Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A relação da mídia com as massas

Aqui, o propósito inicial será, primeiro, o de fornecer argumentos para se conceder o mesmo grau de importância a todos os tipos de informação, seja ela jornalística, publicitária ou de mero entretenimento e, num segundo momento, o de esclarecer a condição de dependência existente entre a mídia e as massas.

Entre as diversas teorias que investigam a relação dos indivíduos e das massas com a informação, optou-se pelas abordagens realizadas por Melvin L. de Fleur e Sandra Ball-Rokeach em Teorias da Comunicação de Massa (Jorge Zahar Editor). Os autores afirmam que utilizam o termo ‘informação’ de maneira genérica e apontam como enganosas as diferenciações convencionais que sugerem que as notícias são informativas e o divertimento não.

Nessa ótica, sublinham duas limitações dessa forma de pensar. Primeiro, por ignorar as formas pelas quais as pessoas usam o entendimento dos divertimentos para se compreenderem a si mesmas, ao seu mundo, ou aos muitos mundos fora de sua experiência direta, e para orientar suas próprias ações e as interações com outros. Por isso, ‘limitar a idéia de informação a noticiário sugeriria, por exemplo, que o que as pessoas aprendem dos divertimentos não tenha conseqüências importantes para os significados que elas constroem e que atuam sobre sua socialização, ou são nestas baseados’ (De Fleur, 1993, p. 322).

Segundo porque, ao afastar o divertimento do reino da informação, reduz-se o papel da brincadeira e dos jogos na vida pessoal e social. O divertimento comumente e erradamente costuma ser tratado como dimensão sem importância da motivação humana. A análise psicológica e antropológica, no entanto, mostra exatamente o contrário ele é, sob muitos aspectos importantes, ‘sério’. É sério, por exemplo, no desenvolvimento da criança (p. ex., aquisição da linguagem e formação da identidade) e sob a forma de cerimônias, competições e celebrações que contribuem para a solidariedade social (De Fleur, 1993, p. 322).

Por essas razões, os autores creditam o mesmo grau de importância a todos os tipos de informação, inclusive o divertimento, pelo fato de todas elas conterem potencial para influir em como as pessoas pensam, sentem e agem.

Duas concepções

A mídia funciona como uma fonte inesgotável de todos os tipos de informação. Os limites entre ‘jornalismo’, ‘entretenimento’ e ‘publicidade’ estão cada vez mais imperceptíveis. No Brasil, por exemplo, o programa Big Brother, campeão de audiência, é produzido pela Central Globo de Jornalismo. Por isso, conhecer os mecanismos da relação entre a mídia e o público (as massas) torna-se vital para o jornalista, principalmente se ele pretende exercer o seu papel social e contribuir para o processo de emancipação das massas.

Segundo De Fleur e Ball-Rokeach, a relação dos indivíduos e das massas com a mídia é uma relação de dependência mútua, a qual é verificada tanto com o sistema de mídia, como um todo, como em partes desse sistema, como a televisão, o rádio, o jornal, a revista, a Internet, enfim, cada uma das mídias em separado. Nesse contexto, ‘viver em sociedade’ significa atingir metas individuais e coletivas e isso depende de recursos que outras pessoas, grupos ou sistemas controlam e vice-versa. O sistema de mídia é visto como um sistema de divulgação controlando os recursos de divulgação ‘causadores de dependências’ a que outros têm de ter acesso para atingirem suas metas.

Esclarecido esse aspecto, optou-se pelas abordagens de Roso em Psicologia social contemporânea (ed. Vozes, 1998), com foco em duas concepções teóricas em psicologia social, o Comportamentalismo e a Teoria Crítica, pelo fato de serem as mais esclarecedoras e ainda por abarcarem, de forma mais pragmática, a relação ora tratada.

A teoria do Comportamentalismo

De acordo com a teoria do Comportamentalismo, ‘o ser humano é visto como uma máquina que se comporta de maneiras previsíveis e regulares, em resposta às forças externas e aos estímulos que o afetam’ (Roso, 1998, p. 147, apud Schultz e Schultz, 1992). Partindo desse entendimento, ele está constantemente exposto a dois tipos de condicionamentos: por reflexo e por aprendizagem. O primeiro é aquele em que o organismo responde automaticamente a um estímulo, o que pode ser constatado, por exemplo, por meio do apelo da publicidade. Aproveitando-se do conhecimento desse condicionamento, os produtores de anúncios e campanhas publicitárias não perdem tempo e utilizam, de forma eficaz, estímulos externos para despertar necessidades nos consumidores.

