A rememoração dos 40 anos da promulgação do Ato Institucional nº 5 nos obriga a rever o processo que o produziu. Significa que o 13 de dezembro de 1968, na realidade, começou no dia 31 de março de 1964, quando os militares com o apoio da sociedade civil derrubaram o governo constitucional de João Goulart. E como fatos isolados não fazem história, somos levados imperiosamente ao dia 25 de agosto de 1961, quando Jânio Quadros, numa combinação de paranóia e caudilhismo, armou uma renúncia que não esperava ser aceita.
Foi. Criou-se imediatamente o impasse com o qual contava o renunciante: quem o substituiria, o sucessor legítimo, o vice João Goulart, ou diante da recusa dos ministros militares em aceitá-lo seria tentada uma solução extra-legal? A solução foi razoavelmente legal: depois de um impasse de 13 dias que quase leva o país a uma guerra civil, Jango toma posse na condição de presidente de uma república parlamentar e, dois anos depois, através de um plebiscito, recupera todos os poderes. Perdeu-os 14 meses depois.
A luta pelo poder absoluto, a ânsia de mandar e desmandar – esta é a tônica do período que vai da renúncia de Jânio ao fim do mandato de João Batista Figueiredo. Estes dramáticos 23 anos poderiam constituir a Era do Mandonismo: o importante era apoderar-se da máquina de decidir, dominar e calar o inimigo.
Reformas e mudanças eram acessórios. Nos sete meses em que exerceu a presidência, Jânio deu preferência à política externa que lhe oferecia mais visibilidade, suas incursões no campo socioeconômico foram irrisórias e marcadas pelo inato populismo.
Lógica autoritária
Jango desperdiçou esplêndidas oportunidades de dar seqüência à modernização empreendida por Juscelino Kubitscheck quando teve como primeiros-ministros os habilíssimos e competentíssimos Tancredo Neves e San Thiago Dantas. Deixou que caíssem, sabotou-os, não lhe interessava mostrar a viabilidade do parlamentarismo – queria o poder total oferecido pelo presidencialismo.
Para atender os apetites e ambições dos demais chefes militares, o mentor intelectual do golpe de 1964, general Humberto de Alencar Castello Branco, foi obrigado a entregar o poder ao general Artur da Costa e Silva, por sua vez atropelado pela linha-dura preocupada principalmente em evitar o reaparecimento da Frente Ampla criada e articulada por Carlos Lacerda com os seus ex-adversários, Juscelino Kubitschek e João Goulart.
O AI-5 foi o golpe dentro do golpe, sua verdadeira ideologia era a manutenção do poder. Começou na verdade em 5 de abril de 1968, quando o governo Costa e Silva, preocupado com as reações do movimento estudantil à morte do secundarista Edson Luís e com o visível crescimento da Frente Ampla, a extinguiu.
O Ato Institucional baixado oito meses depois, na noite de 13 de dezembro, seguia a lógica dos atos anteriores, sobretudo o AI-2 (1965), considerado sob o ponto de vista institucional tão duro quanto o próprio golpe de 1964.
Assinatura civil
As arbitrariedades contidas neste regulamento nitidamente totalitário não seguiam impulsos aleatórios e extemporâneos, a ótica era estritamente militar: liquidar o inimigo mais poderoso e ameaçador. O discurso do deputado Márcio Moreira Alves e a decisão da Câmara em recusar o pedido do governo para processá-lo foram pretextos para desviar a atenção do objetivo principal: desmantelar a resistência política insuflada abertamente pela Frente Ampla, a primeira que conseguira se articular desde a derrubada de Jango. Também a primeira que chegava à sociedade através de uma retórica não-esquerdista (embora incentivada à distância pelo PCB), puramente democratizante e vocalizada pela mesma imprensa que criara as condições para a tomada do poder pelos militares.
A institucionalização da censura prévia foi o castigo imposto pela linha-dura à sua ex-aliada incondicional. Os civis que assinaram o AI-5, inclusive o agora lulista Delfim Neto, não perceberam que ao inaugurar os Anos de Chumbo colocavam o país inexoravelmente na senda do ódio e do ressentimento.
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