Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A sociedade precisa urgente de jornalistas. Mas de quais?

Carlos Augusto, Matheus Pamplona, Thays Nascimento e Ticiane Rodrigues, estudantes de jornalismo da Universidade de Amazônia (Unama, de Belém, PA), apareceram em maio com suas perguntas e inquietações. Mas a entrevista que lhes dei não foi simplesmente mais uma: ficou com uma tal carga emotiva que, ao receber a transcrição da conversa, achei que talvez o leitor possa tirar proveito do que foi dito. Como eu tirei – e, espero, os quatro também. (L.F.P.)

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Lembrando de algumas entrevistas já feitas, percebemos que o senhor sempre se refere à imprensa como ‘a grande imprensa’. O que o senhor tem a nos dizer sobra à imprensa no estado do Pará?

Lúcio Flávio Pinto – Acho que a grande questão que se coloca na imprensa é que ela não está acompanhando o que acontece na sua própria área de jurisdição, de trabalho, que é a Amazônia. A Amazônia é um dos lugares mais interessantes do mundo, hoje. Há um interesse internacional pela Amazônia. Mas para saber o que está acontecendo na Amazônia é preciso fazer um investimento muito grande na qualificação do pessoal e também no seu deslocamento. Quem fica preso em Belém dificilmente sabe o que está acontecendo no Pará, para não falar na Amazônia. Isso significa que você tem que viajar bastante para o interior, conhecer os projetos econômicos, que estão instalados em vários lugares, e também ter conexão externa, porque boa parte desses projetos tem matriz no estrangeiro. É preciso ter fontes lá fora, você precisa estar conectado com os centros de vanguardas da informação e do conhecimento, e isso não acontece.

Os dois jornais diários preferem investir sempre em máquinas, na melhoria formal da publicação, a técnica. Agora mesmo O Liberal e Diário do Pará estão anunciando melhoramentos na parte gráfica, enquanto investem pouquíssimo, quando investem, no pessoal. Acho que a desqualificação que está acontecendo e essa busca de economia de investimento, isso é tão grande que a cobertura dos grandes assuntos do Pará e da Amazônia é feita por agências do Sul e não pelos próprios jornais locais.

É cada vez mais raro você ver o presidente da República ir para um lugar de inauguração no interior, por exemplo, e os jornais locais estarem cobrindo. Eles preferem receber o material das agências, porque cobrir no lugar significa gastar dinheiro. E o que está acontecendo é que a agenda da história na Amazônia está deslocada da agenda da imprensa. As matérias publicadas não tocam nas questões essenciais da região ou do Estado e com isso não informam o cidadão.

A conseqüência mais grave desse despreparo é que está desaparecendo a opinião pública no Pará. Notícias gravíssimas, fatos extremamente relevantes são revelados e não provocam reação alguma. Às vezes já nem é porque a informação não estava disponível e a opinião pública não estava alertada para a relevância daquela informação, mas porque não há atenção e interesse a respeito. O que resulta é que a região vai se tornando cada vez mais como área colonial, ou seja, ela não é dona da sua história.

Por que o Jornal Pessoal não virou uma empresa, já que teve essa oportunidade?E o senhor apresenta algo contra a publicidade?

L.F.P. – Eu comecei o Jornal Pessoal em 1987. Eu já tinha 21 anos de jornalismo. Eu não comecei no jornalismo fazendo o Jornal Pessoal. Eu comecei na grande imprensa local, no Rio, em São Paulo. Quando voltei de São Paulo para Belém, vinha com um projeto. O projeto era fazer com que um jornal, aquele no qual eu trabalhava, O Estado de S. Paulo, revelasse os fatos verdadeiros da Amazônia. Um jornal que tratasse a Amazônia sem o viés do exotismo, de procurar a onça no meio da rua, cobra que engoliu uma criança, que tratasse a Amazônia com a seriedade, com a competência que a Amazônia requer. Então, eu voltei para instalar a primeira sucursal regional de O Estado de S. Paulo que seria responsável pelo tom das matérias do jornal. Nós produziríamos as matérias do tamanho certo, determinadas de cima para baixo por São Paulo, mas São Paulo não mexeria mais nas matérias.

