Não vou repetir aquele chavão do ‘parece que foi ontem’, porque faz tanto tempo que, na verdade, já nem me lembro direito. No sábado (13/12), vai fazer 40 anos que a redação do velho Estadão parou para ouvir, em volta da mesa do jovem Clóvis Rossi, então chefe de reportagem, o anúncio do Ato Institucional nº 5, que afundava de vez o Brasil na ditadura militar mais escrachada.
Eu tinha 20 anos, era repórter de geral, como se dizia na época, e só lembro bem que fiquei muito assustado com a cara dos mais velhos, especialmente do secretário de redação, o professor Oliveiros Ferreira, um estudioso das Forças Armadas, que previa coisas tenebrosas acontecendo dali para a frente.
Cada um de nós lembra das coisas de um jeito. Muitas vezes, sabemos que a memória afetiva fala mais alto do que a racional. Por isso, hoje [11/12], ao completar três meses no ar, o Balaio publica esta matéria especial sobre o AI-5, trazendo não só as lembranças deste blogueiro, mas também de três queridos colegas de redação do Estadão. Como bom anfitrião, deixo as minhas memórias para o final deste post.
Brilhante editor
Daquela época, restam trabalhando no Estadão, se não estiver enganado, apenas Ruy Mesquita, o dono, responsável agora somente pelas páginas de opinião, e nosso colega Saul Galvão, que se tornou catedrático em comes e bebes.
Mas nós, mesmo depois de rodar por muitas redações da vida, continuamos sendo conhecidos como a ‘Turma do Estadão‘, amigos que comemoram juntos os natais desde 1962 (como sou o mais novo, só entrei na confraria em 1967), até hoje.
Vamos começar com um belo texto que me foi enviado pelo acima citado Clóvis Rossi, 66, o Grandão. Oito anos depois desta noite, ele se tornaria editor-chefe do mesmo jornal e, após uma brilhante carreira de correspondente internacional, hoje é colunista e repórter especial da Folha.
A seguir, vocês vão conhecer um dos melhores jornalistas com quem já trabalhei, o Raul Martins Bastos, também 66, dono de um texto primoroso que poucos conhecem porque sempre trabalhou na retaguarda das redações. Chefe de produção e da rede de sucursais e correspondentes do Estadão em 1968, hoje ele é diretor de planejamento da DM9DDB.
O terceiro colega que participa desta reconstituição do 13 de dezembro de 1968 é o Ludenbergue Góes, 73 anos, o decano da turma, que foi um brilhante editor de esportes na época e atualmente trabalha como redator da Secretaria de Comunicação Social do Governo do Estado.
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A noite em que interditaram o futuro
Clóvis Rossi
Minha principal lembrança da noite em que a ditadura editou o AI-5 não é física; é mental. Fiquei com a sensação de que haviam interditado, proibido, o futuro. Equivale a dizer que haviam proibido tudo porque eu tinha, então, magros 26 anos.
Nem sei se os companheiros daquela noite tiveram sensação idêntica. Lembro-me que saímos da redação do Estadão, então ainda na rua Major Quedinho, no centro, rumo a um boteco na rua da Consolação, bem em frente, não porque era o favorito da turma, mas porque parecia ser o único aberto nas redondezas. E não havia lá muito ânimo para ir além das redondezas.
Não vou citar os que estavam no boteco, porque esqueceria muitos. Há um tango que diz que ’20 años no es nada’, mas 40 anos são muitos, sim, senhor.
Imagino que lá estivessem os de sempre, a turma que se divertia fazendo jornal, mesmo na ditadura.
Esqueceria muitos porque, se os presentes de então me perdoarem agora, devo confessar que estava ensimesmado demais para prestar muita atenção em todos e em cada um. Parecia que baixava sobre mim a tampa de um caixão, sacramentando uma morte cívica.
Não obstante, a vida teria que continuar, mas, pela primeira vez desde que me tornara chefe de Reportagem do Estadão, quase três anos antes, não tinha a menor vontade de deixar encaminhadas as pautas do dia seguinte. Porque parecia, naquele momento, que não havia dia seguinte.
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A indignação na Sucursal do Rio
Raul Bastos
Mário Cunha,
Não fique zangado com o começo desta carta.
