Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A televisão na era da abundância

O portal Terra anunciou na quinta-feira (30/11) o lançamento do seu Terra Mundo, disponibilizando inicialmente para o internauta 18 canais de televisão de 4 continentes. Esse número será logo aumentado para 200 canais, de 65 países, através do TV Jump, parceiro do Terra no projeto.


Não é um caso isolado no universo da webtv. Há vários outros portais ativos e em crescimento. O wwitv, por exemplo, oferece atualmente nada menos de 1.827 estações online (número de 4 de dezembro, crescendo à razão de duas por dia). São emissoras transmitidas de qualquer país que passe pela nossa mente – e alguns outros de cuja existência sequer desconfiávamos.


Uma visita a qualquer desses portais deixa bastante claro que a televisão tal como a conhecemos hoje, distribuída pelo ar de forma gratuita, ou através de qualquer mecanismo pago de distribuição, está em sérios apuros. Mil batalhas jurídicas poderão acontecer nos próximos anos. Mas frear a distribuição de sinais de TV pela internet será tão viável quanto impedir que chova. É mais sábio, portanto, examinar como tirar proveito dos benefícios que a chuva possa nos trazer.


O usuário já tem à sua disposição, de forma absolutamente gratuita, milhares de emissoras de TV geradas de onde quer que exista vida inteligente neste planeta – e este número continuará aumentando. São emissoras capazes de chegar a quem quer que tenha um computador e uma conexão de boa qualidade à internet; mas é bom lembrar que existem várias formas de transmissão de TV pela rede, que são bem diferentes entre si.


Uma é a webtv, que qualquer usuário pode acessar de seu computador, seja ele fixo ou móvel. É como um site com imagens em movimento, mas organizado de forma a configurar uma televisão – ainda que a forma de empacotamento da programação possa ser muito distinta das emissoras que o usuário está acostumado a assistir.


As variações possíveis na sua organização são infinitas. A All TV, por exemplo, mantém há quatro anos noticiários, programas de entrevistas e até novelas como se fosse uma televisão aberta. Outros procuram modelos adequados a uma larga gama de possibilidades. São milhares de estações de TV corporativas, ou redes que vão aparecendo aos poucos. Uma delas é a wtn, que entra no ar em 11/12, a partir do Rio, com uma programação variada baseada em pesquisas feitas junto a internautas. Em tese, tudo isso propicia o surgimento de milhares de novas emissoras de televisão.


Outro ambiente


O desenvolvimento mais rápido da webtv (que por algum tempo se julgava um fracasso por conta dos limites da internet) dependia de algumas questões. Uma é a velocidade de recebimento, outra (para o Brasil) a quantidade de usuários com banda larga.


A primeira questão está sendo resolvida com a mesma rapidez com que se aumenta a capacidade de processamento e de armazenamento na web (elas dobram a cada 18 meses). Uma conexão de 2MB (disponível hoje em qualquer provedor mas impensável há 5 anos) já permite o recebimento no computador de vídeo e áudio com qualidade de TV a cabo. O impacto disso sobre a cultura televisiva é extraordinário. Ele se estende à percepção da televisão, conseqüentemente à elevação do nível de exigência. O usuário percebe que o universo de ofertas é muito maior do que ele imaginava, e que mesmo as grandes redes internacionais que estão por toda parte, em todas as operadoras, não representam mais do que uma fração do cardápio que a TV realmente é capaz de oferecer.


Bem diferente da webtv é o IPTV, a bola da vez na distribuição de sinais de televisão. Até agora, os sinais de TV fechada eram distribuídos por cabo físico (caso da NET e outras), por microondas (MMDS, caso da TVA no Rio) ou por satélite (DTH, caso da Sky ou DirecTV, por exemplo). A estes sistemas se integram daqui em diante as transmissões por linha telefônica. Os sinais de IP (de internet protocol, protocolo internet) vêm do cabo telefônico diretamente para o transcoder colocado junto ao televisor. Exatamente como ocorre em qualquer sistema existente.


Todas as operadoras de telefonia estão investindo maciçamente em IPTV. A Telemar comprou a WayTV em Minas Gerais, mas já está oferecendo serviços em São Paulo. A Telefônica comprou a TVA, possivelmente para operar WiMax na faixa de 2,5GHz (além de se associar à DTHi, oferecendo serviços de DTH pelo menos para São Paulo).


As reações iniciais, como os protestos da Associação Brasileira de TV Por Assinatura (ABTA) estão em curso. Elas apontam procedimentos inconstitucionais e denunciam o concentracionismo. Logo depois, o ambiente de distribuição de sinais de televisão será outro. Emissoras, operadoras, teles, internet, todas estarão distribuindo sinais de televisão – e o receptor fixo será apenas mais uma das maneiras que o espectador terá de recebê-los. Não é coisa para algumas décadas. A ordem de grandeza é de meses.


