Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A polêmica do humor irresponsável

O mundo contemporâneo apresenta uma série de mazelas no que concerne aos mais distintos assuntos. Desde a pobreza material ao desrespeito e intolerância frente ao outro, diferente dos padrões, convivemos com dificuldade em estabelecer, na prática, atitudes interessantes para uma vivência coletiva menos desagradável. No Brasil, uma pequena polêmica tem sido despertada por alguns setores, qual seja, a questão dos limites do humor e a rejeição à comédia “politicamente correta”.

Trata-se das consequências que determinados humoristas alcançam com suas sátiras destinadas a grupos envolvidos em problemas sociais e/ou individuais. Dito de outra maneira, os defensores da liberdade absoluta para as piadas sentem-se censurados quando são interpelados por pessoas ou organizações que preconizam mais cuidado ao se falar em temáticas como a discriminação racial, doenças, machismo, xenofobia etc. Iluminemos a indagação: há a necessidade de se colocar obstáculos ao humor? Devemos aceitar todas as formas de comédia, mesmo que elas insultem ou ataquem indivíduos/coletivos já subjugados no cotidiano? Não pretendemos oferecer respostas fechadas, sobretudo por essas consistirem em questionamentos bastante complexos, que podem resvalar em caminhos obscuros.

Uma vez salientada nossa pretensão sociológica, ainda que não restritiva, cintila interessante adicionar algumas contribuições de Jürgen Habermas acerca da modernidade e suas caracterizações, mas principalmente pensar com atenção nas proposições relacionadas à sua teoria da ação comunicativa. Com isso não queremos aplicar num gesto mecânico a teoria habermasiana, e sim, trazer subsídios ao debate em voga. O filósofo e sociólogo representa uma espécie de segunda linhagem da chamada Escola de Frankfurt, que aglutinou pensadores importantes como Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Walter Benjamin e Mark Horkheimer. Dela se consolidou a teoria crítica, que tem como eixo central a crítica à sociedade industrial moderna.

“Processo cooperativo de interpretação”

Habermas observa no capitalismo tardio vulnerabilidades sob o ponto de vista da racionalidade, da motivação e da legitimação. O trabalho, calcado no domínio da natureza para a satisfação humana, congrega uma racionalidade similar à da ciência e da técnica, uma racionalidade que se orienta pela organização e escolha adequada de meios para realizar determinados fins. Entretanto, Habermas demonstra a ideia de que a modernidade impulsionou não somente a racionalidade instrumental, norteada pela eficiência, pelo agir estratégico, à medida que ela comporta a razão comunicativa, vinculada ao entendimento, embora as esferas de decisão nas quais a razão comunicativa deve prevalecer estejam penetradas pela racionalidade instrumental.

A racionalidade instrumental, na trajetória de ampliação de seu campo de atuação, substituiu de forma crescente o espaço da interação comunicativa que havia anteriormente no âmbito das decisões práticas que diziam respeito à comunidade. Dessa forma, caem por terra as antigas formas ideológicas de legitimação das relações sociais de poder. Com esse tipo de racionalidade não se questiona se as normas institucionais vigentes são justas ou não, mas somente se são eficazes, isto é, se os meios são adequados aos fins propostos, ficando a questão dos valores éticos e políticos submetida a interesses instrumentais e reduzida à discussão de problemas técnicos (GONÇALVES, 1999: 130).

O pensador alemão encontra em fundamentos teóricos interdisciplinares a tentativa de produzir uma teoria social reconstrutiva, aproximando a sociologia (Weber, Durkheim, Mead e Parsons), a filosofia (Kant, Husserl e Schutz), a linguística (Austine e Searle) e a psicologia estrutural-genética (Piaget e Kohlberg). A saber, a interação social tem a potencialidade de uma interação dialógica, comunicativa, mas a colonização da racionalidade instrumental no espectro da ação humana interativa, ao gerar um enfraquecimento da ação comunicativa e ao diminuí-la à sua própria estrutura de ação, formulou nos sujeitos contemporâneos formas individualistas de agir, pensar e sentir, que sustentam alguns dos percalços das sociedades modernas. Ele afirma que

[…] en realidad las manifestaciones comunicativas están insertas a un mismo tiempo en diversas relaciones con el mundo. La acción comunicativa se basa en un proceso cooperativo de interpretación en que los participantes se refieren simultáneamente a algo en el mundo objetivo, en el mundo social y en el mundo subjetivo […] Hablantes y oyentes emplean el sistema de referencia que constituyen los tres mundos como marco de interpretación dentro del cual elaboran las definiciones comunes de su situación de acción. […] Entendimiento (Verständigung) significa la “obtención de un acuerdo” (Einigung) entre los participantes en la comunicación acerca de la validez de una emisión; acuerdo (Einverständnis), el reconocimiento intersubjetivo de la pretensión de validez que el hablante vincula a ella (1999: 171).

