‘O fogo é mais antigo que o fogão’, lembra o músico Jorge Ben Jor na canção Alcohol (1993), assim como a educação é mais antiga que a escolaridade e o jornalismo, mais antigo que o diploma. É preciso ter consciência da ordem cronológica desses fatores para não fazer confusão sobre o processo histórico que os desencadeia. Coloco essas questões para discorrer sobre a decisão histórica do Supremo Tribunal Federal (STF), que suspendeu, no último dia 17/6, a exigência do diploma de jornalismo para ser jornalista.
Com essa medida, o STF colaborou para a sociedade brasileira dar mais um passo significativo em nome da liberdade de expressão, ampliando a participação de todos os seus membros na imprensa, agora como potenciais jornalistas. Nesse sentido, foi oferecida à coletividade uma fundamentação legal de acesso aos processos informativos e opinativos nos jornais, tendo em vista garantir o exercício da horizontalidade e da diversidade discursivas tão necessárias ao livre circuito de fatos e comentários produzidos, divulgados e interpretados no campo jornalístico. A atuação jornalística não pode ser exclusividade de uma elite de diplomados. Muito menos de diplomados num único curso.
O papel emancipatório da inteligência
O diploma não passa de um atestado de que o seu portador cursou o programa indicado e teria atendido a requisitos formais. O que não garante que o seu desempenho será satisfatório. Para certas atividades, faz sentido que a lei exija o diploma, pois esse certificado sinaliza aos demais que o portador daquele instrumento apresenta condições de prestar o serviço com qualidade e confiabilidade. Trata-se de profissões em que o erro tem consequências graves ou irreversíveis, e de serviços em que o contratante não está em condições de avaliar quem os presta. Nesses casos estão, por exemplo, médicos e pilotos.
Nos casos mais malignos, o diploma assegura a reserva de mercado, impedindo o trabalho de quem sabe, mas não tem o diploma. Por exemplo: Machado de Assis não poderia ser jornalista se no tempo dele estivesse em vigor o Decreto-Lei 972/69, já que no referido regulamento exigia-se o diploma de jornalismo para o exercício da atividade em questão. Sem diploma, Machado foi um dos nossos maiores jornalistas e um dos pioneiros da crítica da imprensa no Brasil. Atuou em vários jornais, de forma regular, entre 1859 e 1900. No artigo ‘O jornal e o livro’, publicado no Correio Mercantil de 10 e 12/01/1859, Machado de Assis, ainda jovem, elaborou um conjunto de conceitos que até hoje vigoram como ideal de jornalismo. Naquela oportunidade, ele definiu o jornal como ‘a verdadeira forma da república do pensamento’, ‘a locomotiva intelectual em viagem para mundos desconhecidos’, ‘a literatura comum, universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das idéias e o fogo das convicções’. Para que o jornalismo real estivesse à altura de seu papel emancipatório da inteligência coletiva, Machado acreditava que a imprensa deveria ser a ‘reprodução diária do espírito do povo, o espelho comum de todos os fatos e de todos os talentos, onde se reflete, não a idéia de um homem, mas a idéia popular’.
Reflexões e ações educativas
Diante desses valores tão fundamentais, destacados por Machado de Assis, percebe-se que o diploma ocupa um papel secundário, o que não justifica, portanto, a sua convocação como requisito indispensável para o exercício do jornalismo. O patrulhamento ideológico presente no decreto-lei derrubado pelo STF contribuiu muito mais para estimular a ‘idolatria do diploma’, conforme advertiu o economista Cláudio de Moura Castro (Veja, 21/06/2006), do que para ampliar o acesso à expressão jornalística e à qualidade do papel social da imprensa.
Em uma concepção mais ajuizada, o diploma é uma das consequências do processo formal de aprendizado, uma manifestação de reconhecimento institucional. O endeusamento do diploma na seara jornalística teve como efeito nefasto cultivar a vaidade e a fama dos seus detentores, dentro de uma perspectiva elitista, sendo, portanto, um dos fatores que prejudicou a excelência de uma imprensa compromissada com o pleno exercício da liberdade de expressão, no que tange à promoção da diversidade no campo da enunciação jornalística e ao profundo exercício de enriquecimento da interioridade humana. Quem exerce dignamente a missão de jornalista, com ou sem diploma, jornalista é.
Faz-se necessário salientar que a decisão do STF oferece uma grande chance para revitalizar os cursos de Jornalismo e as empresas jornalísticas, pois estes poderão assessorar formados e não-formados a desempenharem jornalisticamente o seu papel, de forma livre e responsável, fornecendo-lhes conhecimentos específicos indispensáveis. Dada a natureza democrática do jornalismo, os processos e as teorias de comunicação, os procedimentos de apuração de uma notícia, as estratégias de entrevista de uma fonte, os mecanismos de redação de um texto jornalístico, as técnicas de edição para meios impressos ou eletrônicos e demais procedimentos não podem ser patrimônio exclusivo de uma instância formal de comunicação, seja ela educacional ou profissional, devendo ser disseminado, tendo em vista a expansão quantitativa e qualitativa da função de jornalista em toda a sociedade. Nesse sentido, ressalto que a medida tomada pelo STF só surtirá o efeito desejado se vier acompanhada, estruturalmente, de um conjunto de reflexões e ações educativas que possam, desde a base, estimular a população para o exercício livre e responsável da prática jornalística.
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Jornalista, doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG, Belo Horizonte, MG