Relação saudável


Tanto o mercado quanto a cabeça dos usuários (que é instruída pelo mercado) ainda estão suficientemente engessados para que a essa altura as principais dúvidas digam respeito à forma como os negócios serão conduzidos com os fornecedores tradicionais. Isto é: se a HBO ou a ESPN terão pacotes novos e exclusivos para a distribuição por IPTV.


Isso é, contudo, o que menos interessa e escamoteia o que os novos mecanismos de distribuição têm de melhor: a possibilidade – mais que isso, a necessidade – de promover a distribuição de produtos diferenciados. É um vício difícil de tirar. Está em toda parte. O mercado ainda está mais interessado em saber como o Discovery vai empacotar seu conteúdo para as plataformas móveis do que entender que tipo de novo conteúdo essas plataformas vão realmente demandar.


Na próxima esquina, as perguntas serão outras. A era da TV massificada está chegando ao fim. É natural que assim seja. O que não é natural é que, no Brasil, 65 milhões de pessoas estejam vendo a mesma novela ao mesmo tempo. E que, no mundo, mais de 2 bilhões de pessoas estejam assistindo às mesmas redes internacionais. A massificação cede lugar ao nicho, o que acontece desde que a internet individualizou o consumo de informação.


A importância crescente do mercado de nicho é expressa com clareza por Chris Anderson em A Cauda Longa (Editora Campus/Elsevier, 2006, 240pp). Anderson, editor-chefe da Wired, bíblia da indústria digital, mostra que a venda de conteúdo de qualquer natureza segue uma curva assintótica, que faz com que os grandes sucessos e todo o restante da produção cultural já representem hoje, cada um, cerca de 50% do mercado. Em outras palavras: a importância do mega-hit declina, ao mesmo tempo em que praticamente tudo o que é produzido em termos de música, filmes e livros encontra alguém interessado em consumir.


Uma das razões para isso, diz Anderson, é que os estoques tornaram-se virtuais. Não ocupam espaço e conseqüentemente não têm custos. Isso caracteriza uma acelerada tendência desmassificante e, sobretudo, restabelece a sanidade na relação entre o produto e o seu consumidor – porque é difícil acreditar que um ancião no interior do Acre ou um adolescente na orla de Ipanema estejam interessados exatamente nas mesmas músicas, nos mesmos filmes, na mesma programação de TV.


Distribuição própria


Essa é uma figura de retórica, que no entanto aponta para a doença da massificação do consumo cultural, coisa que a tecnologia está se encarregando de corrigir. Bastará ao leitor clicar num dos links mencionados acima para acessar imediatamente 2 mil redes de televisão de mais de 200 países. Na maioria delas, o que ele verá é bem diferente de Páginas da Vida. Talvez não muito melhor ou não muito pior: mas diferente. Há 20 anos, o mercado de televisão formulou a seguinte pergunta: por que o usuário vai continuar vendo sete canais de graça se, pagando alguma coisa, vai poder ver 70? A pergunta que se vai fazer agora é: por que pagar caro por 70 canais se o usuário poderá ver 3 mil, pagando nada ou muito pouco?


Há duas palavras-chave para acelerar a instalação do novo cenário que, como se percebe, é irreversível. Uma é largura de banda; a outra, a mobilidade. Em 2004 o Brasil tinha 1,5 milhão de residências com banda larga. Hoje tem 4 milhões. Os números são pequenos, mas o crescimento é incrivelmente alto. A titulo de comparação, é bom lembrar que o país tem cerca de 80 milhões de receptores de TV, e 85 milhões de aparelhos celulares. Com as transmissões digitais móveis, a base de telespectadores poderá dobrar (os espectadores não estarão vendo TV só em casa, mas também em trânsito).


Cerca de 20% desses celulares são neste momento equipados com câmeras. A boa notícia é que em pouco tempo serão 80% – depois, quase a totalidade dos aparelhos. Não é à toa que as estrelas da web são os sites como o YouTube, alimentados pelos próprios usuários. A televisão (como toda a mídia) cada vez é mais compelida a se voltar para o seu nicho, a olhar de frente para o seu público e deixar para trás a arrogância do distanciamento.


Falta pouco, enfim, para que mais de 80 milhões de brasileiros estejam construindo suas próprias imagens – e, mais importante, tendo mecanismos de sobra para distribuí-las, não apenas para os amigos mais próximos.

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Jornalista