Após publicar neste Observatório o artigo ‘Uma visão a favor da obrigatoriedade’ [ver remissão abaixo], acho interessante salientar mais algumas questões sobre a necessidade do Curso de Jornalismo. Muitos dos que são contrários à obrigatoriedade do diploma argumentam que cursar uma faculdade específica para exercer a profissão é algo desnecessário. Há quem diga, inclusive, que o jornalismo não possui conhecimentos específicos.
Acreditamos que essa afirmativa – acompanhada de um certo sentimento anti-acadêmico em torno das especificidades da comunicação aplicadas ao jornalismo – deve-se ao fato de que, historicamente, o curso superior na área seja recente e que alguns conhecimentos foram absorvidos em observação empírica na área.
Atualmente, a figura do jornalista que ‘sabe das coisas’ permanece de forma anacrônica. De maneira equivocada, alguns argumentam que seria melhor que o jornalista que atua na editoria de economia, por exemplo, fosse formado nessa área. Tal pressuposto não enxerga como o conhecimento humano está fragmentado e desconhece o principal motivo que levou à identificação da necessidade de um curso superior específico para jornalistas. Foram necessários anos de análise para que se constatasse essa necessidade. A evolução dos meios de comunicação na esfera pública ganhou contornos que sociologia, filosofia, psicologia, antropologia, entre outras ciências humanas e sociais, não conseguiram absorver sozinhas.
Fenômeno
A princípio, todas tentavam tomar os medias como um novo objeto de estudo particular. Logo, viram que não era possível. O que deu início a um estudo multidisciplinar, que, é claro, não deixou de ser útil até hoje. Contudo, não demoraram em perceber que uma nova área exclusiva de pesquisas científicas estava exposta, exigindo delimitação mais clara. Isso porque nem a filosofia, ou a antropologia, ou a sociologia se dedicava exclusivamente aos medias.
Além disso, estava obviamente constatado que os profissionais que a sociologia, a filosofia, a antropologia ou a psicologia formam não se aprofundam exclusivamente na elaboração teórica e técnica dos medias ou de seus vícios e efeitos sobre a sociedade a médio e longo prazo. Tornou-se clara, portanto, a necessidade de reconhecer o surgimento de um novo fenômeno, no campo das ciências sociais e humanas, que exigia uma nova especialização: a comunicação social, área exclusivamente dedicada aos meios de comunicação de massa.
Logo de cara, o curso de Comunicação se mostrou tão extenso que notou-se também a necessidade da segmentação deste novo fenômeno das ciências sociais e humanas. Principalmente nas ramificações em que se notou a existência de objetos ainda mais particulares. O jornalismo é uma delas. Tem um objeto próprio de estudo, definido por alguns de ‘mediação do interesse público nos medias’ ou ainda ‘mediação das notícias nos medias’. O que no fim significa o mesmo, pois o princípio de notícia é tudo aquilo que carrega interesse público. Ora, se o objeto de trabalho do jornalista é a ‘a mediação do interesse público nos medias’, vemos a importância de nos aprofundarmos na communication research, que desenvolve pesquisas sérias como agenda setting, newsmaking, espiral do silêncio, semiótica e tantas outras pesquisas científicas aplicadas ao jornalismo.
Ao jornalista, portanto, cabe:
1)
A responsabilidade de se especializar na veiculação equilibrada das vozes sociais nos medias;2)
Detectar vícios e práticas que prejudicam a boa comunicação;3)
Observar os efeitos das coberturas jornalística em médio e longo prazo;4)
Preservar o equilíbrio das vozes sociais e políticas nos medias; fiscalizar o poder público;5)
Observar a capacidade dos medias de influenciar o público não no como pensar sobre determinado assunto, mas sobre o que pensar;6)
Organizar, estruturar e hierarquizar as informações, explicá-las, analisá-las e interpretá-las, e apresentá-las e difundi-las por diversos processos, utilizando-se de meios impressos, auditivos, visuais, geralmente combinados entre si;7)
Fiscalizar o poder público;8)
Saber diferenciar o interesse público do interesse perverso do público.Necessidade
É evidente que, para atingir esses objetivos, são necessárias aplicação pessoal nos estudos e pesquisas específicas da comunicação sobre o jornalismo. O que também não anula a apropriação de trabalhos desenvolvidos por outras ciências sociais e humanas. Ou seja, a interdisciplinaridade nunca será anulada, e isso não diminui a necessidade de um curso totalmente voltado ao jornalismo.