Era um projeto no qual eu apostava. Durante a época da ditadura, O Estado de S. Paulo enfrentou a censura e, de certa forma, ganhou várias vezes e perdeu muitas, mas enfrentou a censura. Criou uma resistência à censura e uma rede de informação que seria melhor até do que a do próprio governo, em certa medida. O Estadão foi nesse período a melhor fonte de informação sobre a Amazônia. Com o fim da censura, iria ser ainda melhor. Por isso eu voltei. E durante vários anos apostei no projeto de uma grande imprensa séria sobre a Amazônia, que não fosse sensacionalista e exótica. Mas cheguei à conclusão, em 1988, que essa meta era impossível.

Antes eu tinha passado por várias experiências alternativas, mesmo estando na grande imprensa: trabalhei no Opinião, no Movimento, no Versus, Repórter, todas as publicações importantes da imprensa alternativa brasileira nesse período. Infelizmente nenhum desses projetos foi duradouro. Alguns poderiam até ter sido se não tivessem o azar de enfrentar a censura, como foi o caso do Opinião, que foi, pelos menos ao meu ver, o jornal alternativo mais importante do Brasil.

Aí eu fiz um jornal alternativo, o Bandeira 3, com a participação de muitos jornalistas, quando eu voltei de são Paulo. Tinha equipe, aceitava publicidade, era um jornal semanal que ia para a rua, um esquema de grande imprensa e estrutura pequena. E durou só sete números. De experiência em experiência, cheguei ao tamanho mínimo. E qual era o tamanho mínimo? O jornal de uma só pessoa. E para esse jornal valer a pena, decidi não publicar anúncios porque, na experiência do Bandeira 3, as agências de publicidade não programavam o jornal porque havia uma rejeição cultural-ideológica a uma imprensa alternativa. A experiência fez com que eu abandonasse a publicidade, não porque eu seja contra a publicidade. A imprensa convencional, evidentemente, não vive sem publicidade.

Quando o jornal só circulava entre assinantes e tinha 1.200 assinantes, para eu atendê-los bem teria que montar uma estrutura e para suportá-la só a venda avulsa não era suficiente. Precisava ter publicidade. O que fiz? Extingui as assinaturas, dispensei as pessoas que trabalhavam comigo e fiquei no tamanho mínimo. É uma opção deliberada pela pobreza. Porque se eu crescer eu vou perder aquilo que caracteriza o Jornal Pessoal, que é sua total independência. Essa filosofia não vale para a grande imprensa. Porque se eu quisesse ganhar dinheiro, eu crescia. Mas quando eu começasse a crescer, eu deixaria de fazer aquilo que é o Jornal Pessoal. Por isso ele tem esse tamanho.

Por que o Jornal Pessoal é a pedra no sapato?

L.F.P. – Porque ele incomoda, é um jornal pequeno, pobre, sem nenhum atrativo da imprensa moderna, cor , foto, mas ele incomoda. Por quê? Porque ele é um jornal extremamente rigoroso. Eu não publico nada daquilo que eu não considere relevante, importante e grave, independentemente de a quem prejudique ou a quem favoreça, e também das minhas relações pessoais. Eu perdi muito amigo por causa do Jornal Pessoal. As minhas relações foram se encurtando cada vez mais. Ele é uma pedra no sapato porque as pessoas sabem que eu vou abordar aqueles assuntos que ninguém quer abordar, às vezes as pessoas têm medo, não querem ser incomodadas, e vou abordar de tal maneira que é difícil responder. Então, já é um estigma que tenho.

Sou uma pessoa que só escreve sobre alquilo que pode provar. Algumas pessoas não entendem isso, me mandam dossiês. Não publico dossiês: eu apuro dossiês. Dossiê para mim é roteiro, não é um ponto final: é um ponto de partida. Às vezes me mandam um dossiê e eu levo meses com ele, porque eu tenho que checar, conversar. Eu não pego o papel pelo papel, eu vou às pessoas. A pedra no sapato é isso: sabe-se que aquele assunto grave vai ser tratado com seriedade e se tiver alguma coisa errada, vai aparecer. Sou da filosofia que quem for podre que se quebre. Vamos fazer o teste de consistência. Se eu estiver errado eu corrijo, publico errata, dou direito de resposta, não tem problema. Tem gente que não admite erros, mas eu admito todos os erros que cometer. Mas também vou publicar todos os erros graves de que souber.

Qual o objetivo de todas essas críticas, já que a maioria leva a mais processos?