É que toda vez que se fala daquele maldito 13 de dezembro de 1968 eu me lembro de você e de como o que já era muito ruim ter ficado muito pior até se tornar o horror do AI-5.
Quarenta anos depois, vejo nos jornais, nas revistas, na internet, quem sabe até na televisão, uma enxurrada de rememorações, análises, interpretações. Lembro de você.
Há de tudo nelas, Mário, menos você.
Celebra-se a coragem dos arrependidos do golpe.
Há um tácito esquecimento/perdão dos que – inclusive no nosso meio, patrões e profissionais, sendo que um deles foi porta-voz do general-presidente – por ação ou omissão foram coniventes com a ditadura.
E com justa razão rememora-se a saga dos que resistiram, se bem que hoje, aqui e acolá, alguns se tornaram os donos exclusivos da história da resistência na imprensa, alguns até remunerados por isso. Paciência, a vida é assim mesmo.
Diante desse imenso latifúndio de retrospectivas eu fiquei pensando comigo se haveria um cantinho, uma citação, uma referência, uma lembrança, um agradecimento por você ter sido quem foi e ter feito o que fez nesta luta. Até agora, nada. Não que você faça questão disso. Mas, cá entre nós, que não está direito, não está.
Do dia do AI-5, como me pede o Kotscho, para ser sincero, a não ser o choque do golpe dentro do golpe, eu não me lembro de muita coisa. Só me lembro que, para variar, trabalhei muito, falei muitas vezes com você, discutimos algumas vezes as matérias, me amolei com Brasília não sei bem por quais motivos e, também para variar, fui beber lá no bar da Jussara, que Deus a tenha, e bebi mais do que de costume.
O que ficou gravado como marcante no dia 13 de dezembro de 1968, Mário Cunha, foi outra coisa. Foi a veemência da sua imensa indignação com o AI-5. Lembro de como você comandou a cobertura da sucursal do Rio, da sua sofreguidão por uma boa, ampla e corajosa edição. E o tom da cobertura que você deu aos seus repórteres: indignação.
Lembro da sua convicção de que, a partir daquele momento – e mais do que nunca –, o jornalismo deveria ser de resistência, denúncia e combate, a despeito do preço que poderíamos pagar.
E assim foi durante quase dez anos, longos anos, Mário. Até o Estadão mandar todos nós para o espaço, e vocês aí do Rio de Janeiro de uma maneira indigna e desrespeitosa. Mas aí o arbítrio já estava no fim, de joelhos. E, a despeito do desfecho ruim e torto, seria injusto e mentiroso não reconhecer a coragem dos Mesquitas, não é mesmo?
Muito do brilho e da eficiência da lendária sucursal do Estadão no Rio (que teve um papel fundamental e nunca claramente reconhecido na luta contra o arbítrio e a censura no Estadão) deve-se, Mário, à sua competência, persistência e coragem – sua e dos seus companheiros daquela época, entre eles, Maurício Azêdo, Teixeira Heizer, Antonio Carlos, Paulo César Araújo, Valério Meinel, Sueli Caldas, entre outros tantos. Por onde eles andam hoje?
Eu não estou falando por falar e nem exagerando. É só cotejar a cobertura do Estadão com outros jornais, inclusive do Rio. A sucursal era uma referência não só de informação de resistência, mas também da qualidade de informação.
E nem vou tratar aqui dos companheiros que você, Mário, tanto ajudou, protegeu, acompanhou na prisão, que isso você considerava uma tarefa humanitária e política, não é mesmo?
É evidente que você não era o único naquele grupo fantástico do Estadão. Mas era um dos principais e estava entre os mais atuantes. Tinha voz e o respeito da sede do jornal.
Então, Mário Cunha, eu queria que você soubesse desse meu sentimento e ficasse registrado o meu agradecido reconhecimento pela sua participação naquele período tão terrível, mas tão rico de nossas vidas.
Diante dessa cara de paisagem de todos, torço para que a juventude que vem aí recupere essa sua bonita história profissional e de vida, e faça dela um exemplo. Quem sabe um desses grupos de jovens formandos resolva fazer o seu TCC sobre a sucursal do Rio de 1968, e comece a recuperar esta história e situe você nela como se deve.
Pena que você tenha morrido sem ver isso.
Com o carinho, o respeito e a admiração do Raul Bastos.