Já o condicionamento por aprendizagem é aquele que possibilita, ou não, que um indivíduo pratique determinada ação, dependendo dos resultados obtidos por meio da prática dessas ações no passado. Se o resultado foi positivo, ou seja, de reforço, o indivíduo tenderá a praticar a ação. Se foi negativo (punitivo), tenderá a não praticá-la. No que tange especificamente à relação com a mídia, os condicionamentos são mais bem exemplificados pelo que a autora chama de ‘modelagem’.

Condicionamento por modelagem

A modelagem consiste num processo muito simples: observam-se outras pessoas que, em determinadas circunstâncias, adotam um comportamento que apresenta um resultado desejado. A partir daí, o indivíduo, em circunstâncias semelhantes, passa a adotar o mesmo comportamento da pessoa observada, com a pretensão de obter o mesmo resultado. E a mídia, como instrumento do mercado, do lucro, do poder e do controle social, se aproveita dessa percepção e faz veicular modelos com os quais os indivíduos e as massas se identificam.

Um exemplo pontual: escolhe-se uma estrela famosa e sexy para vender um produto. Uma consumidora, querendo ser igual a ela, compra o produto. Embora num primeiro momento esse exemplo possa parecer ingênuo e sem muita importância, o processo de modelagem adquire proporções imensuráveis quando o mesmo comportamento se estende às massas e, mais grave ainda, quando os modelos veiculados tem outros objetivos, como modelar o comportamento de uma sociedade nos demais campos da ação humana, como no político-ideológico, no cultural, no econômico e no social .

Vê-se assim que quem controla os reforços pode controlar o comportamento, ou que, quem controla os modelos de uma sociedade, pode controlar o comportamento. O homem é tomado como um objeto passível de controle e a comunicação de massa passa a ser um instrumento desse controle (Roso, 1998, p. 148).

Convém lembrar que, embora não utilizando o vocábulo ‘modelagem’, mas se fazendo valer do seu conceito por meio de outras palavras, Hall, em A Identidade Cultural na Pós-Modernidade (ed.DP&A, 2002) e Fridman, em Vertigens Pós-Modernas (ed. Relume Dumará, 2000) já sinalizaram que o ‘eu real é constantemente modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais exteriores e as identidades que esses mundos oferecem’ e que ‘no individualismo pós-moderno, o eu se despedaça nas redes de comunicação e assim, os indivíduos estão constantemente se inventando’.

Teoria Crítica

A Teoria Critica, por sua vez, ao repensar o ser humano a partir dos aspectos ideológicos e culturais da sociedade, aprofunda ainda mais os conceitos da Teoria do Comportamentalismo. Para compreender como a Teoria Crítica discute a comunicação de massa e conseqüentemente a relação das massas com a mídia, deve-se primeiramente esclarecer a diferença entre dois conceitos, até pouco tempo mostrados quase como opostos: civilização e cultura. Roso, recorrendo à Marcuse (1970), apregoa que civilização é o mundo concreto da reprodução material, do trabalho, da necessidade e do sofrimento. Ela representa a exterioridade. Em contrapartida, a cultura representa a interioridade, o mundo das idéias, do prazer e de tudo que se refere ao espírito (Roso, 1998, p. 151).

Na visão de Roso, esse entendimento explicava, de alguma forma, o fato de as pessoas se alienarem às insatisfações e desigualdades do mundo exterior, curvando-se à infelicidade causada pela exploração capitalista. Assim, a cisão entre sujeito/objeto, entre bom/mau, entre dominador/dominado servia para a preservação das assimetrias sociais. Porém, com o passar do tempo esse modelo explicativo foi perdendo força pois não dava conta de controlar o crescente descontentamento dos trabalhadores. Tornou-se urgente a necessidade da criação de outros mecanismos mais sofisticados. A cultura passa então a ser transformada em mercadoria, perdendo suas características para ser um valor de troca, passando a existir na forma de cultura industrial.

Buracos no coração

Roso, citando Freitag (1988), ressalta que essa nova forma de produção de cultura tem a função de ocupar o espaço do lazer que resta às pessoas depois de um dia de trabalho, a fim de recompor suas forças para voltar a trabalhar no dia seguinte. Prossegue sublinhando que a indústria cultural cria a ilusão de que a felicidade não precisa ser adiada para o futuro, por já estar concretizada no presente.

Nesse contexto, a indústria cultural, ao se vincular à mídia, encontra uma forma magnífica para alimentar o sistema.