L.F.P. – O principal objetivo do Jornal Pessoal é colocar na agenda do cidadão os assuntos mais relevantes para ele decidir: os fatos. Há determinadas coisas sobre as quais não adianta embromar. Você pode discordar do Jornal Pessoal e ter uma opinião totalmente contrária a ele, mas o fundamental são as informações, se elas são verdadeiras. Isso é que é o essencial. O que eu quero colocar na agenda do cidadão é essa informação.

Não pensa em desistir do Jornal Pessoal, já que, como o senhor falou, não vive dele e também devido todos os processos que responde?

L.F.P. – Em determinados momentos, faço determinadas matérias perigosas. Em todos esses momentos, quando estou escrevendo, eu não penso, eu estou na sofreguidão da informação, é uma coisa que todo jornalista tem. Ele não é dono do que escreve, é a compulsão da informação que o domina, é o diabo que toma conta da gente. O diabo é criativo nesse aspecto, porque está sempre na heresia. Quando o jornal sai, eu pego o exemplar e digo para mim mesmo: ‘Pô, eu sou um louco, como eu fiz isso? Isso vai me dar uma bronca desgraçada’. Mas está feito. Tinha que ser feito. Jornalismo é isso. É por isso que a profissão tem um componente de vocação forte. Dificilmente você será um bom jornalista se não tiver vocação.

O que levou o senhor a optar por jornalismo?

L.F.P. – Meu pai fez jornal, foi jornalista em Santarém. Desde que entrei na escola, eu faço jornal, e eu decidi entrar nessa profissão por acaso, quando tinha 16 anos e resolvi entrar na redação de A Província do Pará. Não tinha programado nada. Acabou, no outro dia, saindo o artigo que escrevi sobre o fim da 2ª Guerra Mundial na primeira página do jornal. Foi um típico caso de vocação. Nunca tive problema de vocação: quando pensei em trabalhar, foi de repente, por acidente, e lá estava eu no lugar em que queria estar. E já tem 40 anos.

Então, não é formado em jornalismo?

L.F.P. – Sou formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, mas sempre fui jornalista. Fazia jornalismo amador, tive um jornal chamado Combate. Eu fazia em mimeógrafo, naquela época era o último grito de tecnologia. O que aconteceu foi o seguinte: eu entrei na Província com 16 anos. Nessa época não era obrigatório o curso de comunicação, eu era estudante secundarista. Quando chegou a época da faculdade, eu pensei muito e disse: ‘Não, eu não vou fazer jornalismo, porque eu não concordo com a forma de ensinarem jornalismo’. Então decidi fazer sociologia, porque eu já tinha o meu registro profissional garantido. Foi uma decisão correta. O curso de sociologia fez por mim o que o curso de jornalismo jamais faria. Essa consciência crítica que eu tenho eu devo ao bom curso de sociologia que eu fiz.

O que o senhor acha se tivesse sido ao contrário, o senhor ter agredido Ronaldo Maiorana. Acha que a pena seria a mesma, apenas multa e trabalho comunitário?

L.F.P. – Dificilmente eu sairia dali. Ele sempre está com guarda-costas. Eu teria apanhado muito, talvez tivessem me matado. Eu nunca andei com guarda-costas. A história é irônica: quando eu fui ameaçado de morte, uma das vezes, e a vez em que eu fiquei realmente com medo, o Romulo pai soube através do diretor de redação através do qual eu entrei no jornalismo, Cláudio Augusto de Sá Leal. Ligaram para o Sá Leal, lá na redação de O Liberal, do qual ele era diretor de redação, e disseram: ‘Leal, faz a manchete de amanhã: Lúcio Flávio Pinto assassinado’.

O Romulo, avisado pelo Leal, me ligou na hora: ‘Estou te mandando dois seguranças’. Recusei. Argumentei que segurança não iria me impedir de ser morto: segurança é para matar o assassino. Ele insistiu ‘Mas, não podes ficar aí parado, tens família’. Eu disse: ‘Não vou ficar parado, vou me defender muito melhor sem segurança’. E me defendi. Liguei para o governador, que era o Jader Barbalho, porque eu sabia de onde é que estava vindo. E se resolveu o problema.

