A tônica das críticas ao Estado brasileiro ecoadas, mormente pela imprensa, pode ser resumida no peso da carga tributária e na precariedade do retorno em serviços prestados à população. Secundariamente, subsistem nas manchetes os casos de corrupção, os ataques à concessão de privilégios a funcionários públicos mais iguais do que outros e à precária distribuição de renda entre os cidadãos brasileiros residentes fora dos muros feudais dos contra-cheques do serviço público.
Infelizmente, a imprensa é acéfala, parcial e consciente ou inconscientemente mal intencionada no que tange à síntese interpretativa das críticas que ela própria produz sobre o sistema. Ao juntar os males acima citados, é forçosa a conclusão de que todos são facetas de um mal maior, ignorado pelos mecanismos de controle social e olimpicamente relevados pelos órgãos formadores de opinião.
A conclusão mais óbvia é provida pela análise histórica da constituição deste mecanismo de origem colonialista. Portugal, ao descobrir o Brasil, nunca teve a real dimensão das terras que lhe caíram em mãos. Sob a percepção míope da metrópole, foi estabelecido um padrão de uso do novo mundo baseado na extração de bens. Para a consolidação deste intento, foi aos poucos implantada uma elite de nobres fiéis à coroa, responsáveis pelo envio dos espólios ao rei e pelo controle da população emergente, constituída de degredados a quem era oferecida a opção de vida no novo mundo, ao invés da execução no cadafalso.
Manobras regimentais
A origem da elite detentora do poder pode ser rastreada desde o período colonial até os dias de hoje. No entanto, nem a transferência da família real para o Brasil e a abertura dos nossos portos às nações amigas, nem a criação do império brasileiro no pós-partida de D. João VI, nem a implantação da república dos marechais doidos varridos, serviram para desconstruir a lógica espoliativa. A elite se perpetuou por hereditariedade e continuou a cumprir a mesma função estabelecida pela antiga metrópole: a de cobrar as ‘derramas’, não mais as destinando ao além-mar, e sim ao usufruto autóctone que fizeram as fortunas das famílias ‘quatrocentonas’.
Como resultado da institucionalização da máquina expropriativa, deu-se a formatação de um estado voltado hegemonicamente para as necessidades das suas próprias entranhas. Os reflexos disso podem ser constatados na voz das metáforas mais corriqueiras; a do ‘elefante branco’ inoperante, ou a do dinheiro dos impostos que vai para a ‘vala comum’ do tesouro, ou a dos gastos do governo destinados aos ‘apadrinhados políticos’.
Um grande indício de que esse estado é um animal dotado de um eficientíssimo mecanismo de auto-preservação é a afirmação recorrente de que se alguma reforma prejudica os ‘interesses corporativos’ de algum segmento de poder, ela provavelmente estará fadada ao insucesso porque a corporação afetada acionará seus ‘lobbies’ políticos, que interporão manobras regimentais para sepultar definitivamente quaisquer tentativas reformistas.
Lógica de círculo vicioso
O controle do estado brasileiro por uma espécie de intelligentsia à moda daquela que controlou o estado soviético, pode ser diagnosticado pela análise histórica das permanentes crises políticas enfrentadas. Por trás da aparente mobilidade do cenário político brasileiro, há a permanência da casta pétrea formada pela elite de funcionários, apadrinhados, políticos profissionais, lobistas, fornecedores de serviços, enfim, um séquito de orbitadores que constituem organicamente um aparelho de poder montado para espoliar os recursos públicos.
A imprensa, como um dos tentáculos deste imenso Leviatã, reproduz essas estruturas porque o detentor da sua maior conta é o estado que deveria fiscalizar, remetendo-a ao círculo do clientelismo orbitante ao redor do núcleo duro da elite burocrática. Portanto, não será dela que partirão críticas propugnadoras de reformas de base, enquanto aceitar o papel secundário de mera câmara de ressonância dos anseios das corporações. Não obstante, é facultado aos meios de comunicação um nível mínimo de autonomia, funcionando como válvula de escape, para que veicule críticas pontuais a determinados aspectos da máquina de poder sem, no entanto, chegar a contestar o centro do sistema de parasitismo burocrático que drena as energias do país real de milhões de contribuintes para o destino fantasmagórico da vala comum, rotulado superficialmente de ‘mal gastança’, corrupção, desvio de dinheiro público, falta de eficiência gerencial, dilapidação do erário etc. e outros nomes que a imprensa ‘chapa branca’ cria no bojo das suas críticas ligeiras e descompromissadas, desviando sempre a atenção do cerne da questão, que é o arraigado sistema secular de apropriação.
A definição básica de cidadão brasileiro é dominada pelo extremo dualismo imposto pelos dois brasis: o daqueles que se tornaram partes orgânicas de alguma corporação funcional e todo o resto que sonha dela fazer parte. Graças ao nosso espírito atavicamente tolerante com as desigualdades, ao invés de colocarmos em xeque a máquina opressora, pacientemente esperamos um dia pertencer a ela, criando uma lógica de círculo vicioso que perpetua os esquemas de apropriação de poder, instituído quando os primeiros degredados puseram os pés na terra ‘brasilis’.
As gordas contas do governo
Há esperança? Numa época em que os sonhos estão em baixa, depois que a campanha das diretas nos guindou ao Sarney, Collor e Itamar, é doloroso pensar nas grandes causas. Tendo sido superados os temas mais candentes – a mudança do regime político, a liberdade de expressão e malogradas as esperanças da vinda de um presidente ‘salvador da República’ –, resta-nos a árida e espinhosa visão das reformas estruturais, que sempre esbarram em cláusulas pétreas e direitos adquiridos, ficando o corporativismo com a última palavra.
Caso o sonho seja obrigatório, sonhemos com mecanismos de controle horizontal, a serem criados dentro da sociedade civil, que não dependam apenas da singela delegação do voto; sonhemos que uma parte da imprensa se desvincule das contas estatais e dirija seu poder de fogo crítico contra os sistemas feudais de apropriação de poder que criminalizaram o estado. Sonhar com isto é o mesmo que sonhar com empresas rasgando dinheiro, mas sonhar é preciso e o sonho se tornou muito difícil quando as grandes causas fracassaram.
Quando a grande imprensa berra contra a instituição de uma rede pública de televisão, a sua grande preocupação não é o possível uso ideológico que o governo poderá fazer. As críticas que denunciam uma rede de TV pública ‘chapa branca’ veiculando apenas a propaganda do governo, escondem o receio que os operadores da imprensa privada não confessam: o temor de perder as grandes e gordas contas do governo. Quem sabe, se isso acontecesse, eles não passariam a desempenhar a sua função original?
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Webeditor, Bento Gonçalves, RS