A primeira coisa que muitas pessoas fazem, ao chegarem em casa, cansadas e insatisfeitas, é ligar a televisão no seu canal predileto, para se desligarem de uma realidade opressora. Para aqueles aos quais a televisão tradicional já não correspondia satisfatoriamente, foram criadas a televisão a cabo e a internet. Através deles, os buracos no coração – que estão cada vez mais profundos – são preenchidos por desejos de consumo, por ideais de liberdade, pelo individualismo e por uma falsa felicidade. A conseqüência disso é a eliminação da dimensão crítica necessária à destruição dessa cultura industrial, sem a qual não haverá emancipação (Roso, 1998, p.152).

Legitimação de privilégios

E, para o funcionamento desse sistema, Roso recorre aos estudos de Guattari, Deleuze e Rolnik (1998) para destacar alguns pontos que iluminam a compreensão dos mecanismos empregados pela comunicação de massa como instrumento para o controle social. Um deles é de que o desejo e a subjetividade não estão centrados nos indivíduos, mas sim, são construídos socialmente. Isso significa que os sentimentos, os sonhos, as paixões e a fantasia são afetos produzidos socialmente pelo capitalismo moderno e estão diretamente relacionados com o modo de os indivíduos perceberem o mundo, de se modelizarem os comportamentos e de se articularem as relações sociais, afirma a autora.

Nessa ótica, prossegue Roso, o desejo está sempre conectado com o exterior e a mídia transforma-se em uma das fontes mais poderosas da produção desses desejos. Além disso, a mídia ainda utiliza outras estratégias como forma de impor ao indivíduo e às massas uma ideologia a serviço do poder. As estratégias mais utilizadas são: a legitimação (e com ela a universalização), a dissimulação, a unificação e a fragmentação. Para melhor identificação, cada uma delas será abordada na forma de exemplos.

Um exemplo da legitimação é quando a mídia veicula uma cadeia de imagens de funcionários públicos como trabalhadores incompetentes, faltosos e bem remunerados, incutindo na audiência a idéia de que apoiar a supressão da estabilidade empregatícia é coisa louvável e digna. A estratégia da legitimação, por sua vez, se faz valer ainda de um outro instrumento estratégico poderoso: a universalização. Um exemplo: acordos firmados entre montadoras de automóveis e governos. A mídia veicula a falsa idéia que esses acordos trarão benefícios a todos, quando a verdade é que apenas pequenos grupos são beneficiados, restando à grande maioria da população apenas o pagamento desses privilégios.

Violência e conflito

Em relação à dissimulação, um bom exemplo é quando se assiste a uma entrevista com um político do Norte e ele usa a expressão ‘latinos’. Segundo a autora, o uso desse vocábulo pode dissimular, negar ou inverter as relações entre coletividade e suas partes, pois não se sabe ao certo de que ‘latinos’ eles falam.

Quanto à estratégia da unificação, um exemplo que ilustra essa questão é a veiculação de campanhas televisivas a favor da privatização de empresas estatais. A mídia tenta mostrar que o governo e a sociedade estão unidos pelos mesmos ideais e vontades e diz que ‘O governo é igualzinho a você…’ Desse modo, ‘o telespectador passa a se identificar com o governo e enxerga as atitudes deste como uma projeção de seus próprios desejos’ (Roso, 1998, p. 155).

No que diz respeito à estratégia da fragmentação, um exemplo incontestável é a representação de movimentos populares de trabalhadores na mídia. Em vez de enfatizar os ideais coletivos dos movimentos, a mídia enfatiza imagens sobre episódios de violência, ou ainda divide a classe em facções, fragmentando esses grupos em partes conflitantes.

Discurso elementar

Já Ramonet (2003), por outro ângulo, aborda a relação das massas com a mídia por meio do discurso. Chamando-o de dominante, o autor ressalta a sedução e a ausência de conteúdo do discurso dirigido às massas e pontua suas três principais características: a rapidez, a simplicidade e a espetacularização ou a dramatização. Nada diferente do que se aprende nos cursos de comunicação com professores capacitados, uma vez que as próprias universidades partem do princípio que os futuros jornalistas trabalharão para atender a demanda da indústria cultural, aceitando-a, portanto, como sistema legítimo. Como ressalta com muita propriedade Arbex Jr., o pensador, o intelectual, o professor universitário, o artista, todos estão submetidos ao termômetro implacável da aceitação de seu trabalho na mídia, cujos critérios não têm nada a ver com sua produção, mas sim, com o mercado, exigente de simplificação, vulgarização e clichê (Arbex Jr., 2001, p.135).