“Um amadurecimento ético-racional”

Nas sociedades modernas, está disposta uma tensão entre o mundo sistêmico e o mundo da vida (Lebenswelt). Os sistemas são compostos pelos subsistemas político e econômico, o Estado e o mercado, respectivamente, e as formas de coordenação da ação ali presentes condizem com a integração sistêmica e a razão instrumental e estratégica. No mundo da vida, por seu prisma, as ações são coordenadas pela integração social e pela razão comunicativa, sendo um processo linguisticamente mediado, uma realidade elaborada pelos atores desde suas experiências intersubjetivas que ocorrem nas situações face-a-face. É o mundo da vida que pode ser considerado o pano de fundo da teoria da ação comunicativa, porquanto nele os atos de fala, isto é, a definição de que um falante realiza um ato enquanto fala, adquire relevo e incorpora a noção de que um ato performativo carrega consigo o conteúdo comunicativo do indivíduo que possui somente o objetivo do entendimento.

A esfera pública é mencionada como um espaço fundamental, que engendra “uma estrutura comunicacional do agir comunicativo orientado pelo entendimento” (HABERMAS, 1997: 92). Nesse sentido, o nível de efetivação, ou mesmo da qualidade da esfera pública, correlaciona-se com a quantidade e a qualidade dos argumentos expostos. É possível trazer ramificações de esfera pública nas sociedades contemporâneas, como a episódica (bares, ruas, elevadores), da presença organizada (reuniões, congressos) e a abstrata, feita através da mídia. A esfera pública possibilita a exposição argumentativa e sem acesso a ela a possibilidade de cidadania se vê reduzida a quase nada.

Não obstante, os rumos tomados pela ciência social no capitalismo avançado são problematizados pelo autor, ao passo que a passagem do agir estratégico para o agir comunicativo dependeria de uma compreensão aprofundada não só dos resultados nefastos da aliança positivismo-funcionalismo com a dominação de classes, mas do emaranhado entre linguagem e realidade social e política.

“A ciência e a política têm de traduzir-se, em última análise, em atos de fala, caracterizando um complexo processo de emissão-recepção no contexto de intersubjetividade linguística. […] Para Habermas, tal possibilidade depende de um amadurecimento ético-racional que perceba o papel central que a comunicação linguística desempenha ao mesmo tempo como contexto e instrumento de transformação da realidade humana” (MONTEIRO, 1995: 179/180).

Realidade nem sempre divertida

Jürgen Habermas propõe que, por meio da ação comunicativa, seja possível enfrentar uma situação na qual os discursos presentes, sem serem arbitrários, se dirijam para um consenso que não se configure ilusório. A rigor, fala-se numa situação linguística ideal, cuja comunicação não esteja afetada por efeitos externos contingentes, nem por derivações da estrutura da comunicação. “Ela supõe que, em princípio, todos os interessados possam participar do discurso e que todos eles tenham oportunidades idênticas de argumentar, dentro dos sistemas conceituais existentes ou transcendendo-os, e chances simétricas de fazer e refutar afirmações” (FREITAG, 1990: 19). O Estado democrático de direito precisa estar aberto às tematizações da esfera pública, sua legitimidade tem de passar pelo crivo das discussões publicizadas.

“Naquilo que se destaca como possível para a transformação dos graves problemas da humanidade no capitalismo contemporâneo, Habermas enxerga o resgate de uma racionalidade comunicativa nas zonas de decisão que abrangem a interação social tomadas pela racionalidade instrumental. Considerando que o ser humano não reage tão somente aos estímulos das situações que vivência, porém dá um sentido às suas ações e pela linguagem se capacita a comunicar sua interioridade, Habermas deposita no diálogo a esperança de que retomemos nosso papel de sujeitos” (GONÇALVES, 1999).

Tanta ênfase no agir comunicativo, na percepção de que a fala não é desprovida de um ato, ou seja, falar é enunciar, nos faz refletir sobre a liberdade irrestrita dos meios de comunicação de massa, mas também sobre as simples piadas desferidas no mundo da vida. Se bem que o temor da censura ainda permaneça atual, estabelecer critérios para um humor que versa pejorativamente acerca de questões que não são engraçadas para aqueles que nelas estão envolvidos não indica repressão aos comediantes.

Convém, quem sabe, cercar-se não de correções estéreis sob a égide da moralidade, e sim, de atitudes e discursos que busquem o consenso, a inclusão, pautada numa ética universalista de justiça (se é que essa pode ser concebida nas sociedades ocidentais capitalistas contemporâneas), destituindo o apontamento compulsório dos defeitos, aspectos ou diferenças alheias. Na ausência disso enveredam os que apregoam um céu estrelado para o humor irresponsável, uma liberdade completa, como se ele não fosse imbuído de um arsenal de preconceitos, julgamentos e atribuições sociais tão evidentes aos que não fecham os olhos para a realidade nem sempre divertida.

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Referências

FREITAG, Bárbara. Habermas (Coleção Grandes Pensadores). São Paulo: Ática, 1990.

GONÇALVES, Maria Augusta Salin Gonçalves. “Teoria da ação comunicativa de Habermas: Possibilidades de uma ação comunicativa de cunho interdisciplinar na escola.” Revista Educação & Sociedade, ano XX, número 66, Abril/1999.

HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. (Vol. II). Madrid: Taurus, 1999.

______________. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

MONTEIRO, Luiz G. M. “Jürgen Habermas: Estado, Conhecimento, Dominação e Ação Comunicativa.” In: Neomarxismo: Indivíduo e Sociedade. Florianópolis: Edusc, 1995.