A liberdade de expressão, enquanto princípio democrático, constitui um dos pressupostos de ação da imprensa, sua “bandeira” maior, como afirma Eugênio Bucci (2000). De fato, já no nascimento da esfera pública, fazia-se presente o princípio da liberdade. O debate racional e livre, a ruptura com o Estado, o propósito de crítica – todos esses elementos evidenciam a busca de independência no espaço público. Também a gênese da imprensa está ligada ao advento da modernidade, vinculando-se a conquistas como o surgimento do Estado de direito, da democracia e o estabelecimento dos direitos civis. É assim que a liberdade de expressão, como o jornalismo, emerge no bojo dessas transformações – de dimensões políticas, sociais, econômicas, filosóficas.
Não obstante, com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, a liberdade de expressão e de imprensa passa por diversos deslocamentos. Da consolidação de uma instância da palavra impressa à formação de uma instância da imagem ao vivo e ao espetáculo – conceitos que retomaremos ao longo deste trabalho – os atributos do ideário moderno de liberdade de expressão vão sendo, um a um, postos em xeque pela observação da experiência histórica. Ao mesmo tempo, mais do que nunca, torna-se urgente discutir a liberdade de expressão, no âmbito acadêmico e para além dele, diante do avanço de novas formas de censura.
Da palavra impressa à imagem ao vivo
Como nos lembra Cristina Costa, com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, a ideia de liberdade de expressão passa a ser usada para se referir, na maioria das vezes, “ao livre fluxo das ideias partidárias e das intervenções hegemônicas que transitam pela imprensa escrita” (COSTA, 2013, p. 30). Em outras palavras, passa a haver uma confusão entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa, que se mantém até hoje, de modo que a segunda concepção se torna objeto mais frequente de defesas e reivindicações no espaço público. Para entender, então, como surge essa noção de liberdade de imprensa, enquanto vertente que deriva da liberdade de expressão, é fundamental anotar como se dá o nascimento da esfera pública e compreender a formação de uma instância da palavra impressa – todos processos interligados.
Como sabemos, o nascimento do jornalismo está atrelado ao surgimento da democracia moderna, do capitalismo, dos ideais de cidadania, de igualdade jurídica, de liberdade. Ele surge, no século 18, com a função de defensor e porta-voz da mentalidade que ascendeu com a derrocada do Antigo Regime e com a queda do absolutismo, representando uma verdadeira “revolução impressa”.
Mas, ao lado dessa dimensão política, há um aspecto material da circulação de informações (a qual culminaria com o surgimento dos vínculos comunicacionais que formaram a esfera pública e, nela, o papel decisivo da imprensa) que não se pode desconsiderar. Como anota Jürgen Habermas (1984), a gênese da esfera pública está ligada ao surgimento do capitalismo e à circulação de informações junto à troca de mercadorias. De fato, já a partir do século 14, a antiga troca de cartas comerciais passa a ser transformada em uma espécie de sistema corporativo de correspondência.
Assim, a esfera pública burguesa foi sendo moldada a partir de um discurso econômico, por um lado, e de um projeto filosófico, de outro, ambos interconectados em termos da formação do pensamento moderno (BUCCI, 2009, p. 73). É preciso, pois, ter em mente a influência do Iluminismo enquanto projeto fundamental à formatação das bases epistemológicas sobre as quais se assentou a sociedade burguesa.
A publicidade e o debate racional
É do projeto iluminista, e, sobretudo, da ideia de emancipação, que a esfera pública extrai sua legitimidade. Nessa formação discursiva, com base no pensamento racionalista, os cidadãos “emancipados” passam a defender sua própria autonomia e a considerar-se suficientemente esclarecidos para decidirem sobre si mesmos e sobre questões relevantes a seus interesses. Estão aí as bases do ideal de liberdade – e liberdade de expressão e de imprensa – que marca a construção (discursiva, sem dúvida) do sujeito moderno.