Como se observa, a visão de Arbex Jr vai ao encontro do pensamento de Ramonet na análise do discurso da mídia. Assim, vale a abordagem em separado de cada uma das características apontadas por Ramonet. No que diz respeito à rapidez, o autor pontua que na imprensa os artigos são cada vez mais curtos, as frases breves e os títulos impactantes, enfim, ‘a rapidez para evitar o tédio’.

Em relação à simplicidade, como o próprio nome sugere, Ramonet sinaliza que a mídia usa um discurso elementar, que qualquer pessoa pode entender. Seja no cinema, no rádio, na literatura de massa, o que predomina é a simplicidade da construção. Nesse foco, ele aponta a existência de um paradoxo argumentando que, à medida em que aumenta, em todos os países, o nível educacional, o nível midiático desce, se tornando cada vez mais vulgar, mais medíocre, mais insatisfatório. Quando esses dois níveis se cruzam, prossegue o autor, aparecem em nossas sociedades cada vez mais categorias sociais que se sentem insatisfeitas com este discurso infantilizante e que exigem ser tratadas como adultas, capazes de conhecer a verdade, capazes de distinguir e de tomar posição em função da verdade, seja qual for essa verdade (Ramonet, 2003, p.250).

Colonização do imaginário

Quanto à espetacularização e a dramatização, nada mais familiar. O discurso deve provocar o riso, o choro, a emoção. Por essas três características, Ramonet, em Por uma outra comunicação (ed. Record, 2003), afirma que o discurso dirigido pela mídia às massas é um discurso infantilizante.

Quando refletimos sobre esse discurso, que é um discurso de massa, logo descobrimos que fala, na realidade, tem essas características: é aquela que, em geral, dirige-se às crianças. Às crianças fala-se com simplicidade, brevemente e de maneira emocional. De uma maneira geral, o discurso que recebemos é um discurso infantilizante (Ramonet, apud Denis de Moraes, 2003, p.249).

Como se observa, a relação das massas com a mídia parece de fato se estender a muitas outras dimensões. Arbex Jr em Shownarlismo (ed. Casa Amarela, 2001), antevê o pensamento de Baudrillard ao identificar outros efeitos dessa ‘ligação perigosa’, como na formação da opinião pública. Segundo o autor, Baudrillard, ao se ater em muitos de seus ensaios à questão do desaparecimento das fronteiras entre a realidade e a ficção, atribuirá à mídia não apenas a capacidade de criar fatos, como também a de criar a opinião pública sobre os fatos que ela mesma gerou. Com isso, a capacidade de colonização do imaginário pela mídia transforma a própria opinião em mero simulacro.

Emancipação, o desafio

Observa-se que a relação do sujeito e das massas com a mídia, no contexto da pós-modernidade, é uma relação não só de dependência, mas também promíscua e um tanto quanto perigosa ao se criar um mundo falso, simplificado ou até mesmo hiper-real, como sinalizou Baudrillard. Isso faz com que o mundo real, com todas as suas agruras, possibilidades e complexidade, seja relegado a segundo plano, afrouxando assim os laços sociais e a consciência crítica dos sujeitos, uma vez que são vistos pela mídia como meros consumidores, como destacou Ramonet: ‘ E quanto mais cresce o número de consumidores, mais elevada será a tarifa dos anúncios publicitários… e o valor da empresa midiática na Bolsa’ (Ramonet, 2002, p. 20).

Mas o problema é ainda mais profundo. Segundo Ramonet, a mídia não se dirige aos ‘consumidores’ para transmitir apenas informações objetivas, mas para conquistar o espírito. De forma clandestina, ela tenta domesticar as almas, torná-las dóceis e depois subjugá-las. Nas sociedades contemporâneas, ‘livres e democráticas’, prossegue o autor, essas manipulações psicológicas visam, ao mesmo tempo, o indivíduo e a massa. E por isso elas (as manipulações) são forçosamente sofisticadas e altamente científicas.

Diante dessa relação de dependência e manipulação, quais seriam os paradigmas mais apropriados de pensamento, de universidade, de discurso e de comunicação para sinalizar um novo caminho, um caminho que conduza à emancipação dos indivíduos e conseqüentemente, das massas? Como o jornalista pode contribuir no sentido de atingir esse objetivo? Eis o desafio lançado.

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Estudante de Jornalismo, Rio de Janeiro