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Pela direita…
Ludembergue Góes
De repente, algumas pessoas estranhas começaram a chegar à redação do Estadão, provocando agitação, mas não muita surpresa. Afinal, depois da apreensão da edição do dia do jornal e do anúncio do AI-5, não surpreenderia se eles chegassem, os censores.
Como editor de esportes, teoricamente, eu não teria muito a me preocupar com eles, porque, normalmente, não haveria nenhuma notícia ou comentário que pudesse merecer censura.
Acontece, porém, que naquele dia cabia a nós do esporte fechar a última página, com a apresentação do jogo do dia seguinte, entre o Brasil e a Alemanha Ocidental. Com certeza, como página nobre do jornal, seria alvo dos censores.
Como todo o resto da redação, nós, do esporte, discutimos muito uma forma de driblar os ‘homens’ e indicar que estávamos sob censura. Uma das propostas foi do Ricardo Kotscho, que sugeriu a manchete: ‘Brasil ataca pela direita’
O secretário de redação, Oliveiros Ferreira, preferiu não arriscar ter a edição apreendida de novo.
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Meninos, a brincadeira acabou
Ricardo Kotscho # do meu livro de memórias Do Golpe ao Planalto – Uma Vida de Repórter (Companhia das Letras)
O pior ainda estava para acontecer. Na madrugada de 13 de dezembro, dia em que Costa e Silva editou o Ato Institucional nº5, o principal editorial do jornal, na página 3, trazia o premonitório título ‘Instituições em frangalhos’.
Informado por algum dos vários colaboradores do regime infiltrados na redação, o delegado Sílvio Correia de Andrade, da Polícia Federal, invadiu a oficina, que dava para a rua Martins Fontes, e gritou a ordem: ‘Parem as máquinas!’.
Em seguida, determinou aos policiais que o acompanhavam a apreensão de todos os exemplares já prontos para a distribuição. Pela primeira vez desde o golpe, o Estadão deixou de circular.
Logo cedo, Julio Mesquita Neto e Ruy Mesquita foram se queixar ao governador Abreu Sodré, um amigo da família nomeado para o cargo pelos militares. Comunicaram-lhe que o jornal não mudaria sua linha editorial, agora de oposição aberta ao regime.
No começo da noite, dois policiais à paisana da Divisão de Diversões Públicas da Secretaria de Segurança do Estado de São Paulo chegaram à redação para ‘examinar o noticiário político’.
Era o início oficial da censura prévia. Enquanto eles se aboletavam em volta da mesa de Oliveiros Ferreira, o secretário de redação, nós nos reuníamos para ouvir o pronunciamento do general Costa e Silva num rádio portátil posto sobre a mesa de Clóvis Rossi.
No silêncio do ambiente destacava-se a voz grave do general, que não deixava nenhuma dúvida nas suas palavras: meninos, a brincadeira acabou. O Brasil entrava no quinto ato. Era um golpe dentro do golpe – a ditadura total, sem disfarces, com mais cassações de mandatos, fechamento do Congresso Nacional e fim das liberdades e direitos individuais, começando pela censura prévia.
Ao recordar este episódio muitos anos depois, Oliveiros me contou que Carlão, o nosso amigo diretor e dono do jornal, só se zangou quando um contínuo serviu café aos censores.
Voltei para a minha mesa e continuei a escrever, como se nada estivesse acontecendo. Sem alternativa, eu e minha turma terminaríamos outra noite na boate da Jussara. Professor da USP, estudioso dos assuntos militares, Oliveiros Ferreira previu um longo e feroz período de ditadura.
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É bom que todo mundo lembre agora o que foi aquele período mais tenebroso da ditadura, não só para que ele nunca mais se repita, mas para que alguns veículos e muitos colegas parem de falar em ameaças à liberdade de imprensa cada vez que se ousa contestar ou apenas discutir o seu trabalho.
Eles não sabem o que falam ou não lembram o que foi a ditadura militar. O Brasil vive hoje o seu mais duradouro período de plenas liberdades públicas e, se alguma ameaça persiste ao livre trabalho dos jornalistas, ela não vem do governo central, como naquela época, mas dos próprios responsáveis pelos meios de comunicação.
Basta ver, por exemplo, o que aconteceu com a repórter Ana Beatriz Magno, vencedora do Prêmio Esso de Reportagem esta semana, demitida há dois meses do Correio Braziliense.