Ora, essa forma de entender o papel do homem na sociedade é própria do movimento iluminista, que – em termos muito resumidos, mas que servem ao propósito de esclarecer a ideia que aqui queremos mostrar – representa a superação de um estado de incapacidade de utilizar o próprio intelecto sem ser guiado por um “outro”. No século 18 – época em que a sociedade burguesa se estabeleceu como esfera pública [as datas variam, de país para país; quando falamos em século 18, temos em mente, sobretudo, o caso francês] –, havia uma separação entre sociedade civil (domínio da moral) e Estado (domínio do político), então absolutista. Essa divisão colocava os limites entre as esferas do privado e do público. Assim, ainda que a esfera privada tivesse poderes de legislação moral, ela não possuía legitimidade política.
Com a ideia de publicidade e de formação da opinião pública, transforma-se a relação entre público e privado, o que se dá a partir de “discursos que engendram juízo de valor sobre o poder ou sobre a organização do Estado” (BUCCI, 2009, p. 72). De acordo com Habermas, esfera pública diz respeito à reunião de privados em um espaço público, os quais, a partir do uso da razão, discutem temas de interesse comum, levando à formação de opinião sobre os assuntos debatidos (HABERMAS, 1984). Nesse cenário, os primeiros impressos possuíam função opinativa, atuando como veículo da opinião produzida nos espaços públicos de debate, confronto e convívio. Desse modo, a imprensa assume papel fundamental no sentido da ampliação da crítica política.
Para Habermas, as condições para definirmos a esfera pública burguesa são a publicidade – entendida como a divulgação pública das informações necessárias ao debate dos temas – e o debate racional – tido como o meio de garantir que a opinião pública seja a expressão da síntese dos vários argumentos, visando à constituição de uma posição identificada com o interesse geral. Nesse pensamento, o conceito essencial do processo de debate racional no espaço público é a “opinião pública”, entendida como resultado dessas discussões acerca de um tema específico (HABERMAS, 1984).
O acesso aos debates políticos
Visualizamos, nesse momento, o que podemos considerar como uma “primeira fase” da ideia moderna de liberdade de expressão, muito ligada à liberdade de crítica e à autonomia frente ao Estado, à formação do público, ao espírito de cidadania, à emancipação do sujeito moderno e à necessidade de circulação de informações.
Trata-se de uma liberdade que se situa entre os conceitos republicano (do ponto de vista da oposição ao poder absolutista) e liberal (do ponto de vista do imperativo das relações de troca que levam aos primeiros ensaios de formação de uma esfera pública) de liberdade de expressão. Vemos, pois, que esses conceitos – embora possam ser apresentados mais ou menos como tipos ideais [termo inspirado na proposta de análise sociológica de Max Weber, que aparece em diferentes trabalhos desse autor, dentre os quais podemos enfatizar seu livro A ética protestante e o espírito do capitalismo (2012), em que ele analisa o “tipo ideal” do empresário capitalista], ou seja, considerados de modo “puro” a fim de tornar mais clara a explicação de suas propriedades – apresentam cruzamentos e interfaces quando passamos à observação da experiência histórica.
Não obstante, o ideário de liberdade presente na gênese da esfera pública burguesa, ainda que inspirasse o surgimento de uma imprensa de opinião cuja importância foi fundamental ao estabelecimento dessa esfera pública, não possuía o mesmo estatuto que a liberdade de imprensa pôde alcançar com a expansão da imprensa como atividade comercial. É essa segunda modulação da ideia moderna de liberdade de expressão que buscaremos examinar agora, observando sua conexão com a formação de uma “instância da palavra impressa”.
Para compreender esse processo, é preciso lembrar que a imprensa desempenhou papel fundamental no processo que Habermas (1984) identificou como “mudança estrutural da esfera pública”. Para o autor, essa transformação ocorreu quando a imprensa – que, na esfera pública burguesa, atuava como veículo das opiniões produzidas nos espaços públicos de debate – tornou-se o elemento principal para representar os interesses burgueses. No princípio, as primeiras publicações atingiam a burguesia culta como meio de comunicação para a formação de opinião pública na esfera pública burguesa. Os primeiros impressos, inclusive, tratavam de assuntos ligados à arte e literatura. Com o tempo, as discussões – até então presenciais – expandiram-se para outros públicos, que passam a ter acesso aos debates políticos.