Nunca andei armado, nunca tive segurança. A minha rotina é normal porque, primeiro, eu não tenho o que temer, eu tenho 40 anos de profissão, e na minha vida eu não cometi um ato errado, eu nunca me apropriei de dinheiro, eu nunca fui desleal nem com meus inimigos. Recebi informações contra os Maiorana, que se eu usasse ia ser muito difícil, mas eu não uso. Porque se trata de assunto privado e eu não quero saber da vida privada deles.

A minha segurança é o fato de que eu sou decente, eu nunca andei com bandido, nunca roubei dinheiro público, eu sou uma pessoa com uma vida limpa. Polêmica, mas limpa. Às vezes até se assacou algo contra mim, mas eu entro no debate para esclarecer. E aí quem for podre que se quebre. Tenho orgulho de dizer que consegui ganhar essas brigas, até porque a última palavra foi a minha. Não foi a última palavra porque só eu quero falar, foi porque a pessoa desistiu, eu fui desmontando todos os argumentos. Por esse prisma, não tenho medo de ninguém.

Eu sou uma pessoa pacata, não faço mal a ninguém. Mas não pise no meu calo, porque aí eu defendo a minha dignidade em qualquer situação. Se fosse o inverso? Eu até hoje não entrei com nenhuma ação contra eles, porque eu tenho pudor até, eu não quero o dinheiro deles. Eu já fui condenado quatro vezes, mas eu recorro, eu vou até o fim, e nenhuma delas prevaleceu. Então eu não temo nada. Até onde essa coisa vai? Bem, eu queria que esse negócio parasse, porque eu não agüento mais, mas eu não sou o autor da falta, eu só estou me defendendo. Autores são eles. Então são eles que vão ter quer decidir.

O senhor nunca elogia?

L.F.P. – Eu elogio bastante, mas não sem medidas. Eu me lembro uma vez que eu encontrei com o advogado Paulo César de Oliveira no meio da rua, aí ele me disse isso: ‘Lúcio em vez de criticar, você tem que elogiar as pessoas de vez em quando’. Aí eu peguei um exemplar do jornal, a gente estava do lado da banca, e motrei para ele: ‘Olha, eu estou elogiando a tua sobrinha’, que é a Dina Oliveira. Eu elogio, sim. Há pessoas que só ganharam elogio de mim até hoje, mesmo quando eu divirjo delas. Por exemplo, eu nunca critiquei o Haroldo Maranhão. Não é porque eu fosse amigo dele, porque eu gostasse dele: é porque era um grande escritor. Publiquei um livro dele que ninguém queria publicar, porque o livro (Querido Ivan) era maravilhoso. Então é assim: eu sou crítico, procuro ser rigoroso, mas não me causa nenhum problema eu elogiar as pessoas.

Apareceu um sujeito que disse: ‘Faça um prefácio para mim’. Eu perguntei: ‘Posso escrever o que eu achar do livro?’ Ele concordou. Aí eu esculhambei com o livro. E ele publicou o que eu escrevi contra o livro no próprio livro.

O que tem a falar sobre os cursos de comunicação, tanto da federal quanto das universidades particulares?

L.F.P. – Eu dei aula no curso de comunicação da UFPA durante sete anos. Tenho uma experiência de fora e de dentro. Sempre achei que não deve ser privativo de pessoa diplomada por curso de comunicação o exercício de jornalismo, mas tenho um exemplo definitivo: os dois maiores repórteres da história da imprensa mundial, Bob Woodward e Carl Bernstein. Um é jornalista formado, o outro não, o outro era tenente da marinha. Se estivesse no Brasil, o tenente da marinha, o Bob Woodward, que é o melhor dos dois, não seria jornalista. Olha só o repórter que íamos perder. O Raimundo Rodrigues Pereira, que é um dos melhores jornalistas brasileiros, era físico nuclear.

Em todos os países ocidentais, não existe isso de ser privativo do curso de comunicação o exercício do jornalismo. E por que metade dos jornalistas dos Estados Unidos é formada em cursos de jornalismo? Porque os cursos são bons. Metade dos jornalistas tem o diploma de jornalista, a outra metade não. É formada em medicina, física, etc. O componente de vocação é tão grande que se você fizer isso, você corta uma boa parte da formação de quadros no jornalismo.