É como acontece com a medicina. Endocrinologistas, por exemplo – únicos especialistas autorizados a atender pacientes diabéticos – apropriam-se de conhecimentos desenvolvidos por nutrólogos, cardiologistas, urologistas, entre outros, sem prejuízo algum da necessidade do curso específico em Endocrinologia. A interdisciplinaridade nunca será motivo para desmerecer uma graduação em particular.
Esta semana, entrei em contato com o professor Francisco José Castilhos Karam, da Universidade Federal de Santa Catarina, sobre a necessidade da graduação em Jornalismo. Em resposta ao meu e-mail, Karam respondeu: ‘A obrigatoriedade do diploma é apenas o resultado de uma necessidade, a de estudar e de ter conhecimentos específicos’. Imaginemos o que seria das ciências (humanas, exatas e biológicas) sem o respeito de aprender o que já foi observado e analisado? E isso é óbvio. Acho interessante citar o seguinte trecho do livro Jornalismo, ética e liberdade, de Francisco Karam:
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‘A resistência à teorização é resultado de uma tradição que considera a experimentação a única referência da realidade, como se a subjetividade humana não pudesse negar o existente para criá-lo em outras bases ou como se isso fosse inútil.
Os conhecimentos específicos proporcionados por uma faculdade de Jornalismo jamais serão absorvidos pela prática diária. Aproveito para citar, mais uma vez, dois trechos do raciocínio do jornalista Eugênio Bucci, escrita no livro Sobre ética e imprensa, que já usei no artigo ‘Uma visão a favor da obrigatoriedade’. Bucci diz que ‘a prática jornalística nunca dependeu tanto da reflexão e do estudo como agora.
Julgar que os conhecimentos éticos tradicionais estão automaticamente assegurados pela prática do dia-a-dia e que são suficientes para as coberturas contemporâneas é tão anacrônico quanto acreditar que os cuidados que um pistoleiro do Velho Oeste dispensava ao seu Colt 45 são suficientes para que generais da Otan tomem conta de seus mísseis nucleares.
… chega a ser chocante constatar que a maioria dos jornalistas praticamente não estuda. Ao contrário, dão mostras de um sentimento antiacadêmico e antiintelectual quase sem precedentes. Nenhum deles levaria o filho a um dentista que se orgulhasse de não cursar pós-graduação. Nenhum deles iria se tratar com um cardiologista que não freqüentasse os congressos internacionais de sua área, de preferência apresentando trabalhos. Nenhum contrataria como um advogado curioso inculto; dariam preferência aos que fossem professores titulares de alguma universidade. E, mesmo assim, consideram normal que o público seja informado por profissionais que, em média, pouco lêem e não estudam. Que não estudam sequer o que passa com a comunicação e com o espaço público nas democracias atuais. A persistir nessa toada, a mentalidade média das redações continuará a reproduzir o espetáculo’.
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Valorização
Em 1987, Perseu Abramo também opinou sobre o curso específico de jornalismo:
‘Não é uma atividade geral, que qualquer um possa fazer. É um processo específico e complexo e que, por isso, exige formação especializada. A tendência histórica provável é que essa especialização aumente: cresce a complexidade tanto do mundo social e físico, que constitui o conteúdo das informações, quanto dos métodos de obtenção, registro e difusão das informações. Por isso modernamente o jornalismo necessita de formação especializada de nível superior; por isso é que surgiram, no interior dos sistemas escolares universitários, os cursos de jornalismo e seus diplomas. Não se trata de um ‘direito’ dos formandos. Trata-se do direito de a sociedade exigir do profissional a prova da sua formação regular, escolar e superior específica’.