A expressão de opiniões numa perspectiva pública
Esse processo, segundo Habermas, ocorreu a partir da consolidação do Estado liberal de direito burguês em sua fase intervencionista, resultante da necessidade de mediação dos conflitos entre capitalistas e trabalhadores, que ascenderam do âmbito privado ao público. Habermas identifica, pois, o risco inerente à contradição da esfera pública: no momento em que sua constituição hegemônica deixa de ser burguesa e parte do povo adentra tal espaço, a noção da publicidade e de um princípio de debate racional volta-se contra a própria burguesia.
Devemos notar que, nesse cenário, o trabalho da imprensa começava a incomodar não apenas proprietários privados, em sua esfera íntima, mas também os interesses de integrantes do poder público. Por esse motivo, foram criadas regulamentações para o trabalho midiático, a fim de controlar o fluxo de ideias entre os espaços público e privado. Diante disso, as pressões sobre a liberdade de expressão dos jornais só foram reduzidas, no Estado burguês de direito, com a transformação da imprensa opinativa ou partidária em informativa ou comercial.
Como observa Ivan Paganotti, embora a interferência do Estado tenha reduzido a imprensa à lógica empresarial, sujeita a uma gama de interdições, a segurança jurídica foi também essencial para o sucesso do modelo de mídia como negócio capitalista, baseado no lucro e na sustentação comercial:
“Como o público interessado nas novidades do dia era mais amplo do que os capazes de acompanhar as tramas palacianas e partidárias, foi possível um aumento das tiragens e a venda do espaço publicitário – assim, grandes editores perceberam que, ao invés de sitiar as torres do poder administrativo, eles podiam construir seus próprios impérios de papel” (PAGANOTTI, 2012, p. 6).
Com efeito, ainda que fundada no modelo de empresa com interesses particulares, a imprensa amplia a esfera pública e supera a expressão de opiniões individuais na esfera privada, abrindo espaço para cidadãos interessados em influir no processo político e informar-se sobre acontecimentos relativos aos poderes administrativo, parlamentar e judicial, posicionando-se a partir de uma perspectiva pública. Assim, a imprensa sustentou a consolidação de um espaço público de debate, diante do qual o Estado precisa buscar legitimidade para suas ações, a partir do debate racional e do estabelecimento de consenso (PAGANOTTI, 2012, p. 7).
O acesso às informações no século 19
É aí que entra a formação de uma “instância da palavra impressa”, como fala Eugênio Bucci, conceito que mobilizamos para compreender a relação comunicativa específica trazida à cena pela atuação da imprensa sobre a configuração de espaços públicos. No caso dos jornais impressos, suportes da constituição dos espaços públicos nacionais (sobretudo no século 19 e início do 20), o ritmo dos deslocamentos estava condicionado à periodicidade diária das publicações. Não apenas as informações disponíveis renovavam-se a cada 24 horas, como também o entendimento dos fatos e das ideias nascia e morria segundo esse ciclo. De modo correlato, a instância da palavra impressa demarcava também uma região espacial, com fronteiras (idiomáticas e geográficas) limitadas, relacionada ao “contingente humano que a tem como referência de relação comunicativa”, mobilizando o acervo imaginário dessa comunidade diariamente (BUCCI, 2009, p. 68).
Situando-se na lógica da instância da palavra impressa, a liberdade de imprensa constitui elemento fundamental à consolidação da democracia e do Estado nacional moderno. Do ponto de vista das práticas profissionais, a liberdade aparece como pressuposto de ação e fundamento ético do jornalismo. Nesse cenário, o Estado não pode ignorar os argumentos e opiniões influentes que são trazidos à tona na esfera pública por meio de ações de comunicação. No entanto, o Estado detém o poder de silenciar as informações que considere ameaçadoras ou indesejáveis. Assim, “se a esfera pública age como um sensor de opiniões para influenciar decisões, em alguns momentos o poder administrativo impõe, como um censor, limites ao acesso e à discussão de informações públicas” (PAGANOTTI, 2012. p. 5).
Instaura-se, desse modo, uma tensão com a esfera pública a partir do instituto da censura. O que está em jogo é justamente a independência ou a liberdade do debate público e, por pressuposto, dos órgãos jornalísticos, encarregados de mediar esse debate. O princípio da liberdade de imprensa, na instância da palavra impressa, torna-se objeto de reivindicações em discursos circulantes na esfera pública como elemento fundamental ao sucesso do projeto democrático.
Não obstante, com o desenvolvimento da indústria cultural e dos meios de comunicação de massa, já no século 19, a palavra impressa deixava de ser fator obrigatório para que os cidadãos tivessem acesso às informações que lhes interessavam.
O advento da modernidade
O entretenimento ganha espaço – pelo cinema e, depois, pela televisão – e o espaço comum tornou-se um “imenso parque de diversões virtual”, no qual a “instância da imagem ao vivo” passou a ter importância central (BUCCI, 2009, p. 69).
Ligada não à imagem ao vivo em si, mas ao lugar social que lhe serve de sede, à “condição imediata e permanente de estar ao vivo a qualquer momento” (BUCCI, 2009, p. 71), essa instância representa um vínculo comunicacional, ao mesmo tempo tecnológico e social, entre os sujeitos, sendo indiferente o meio pelo qual ocorre essa comunicação – o que inclui até mesmo a internet, que, nesse entendimento, não revoga a instância da imagem ao vivo.
A visão torna-se o principal critério de verificação da verdade; a política e o jornalismo aproximam-se do espetáculo e do entretenimento; dissolvem-se os limites do idioma e geográficas; a instantaneidade substitui o tempo cíclico; a razão perde terreno. Como diz Eugênio Bucci, “o espaço público posto pela ‘instância da imagem ao vivo nasce, enfim, como um espaço marcadamente estético” (BUCCI, 2009, p. 69). Nessa nova instância, entram em crise os conceitos de liberdade de expressão e liberdade de imprensa paridos com o advento da modernidade.
A era do espetáculo
O espetáculo – mistura de desejo inconsciente, modo capitalista de produção e mercado de consumo (BUCCI, 2005, p. 92) – radicaliza uma relação com a imagem apenas anunciada na instância da imagem ao vivo. Segundo Guy Debord, no espetáculo, as relações sociais são mediadas por imagens; nele, o capital atinge tal grau de concentração que se torna espetáculo, dá-se a ver (DEBORD, 1997).
Para compreender a discussão proposta por Eugênio Bucci, que articula conceitos do marxismo e da psicanálise para apresentar a ideia de “valor de gozo” da mercadoria (que deve se realizar, no espetáculo, antes de mais nada, como imagem), é preciso pontuar algumas noções basilares. Primeiro, é preciso lembrar que Marx faz uma distinção entre valor de uso (o uso próprio da mercadoria pelo sujeito) e valor de troca (sendo este o valor dado pelas relações sociais, pelo mercado). Em outras palavras, o valor de uso apresenta-se como base material em que se apresenta uma relação econômica determinada, da qual deriva o valor de troca.
Segundo Bucci, porém, a mercadoria pode ser incorpórea. Não mais apenas a matéria-prima, a inovação e o trabalho constroem o valor que resulta da circulação de mercadorias; o olhar também assume função decisiva no espetáculo. Para Lacan, o sujeito (que se torna “barrado” desde sua inserção no mundo do simbólico, quando perde o “sentimento oceânico” de continuidade com o amor materno e o mundo), a quem sempre “falta” alguma coisa, representa a realização de seu desejo em uma cena imaginária (“fantasma”). A morte do desejo corresponde ao gozo, alcançado quando o sujeito barrado conecta-se a um “pequeno objeto a”, na terminologia lacaniana, objeto de seu próprio desejo, que lhe dá a sensação (imaginária e transitória) de completude.