Então, em primeiro lugar, eu acho que deve ter o curso superior de comunicação social e de jornalismo. Mas são duas coisas distintas: comunicação é uma coisa, jornalismo é outra. Eu sou a favor que tenha curso de comunicação, mas eu acho que tem que ter curso de jornalismo, não de comunicação social com habilitação em jornalismo. Porque é tão ampla a comunicação, que nós estamos cerceando uma ciência, limitando essa ciência em função do jornalismo, que é uma das aptidões, e da publicidade. Falo da comunicação visual, design, lingüística. Isso oferece um campo de interpretação da comunicação fantástico.

Eu dei aula do curso de comunicação em todas as disciplinas, exceto teoria da comunicação, na qual eu não acredito. Dizia para os meus alunos: quer fazer jornalismo? Então esqueça a teoria da comunicação. Você quer explicar o jornalismo? Então estude teoria da comunicação. E tem que acabar com essa obrigatoriedade do diploma, acabar de vez. Os estudantes raciocinam curtos, de uma forma corporativa. Acham que tendo o diploma seu lugar está garantido. Não está garantido não, porque o curso fica ruim com essa reserva.

Se fossem nos Estados Unidos, 90% dos cursos de comunicação do Brasil iriam à falência de imediato, porque lá precisam ser bons para poder sobreviver. O curso de Columbia, em Nova York, é o melhor que tem, e não é para ensinar o sujeito a escrever, é para ensiná-lo a ter uma visão geral, para ele ter uma capacidade de percepção sem a qual nunca será um bom jornalista, aquela percepção ampla e rápida, acelerada.

Se um botânico entra numa floresta, ele vê coisas que eu sou incapaz de ver como leigo. É a mesma coisa o jornalista: ele entra no campo e vê os fatos escondidos. E o jornalista não é o de gabinete, não é o que se contenta com um telefone, com um computador. Jornalista é o que vê gente, que vai para a rua, que vê os fatos. Por isso é que todo jornalista devia começar como repórter policial, porque não tem press-release de cadáver. Acho que o jornalismo está se atrofiando porque ele tem pouco contato com a realidade, ele está reduzindo a realidade à virtualidade. Fico escandalizado com jornalista que tem fonte que ele nem conhece pessoalmente. Ele conhece a fonte por e-mails. Isso é um absurdo. Mas não é porque eu seja um purista, um saudosista. É porque o jornalismo é o instinto da realidade.

O jornalista que anda, que circula, que viaja, que conhece gente, que vê muitos acontecimentos, ele tem um critério de seleção e análise que nenhum outro profissional equivalente tem, nem cientista político, nem sociólogo, nem psicólogo. Nenhum profissional tem esse senso da realidade que tem o jornalista, porque o jornalista conversa com o governador, hoje, e amanhã conversa com o morador da baixada. Hoje ele cobre uma grande solenidade com a elite da terra, no dia seguinte é o massacre de Eldorado dos Carajás. Então, esse jornalista tem um universo de fatos que nenhum outro profissional consegue ter.

Eu posso chegar num país e falar com o presidente da república. Você pode ter muito dinheiro, mas você não consegue. E o que é que permite isso? É o jornalismo. O jornalismo é uma profissão especial, não é porque é melhor, não, é porque é diferente. E se o jornalista sai da rua ele passa a ser um profissional como qualquer outro. É uma pobreza, é um acanhamento de visão você trabalhar apenas com os meios virtuais. Eles são complementos, são secundários. O que você tem que desenvolver são seus instintos: visão, percepção, memória. O patrimônio do jornalista é a malícia. Às vezes os jornalistas têm uma visão primária dessa malícia. A malícia autoriza o jornalista a relativizar as coisas, a ir além das palavras, das aparências. Ele tem essa qualidade da informação que nenhum outro tem. Então, eu acho que o empobrecimento está sendo nesse sentido: os jornalistas estão ficando muito à distância da realidade.

O senhor acha que o seu trabalho é mais reconhecido lá fora? E que isso se deve ao interesse deles na Amazônia?

L.F.P. – Infelizmente. Lá fora, as pessoas têm mais consciência do que é a Amazônia do que aqui dentro. Porque somos uma região colonial, e o colonizado, pensa pela cabeça do colonizador, é um raciocínio mimético. Nós somos eternos macacos porque nós imitamos a consciência que vem de fora. No caso da agressão, uns quatro ou cincos dias depois eu recebi um telefonema do diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Harvard, Biorn Maybury-Lewis, filho de um dos maiores antropólogos do mundo. Nós nos conhecemos indiretamente, através de amigos comuns, e eu conheci o pai dele, em Gainesville, na Flórida. Ele me ligou para dizer o seguinte: ‘Lúcio, eu estou aqui em Harvard, estamos lhe oferecendo para você vir para cá,se você quiser ficar aqui um mês, dois meses, um ano, o tempo que for preciso. Nós estamos lhe dando uma bolsa’. Infelizmente eu não pude aceitar. Também recebi um telefonema do Centro dos Estudos Latino-americano da Universidade da Flórida, que é o terceiro mais importante dos EUA em Amazônia, feito pela Marianne Schmink e o Charles Wood. Eles fizeram isso não só nem principalmente por amizade: é porque eles valorizam a boa informação sobre a Amazônia. O interesse fundamental é sobre a Amazônia, e por pessoas que têm uma informação diferenciada, fruto da observação direta. Esta é valiosa. E o jornalismo tem isso, desde que o jornalismo seja rigoroso.

Muita gente entra no jornalismo já querendo fazer grandes comentários, grandes análises. Não é a hora. Quando eu comecei a fazer o Jornal Pessoal, eu já tinha 21 anos na profissão, não era iniciante. Tinha passado por alguns dos mais importantes jornais e revistas brasileiros. Trabalhei em Veja, Isto É, Estadão, Correio da Manhã. Renunciei a essa grande imprensa, na qual aprendi tanto, sabendo que o que me esperava era ruim. Sabia pelo que ia passar, mas não sabia que seria tão ruim. E sabia que o meu trabalho ia ser mais valorizado lá fora do que aqui dentro, e mais daqui a 15 anos do que hoje. E isso é terrível, para o jornalismo isso é muito ruim, porque você não vive do amanhã, você vive do agora, já.

Eu tive a melhor bolsa e as melhores condições de trabalho da minha vida na Universidade da Flórida em Gainesville. E eu estava lá para escrever um livro contra um dos grandes heróis dos Estados Unidos da época, o Daniel Ludwig. E nunca ninguém me perguntou o que eu estava escrevendo, se eu estava falando mal do Ludwig. Nunca ninguém me pediu para olhar. Tive liberdade total e uma condição de vida confortável, graças à bolsa. Ninguém me aborrecia. Eu não tinha que lidar com gente de baixo nível, a me perseguir e agredir. Nada me impedia de produzir aquilo que eu acho necessário para a minha região, sem perder todo o meu tempo a me defender de gente medíocre, mas poderosa, que, no final, será poeira no tempo.

Queríamos que o senhor deixasse uma mensagem para os futuros jornalistas.

L.F.P. – Toda vez que eu começava uma aula no curso de comunicação, eu dizia para as novas turmas o seguinte: Moisés recebeu um decálogo, que continha dez regras. Eu não quero que vocês tenham dez regras, dez compromissos, dez princípios, não. Escolham um princípio. Por exemplo: jamais escreverei matéria paga. É um princípio. Ou então: jamais escreverei sobre aquilo que não entendi. Jamais passarei em frente uma matéria que eu não sei explicar. Nunca passe em frente o que você não entendeu. Terceiro: nunca traia uma fonte, jamais perca uma fonte.

Podem ser vários princípios, mas pode ser apenas um, e esse princípio, como o próprio nome diz, é um pressuposto, nunca pense duas vezes, faça-o. Perguntaram uma vez para o Millôr se era difícil ser honesto. Ele respondeu: ‘Não, não tem concorrência’. Então, não interessa se vale ou não vale a pena: é o seu princípio e você nunca vai trair esse princípio. E no jornalismo tem um componente de vocação, que é um componente que a gente precisa considerar, fazendo uma pergunta para si mesmo: eu quero jornalismo, para quê? Para aparecer na televisão? Para ser rico? Não. Você vai fazer jornalismo para esclarecer a opinião pública, você quer formar a opinião pública, então, aí vale a pena. Se você tem outros interesses, e pode ter, mas que não incluem esse, desista do jornalismo. Nós estamos precisando de jornalistas preocupados em informar à sociedade, e não em jornalistas em se servir do ofício para enriquecer, para tirar proveito pessoal. Então a mensagem é esta: faça jornalismo para valer, para a opinião pública. Seja apenas jornalista, sem adjetivos.

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Alunos do Curso de Jornalismo da Unama – Universidade de Amazônia (Belém, PA)