A principal apelação daqueles que não acreditam na necessidade de um curso específico de Jornalismo está no fato de que os Estados Unidos e diversos países da Europa não prevêem a obrigatoriedade do diploma para a atuação profissional. Contudo, um breve olhar sobre o mercado de trabalho nesses lugares revela que a grande maioria de vagas é ocupada por profissionais formados em Jornalismo. Este fato comprova a contundência do curso específico, mas não só isso. Demonstra também a importância que as nações desenvolvidas delegam ao aprimoramento científico aplicado aos medias. Não é à toa que, nos Estados Unidos, por exemplo, as empresas de comunicação contribuam com generosas doações às universidades. Há, nitidamente, uma clara cultura de valorização do conhecimento humano.
Mobilização
Nessas sociedades mais igualitárias e verdadeiramente punitivas com a corrupção, esse sistema funciona ao ponto que as próprias empresas admitem e reconhecem a qualidade técnica e teórica proporcionada pelos cursos de Comunicação. Nos Estados Unidos, por exemplo, existem cerca de 400 faculdades e universidades que oferecem o curso de Jornalismo. A primeira conclusão de um estudo do U.S. Department of Labor sobre o mercado de trabalho de jornalismo no país diz que ‘a maioria dos empregadores prefere os graduados em Jornalismo ou Comunicação de Massa’.
Com o objetivo de obter mais informações sobre os cursos de Jornalismo na Europa, o jornalista Vitor Ribeiro pediu informações a alguns consulados sobre o assunto. As respostas foram interessantes. Segundo Hermann Meyn, ator do livro Os meios de comunicação na Alemanha, ‘ambas as organizações sindicais alemãs estão tendo que constatar mais e mais que a imagem do jornalista por nascimento é uma ilusão’. Vejamos também a resposta dos italianos:
‘A Ordem dos Jornalistas Italianos defende que a lei brasileira é avançada, por exigir formação superior no jornalismo. ‘Não pode haver improvisação na formação do jornalista’, afirmou o presidente da entidade italiana, Lorenzo Del Boca, durante sua recente visita ao Brasil. Segundo ele, as entidades de jornalistas italianos estão se mobilizando para elaborar um projeto de lei, nos moldes da legislação brasileira, a ser submetido ao Congresso italiano, exigindo o diploma de jornalismo para quem quiser exercer a profissão por lá’.
Falácias
Movimentos semelhantes acontecem em vários outros países, como a Inglaterra, que sofre com o abuso sensacionalista dos tablóides. Difícil mesmo é encontrar um país que não valorize a necessidade de graduação na área. No caso do Brasil, também é importante olharmos nossa realidade social e política para verificarmos que a obrigatoriedade torna-se importante para coibir ações políticas desonestas e escusas. Algo que já descrevi no artigo ‘Uma visão a favor da obrigatoriedade’.
Antes de escrever este artigo, também entrei em contato com o professor Muniz Sodré, da UFRJ, um dos intelectuais que mais admiro na área da comunicação. Sodré é um especialista que sabe, como poucos, problematizar cientificamente a comunicação e o jornalismo. Em resposta ao meu e-mail, ele afirmou que é a favor do diploma, mas infelizmente não quis emitir nova opinião sobre o assunto por estar envolvido com diversas outras tarefas e, portanto, não poderia elaborar uma análise detalhada sobre a questão.
De qualquer forma, o reconhecimento de especialistas como Sodré, Nilson Lage e José Francisco Karam sobre a necessidade de um curso específico em Jornalismo e a importância da obrigatoriedade do diploma demonstram que as acusações de que não há razoabilidade ou conhecimento específico suficiente sobre o jornalismo não passam de falácias. Pura ignorância de quem não conhece os avanços científicos da comunicação sobre o jornalismo.
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Jornalista e professor de História