O gozo imaginário é uma busca de um sujeito desesperado, dividido, que se vê completo no mundo do imaginário. A função da imagem é proporcionar o gozo ao sujeito. Segundo a proposta teórica de Bucci, o capitalismo, na era do espetáculo, especializou-se em produzir, na forma de imagens, “pequenos objetos a”, plenos de valor de gozo. O significante da mercadoria adquire papel fundamental nesse cenário. É ele que “a põe em movimento na direção do sujeito – e este procura nela não um uso racional, conscientemente calculado, mas o gozo imaginário, dado pela completude que a mercadoria lhe proporciona imaginariamente” (BUCCI, 2002, p. 4).
O gozo imaginário é quem determina o valor de troca. Isso significa dizer que, no capitalismo superindustrial, um outro valor passou a ser produzido socialmente, o valor de gozo, que afeta de forma preponderante a determinação do valor de troca. Não obstante, como destaca Bucci, é essencial ter claro que o valor de gozo é produzido fora da “coisa produzida” – ou seja, no imaginário (BUCCI, 2002, p. 8). “Para ser passível de significação, a imagem da mercadoria deve instaurar-se no imaginário – é aí que se dá a complementação de sua fabricação” (BUCCI, 2002, p. 12).
O valor de gozo se manifesta, na busca empreendida pelo sujeito na mercadoria, como valor de uso – ainda que se trate de um uso que aconteça como fantasia.
“E esse valor de uso lhe aparece como sendo o significado de si mesmo (aí é que a mercadoria preenche uma ‘necessidade originada da fantasia’, a que poderíamos chamar de desejo). Por meio da posse da mercadoria, ele, sujeito faltante, completa-se imaginariamente: o significado da posse dessa mercadoria lhe responde a pergunta sobre quem ele é. Assim, o consumo da mercadoria tem sua raiz no desejo inconsciente. Na mediação dessa busca é que incide o valor” (BUCCI, 2002, p. 3).
O politicamente incorreto e o olhar social
O sentido e o valor da imagem são construídos pelo olhar. As imagens só adquirem existência quando são olhadas, pois elas nascem segundo imperativos do olhar. Ao mesmo tempo, o valor das imagens é gerado e realizado somente quando o consumidor – atuando como operário – olha para elas. É o consumidor que produz a inserção das imagens que vê na instância do imaginário. Por isso, o olhar é “trabalho”. Como diz Eugênio Bucci, “Consumir imagens é consolidar seu significado. Na mesma medida, consumir imagens é também fabricar seu valor” (BUCCI, 2010, p. 3).
A fim de exemplificar os conceitos aqui apresentados e expandir nossa discussão sobre os limites atuais da expressão, podemos pensar, a partir da perspectiva teórica desenvolvida por Eugênio Bucci, alguns elementos do discurso – sobretudo no humor – do “politicamente incorreto”, o qual concebemos como típico produto do espetáculo.
Entendemos que o politicamente incorreto é, hoje, construído como “marca” – mais do que como gênero –, pois se apresenta como representação simbólica e imaginária que permite identificar, de longe, os elementos que compõem o produto em questão. A marca “politicamente incorreto” é de pronto associada a uma imagem. Aqui, também, como é característico da instância da imagem ao vivo, a mercadoria precisa ser consumida como imagem. Não é à toa que, ao pensar nesse tipo de humor, rapidamente invocamos a figura de Danilo Gentilli ou Rafinha Bastos engravatados.
No imaginário, porém, os sentidos se desdobram. Consumir o politicamente incorreto – assim como usar Channel n.º 5 ou dirigir uma Ferrari – remete a uma cena imaginária. Essa cena imaginária nada tem a ver com a satisfação de necessidades humanas imediatas – não se trata somente, portanto, de buscar entreter-se, de disfarçar maus odores ou deslocar-se de modo mais eficiente (supondo que tudo isso possa ser considerado como “necessidade”). Os significantes das mercadorias, ao contrário disso, movimentam-na na direção do sujeito, que vê nela a possibilidade de alcançar imaginariamente a completude, o gozo imaginário.
Danilo Gentilli [um dos principais representantes do humor politicamente incorreto no Brasil, é reconhecido como um dos precursores do movimento de stand-up comedy que ganhou força nos anos 2000 no país. Ganhou projeção nacional em 2008 como integrante do programa Custe o Que Custar, da Rede Bandeirantes, e foi criador e apresentador do talk-show Agora é Tarde, em 2011, na mesma emissora. Em 2010, ao lado de seu colega Rafinha Bastos, também comediante, e do produtor Italo Gusso, fundou, em São Paulo, o Comedy Club Comedians. Mais informações podem ser encontradas no site oficial de Danilo Gentilli: http://www.danilogentili.com], como mercadoria posta à disposição pelo espetáculo, aparece como imagem e, devido à disposição dos significantes que o compõem, consumir seu humor representa, imaginariamente, a subversão de normas morais/sociais. Como se, magicamente, ao rir de suas piadas (mesmo as mais preconceituosas e conservadoras), o consumidor se tornasse blindado às normas que regulam a vida social e, inclusive, aos limites da ofensa. Se, no espetáculo, utilizar determinadas marcas de cosmético significa, imaginariamente, dormir com Marilyn Monroe, o politicamente incorreto tem o valor imaginário de, por se dizer o que se pensa, ser superior aos outros.
Claro que, para que esses valores se fixem no imaginário, é preciso que o olhar social trabalhe a seu favor. De fato, o politicamente incorreto, como demais produções próprias do espetáculo, entra em uma disputa ferrenha por fatias do olhar social, procurando angariar audiência por meio da televisão e das mídias digitais. O amplo consumo das imagens do politicamente incorreto contribuem para a construção de seu significado e, consequentemente, para a fabricação de seu valor.
Um convite à reflexão
Como se pode ver, a lógica do espetáculo opera um deslocamento fundamental em relação ao conceito de liberdade de expressão e de imprensa, avançando o processo iniciado com o telespaço público. A rigor, o espetáculo tira de cena a importância do espaço público. A liberdade de expressão não aparece mais como fundamento ético, premissa deontológica ou mesmo identidade política (ou, pelo menos, em muitas das vezes, não aparece assim).
O que queremos dizer é que o espetáculo reduz a liberdade de expressão a um significante que, atrelado a determinadas imagens, ajuda a compor seu sentido imaginário. É este o caso do politicamente incorreto, em que, como vimos, a possibilidade irrestrita de expressão aparece não como um projeto para se pensar o espaço público, mas sim, como sentido fixado no imaginário capaz de lhe conferir valor de gozo (que, por sua vez, irá determinar seu valor de troca).
Vemos, portanto, que o espetáculo radicaliza e desloca uma crise do conceito de liberdade de expressão e de imprensa já iniciada pela instância da imagem ao vivo e com a instauração do telespaço público. Mas, na lógica do espetáculo, entendemos que o esvaziamento operado é ainda maior.
Além de mostrar os limites que o conceito de liberdade de expressão encontra na contemporaneidade, em um momento de crise (e, talvez, rearticulação) das fronteiras da liberdade de expressão, ao mesmo tempo em que verificamos o surgimento de formas indiretas e fluidas (embora eficientes) de censura, é preciso reafirmar a importância de se continuar discutindo e refletindo sobre esse princípio, em toda a sua dimensão não apenas teóricas, mas também ética e política – ao menos, enquanto estivermos protegidos pela relativa autonomia dos espaços acadêmicos.
Referências bibliográficas
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PETLEY, Julian. Censoring the word. Londres/Nova York/Calcutá: Seagull, 2008.
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Nara Lia Cabral Scabin é professora de Jornalismo e Redação no Ensino Médio, pesquisadora do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da Universidade de São Paulo e mestre em Ciências da Comunicação