar do sujeito que produz enunciados verdadeiros sobre um aspecto de uma entre tantas realidades presentes na sociedade.
Os conceitos de verdade e realidade, tão caros ao jornalismo, podem se tornar incoerentes quando confrontados com as visões tão distintas de grupos diferentes sobre os mesmos assuntos – violência, família, trabalho, saúde, felicidade, sucesso. Pensar o jornalismo como conhecimento pode ser útil na elaboração de políticas públicas e também para a elaboração de projetos educativos. Discutir a produção jornalística e a produção do conhecimento por meio de suas narrativas é algo tão importante quanto necessário e mudar a perspectiva conceitual sobre o jornalismo e sobre sua relação com a educação é um grande desafio para educadores e comunicadores.
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Jornalista e mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo