1. Introdução
Não resta dúvida de que a crítica de mídia no Brasil teve um progresso significativo nos últimos quinze anos. Às experiências inovadoras, como a do ombudsman da Folha de São Paulo e do Observatório da Imprensa, foram se somando ao longo dos anos, inúmeras outras que despertaram nos profissionais e na sociedade a preocupação em fiscalizar o trabalho daquela instituição que se apresenta como a fiscal de todas as outras.
À famosa proposição segundo a qual a atividade jornalística seria o ‘quarto poder’, o cão de guarda da sociedade em constante vigília dos poderes republicanos, contrapõe-se recorrentemente a pergunta: ‘Mas quem fiscaliza a imprensa?’ A resposta para essa questão passa pelo que chamamos ‘crítica de mídia’. Destaco, porém, a definição mais ampla e mais conceitual de Claude-Jean Bertrand, em Arsenal da Democracia (Edusc, 2002): Sistemas de Responsabilização de Mídia (Media Accountability Systems).
Chamo em causa o conceito de Bertrand por entender fundamental a existência de mecanismos diversos de acompanhamento e fiscalização do trabalho jornalístico. Na mesma proporção, contudo, que se garantam todas as prerrogativas necessárias ao pleno exercício do jornalismo: ampla liberdade de informação e expressão, o sigilo da fonte, o respeito ao princípio da publicidade, entre outras. Estamos aqui diante do princípio da reciprocidade: todas as liberdades e garantias são asseguradas aos jornalistas, mas, em contrapartida, todas as formas de acompanhamento e fiscalização do trabalho, reconhecidas aquelas prerrogativas, são bem-vindas e igualmente necessárias.
O fundamento ético desta afirmação encontra suas bases na Doutrina da Responsabilidade Social, apresentada no Pronunciamento da Comissão Sobre a Liberdade de Imprensa, elaborado por uma comissão de notáveis, no final da década de 40 nos Estados Unidos, presidida por Robert M. Hutchins. Formulado há mais de cinqüenta anos, o relatório da ‘Comissão Hutchins’ definiu o trabalho da imprensa como ‘serviço público’. As pessoas precisam de informações para viver em sociedade, os meios de comunicação são instrumentos privilegiados através dos quais as pessoas se informam, logo, não podem ser conduzidos para o benefício exclusivamente privado de seus proprietários. A informação se constitui um ‘direito-meio’, porta de acesso a outros direitos, conforme assinala Gentilli. Em razão disso, o jornalismo, cuja matéria prima é justamente a informação, não pode prescindir de mecanismos de acompanhamento e fiscalização.
Os Sistemas de Responsabilização de Mídia são, segundo Bertrand, toda e qualquer iniciativa não governamental que visa exatamente realizar o acompanhamento e a fiscalização da atividade de imprensa. Inclui desde a ‘crítica de mídia’, entendida especificamente como a publicação regular de artigos e análises sobre o noticiário produzido por organizações jornalísticas, até a atuação dos conselhos de imprensa, bi ou tripartites, os quais se constituem em fóruns para a resolução de litígios que envolvam profissionais e fontes ou profissionais e público, sem que as partes recorram à via judicial.
No Brasil, os espaços para a crítica de mídia têm ganhado terreno, o que é, sem a menor sobra de dúvida, uma conquista da sociedade brasileira e de todos aqueles que lutam para qualificar e democratizar o acesso e a prática da imprensa no país. Os conselhos, contudo, mesmo o que conta com a representação estatal, como o Conselho de Comunicação Social, órgão consultivo do Congresso Nacional, encontram fortíssimas resistências por parte do empresariado da comunicação. O projeto do Conselho Federal de Jornalistas nem sequer foi discutido no mérito pelos deputados, sendo arquivado na Comissão de Justiça por alegação de ‘inconstitucionalidade’. Interpretação diferente, porém, teve a Ordem dos Advogados do Brasil, tanto que os conselheiros federais da entidade manifestaram apoio àquele projeto por 22 votos a favor e dois contra.
Apresentadas essas considerações gerais sobre os mecanismos de responsabilização de mídia, atenho-me, na seqüência, a analisar os parâmetros através dos quais se faz a crítica de mídia a fim de produzir uma breve sistematização categorial dessa prática.
2. Parâmetros e instâncias de crítica
É possível constatar basicamente dois tipos de críticas que se costuma produzir sobre a atuação da mídia e especificamente da atividade jornalística. Um, de conduta, o mais comum, volta-se para ação do jornalista que não respeitou uma norma ética ou técnica profissional. As razões podem ser as mais diversas: incompetência, negligência, imperícia, má fé, etc. Neste tipo de avaliação, o crítico reafirma o princípio ora descumprido, princípio este que se constitui no parâmetro a partir do qual a prática profissional deveria encontrar as referências, mas por alguma razão, não encontrou. Para dar um exemplo: a publicação de uma denúncia sem que se ouvisse o denunciado. Os princípios da ‘imparcialidade’ – ouvir os dois lados – e o da ‘ampla defesa do acusado’ não teriam sido cumpridos, razão pela qual a conduta do jornal e do jornalista seria passível de crítica.
O segundo tipo de crítica é mais complexo, pois submete o próprio princípio a um julgamento de validade. Trata-se de uma crítica ‘do princípio’, portanto. O que está em jogo aqui é a validade do parâmetro que, até um determinado momento, era afirmado sem maiores questionamentos. Recentemente, a título de ilustração, acompanhamos o debate sobre a validade do sigilo da fonte, em decorrência de ações contra jornalísticas que se recusaram, diante do Juiz, a divulgar quem lhes havia passado a informação. Um princípio até então fortemente consolidado sofre um sério questionamento, cujos desdobramentos podem inclusive redefinir procedimentos de investigação jornalística.
Ambos os tipos de crítica, obviamente, não se excluem. Um princípio pode servir de parâmetro para a crítica num determinado momento e, em outro, ele mesmo vir a ser objeto de consideração sobre sua validade para a boa prática jornalística. Mas, é preciso fazer um alerta: se o princípio se mostrar válido, deve servir de parâmetro em todas as situações nas quais se aplica, e não de acordo com as conveniências de A ou de B. Quando em questão, a validade do princípio é suspensa. Mas, uma vez resolvido o impasse (que pode levar um longo tempo, durante o qual os profissionais tomam as decisões de acordo com suas convicções), pela sua manutenção ou rejeição, ele volta com força ou é eliminado de vez do conjunto de parâmetros que aferem e orientam a prática jornalística.
Tais críticas tomam como referência fundamental a missão e os meios legítimos pelos quais os jornalistas deveriam exercer a profissão, caracterizando o que poderíamos definir como diretrizes essenciais da instituição jornalística. Deve-se entender por ‘instituição’ o conceito, os princípios e a função da atividade a qual caracterizamos de jornalismo. Nesse sentido, conceito, princípios e função delimitam parâmetros através dos quais torna-se possível identificar uma atividade considerada jornalística de outra que não o seja e, em conseqüência, estabelecer, dentre aquelas do primeiro grupo, níveis diferenciados de qualificação para o trabalho que realizam. A instituição define, portanto, as características universalizáveis do que se pode reconhecer como sendo ‘jornalismo’.
O olhar sobre as condutas remete ao modo como as pessoas concretas, reunidas no que chamaríamos de organização, praticam o jornalismo, isto é, cumprem ou não o que é normativamente definido no âmbito da instituição jornalística. A ‘organização’ é o grupo de pessoas e meios efetivamente dedicados a missão de ‘dar vida’ ao conceito, aos princípios e à função que caracterizam a ‘instituição’ jornalística. A instituição representa uma idéia que aponta para um ‘dever ser’; a organização é o ‘ser’ desta instituição num determinado momento, num determinado lugar. As organizações apresentam, portanto, particularidades que não são universalizáveis, pois decorrem de como é definido um modo próprio de operação. Cada organização adquire uma ‘personalidade’ a partir da forma que assimila e aplica as diretrizes institucionais, em decorrência de diferentes aspectos, tais como a maior ou menor qualificação do corpo técnico e da infra-estrutura de trabalho; a responsabilidade moral da equipe; a existência de grupos de pressão atuando junto à organização; etc.
O ponto a se destacar, neste momento, e que é fundamental para definir as responsabilidades próprias da instituição e da organização jornalística, é que deve haver uma estreita vinculação entre os princípios que orientam a boa prática jornalística – institucionalmente reconhecidos – com a competência para cumpri-la, neste caso, a possibilidade de as organizações virem a realizá-las. Dos primeiros, derivam as normas que determinam como deve ser o bom jornalismo; da segunda, as ações que fazem o bom jornalismo. O trabalho jornalístico resulta então da sistematização do conceito de jornalismo como instituição e da possibilidade efetiva de sua prática numa determinada sociedade, por outro, pois é somente isso que daria sentido à atividade. Como criticar a ação de jornalistas e de suas organizações se os nobres princípios institucionais do jornalismo fossem inalcançáveis?
A afirmação acima pode parecer óbvia, mas não o é em se tratando do jornalismo, especialmente quando se o considera como objeto de investigação científica. No âmbito acadêmico, todos somos cientes do confronto entre os paradigmas da mediação e o da construção social da realidade. No paradigma da mediação, o desenho institucional do jornalismo tem como fundamento ético e teórico que os objetivos buscados normativamente são possíveis de serem alcançados na prática. Daí porque o compromisso com a verdade, a objetividade, o interesse público estão presentes na quase totalidade dos códigos deontológicos. No paradigma construcionista, contudo, todos aqueles princípios e técnicas do paradigma da mediação são desqualificados em decorrência da impossibilidade humana de se os atingir. Tais esforços e técnicas são caracterizados como ‘rituais estratégicos’, voltados para simular a lógica da mediação, mas sem nenhum resultado efetivo a não ser proteger os jornalistas contra as críticas do público.
Aqui, revela-se um dos pontos cegos da crítica ao jornalismo produzida em boa parte das pesquisas acadêmicas. À luz do paradigma construcionista, os nobres princípios que fundamentam as críticas de conduta não encontram respaldo teórico. As criticas dessa corrente instauram uma particular ‘crítica do principio’, pois atentam contra seus fundamentos éticos e conceituais, mas não os confrontam com princípios outros que pudessem substituí-los e redefinir os procedimentos e condutas profissionais em outras bases.
Considero as observações acima importantes, pois se pensamos numa rede nacional de observatórios da imprensa em universidades temos de estar plenamente conscientes dos desafios teóricos e práticos que iremos enfrentar. E que não podemos ignorar. O ambiente acadêmico da área de comunicação e do jornalismo comporta tensões significativas entre o seu discurso e a sua prática. Nesta, as universidades tendem a reproduzir as técnicas do mercado, estando no máximo, em condições de igualdade, mas jamais à sua frente. Situação que considero preocupante por tratar-se de um espaço no qual a excelência deveria reinar. Os discursos acadêmicos são, por sua vez, profundamente ‘críticos’ em relação ao sistema de mídia e ao jornalismo. Sem que tal crítica, contudo, se reverta em novas alternativas e propostas geradas no próprio ambiente acadêmico.
Neste ponto, assento a premissa básica a partir da qual lanço algumas idéias sobre a formação de uma rede de observatórios de imprensa em universidades. A crítica de mídia produzida nas universidades deve ser acompanhada de um processo de sistematização conceitual de seus fundamentos, fundamentos estes que devem ser, por sua vez, aplicados em experiências qualificadoras e inovadoras das práticas jornalísticas objeto da crítica. Em função disso, proponho a seguir algumas diretrizes metodológicas mínimas e algumas propostas para a constituição daquela rede.
3. Idéias para a formação de uma Rede Nacional de Observatórios de Imprensa em Universidades
A formação de uma Rede pressupõe duas coisas: uma, por tratar-se de ‘rede’, os vários nós devem ter algum tipo de ligação; da mesma forma, cada nó goza de uma autonomia e independência em relação aos demais.
Na formação da Rede, penso que os seguintes aspectos deveriam ser compartilhados:
** Um espaço comum para a divulgação dos trabalhos produzidos pelos vários observatórios. Poderia ser um site, com links para cada observatório que compõe a rede, no qual fosse divulgado regularmente o trabalho produzido pelas diferentes equipes.
** A definição de uma premissa metodológica comum: a clara definição dos princípios que fundamentam a crítica associada ao esforço de produzir alternativas com vistas a superar ou minimizar o problema apontado. Essa premissa não é de ‘um trabalho’, mas de um projeto com base no qual as equipes passariam a fazer parte da Rede.
** Cada equipe deveria manter um grupo permanente de monitoramento de mídia, com definição prévia do objeto, da metodologia e do período de acompanhamento. Por tratar-se de um acompanhamento produzido em Universidades, por pesquisadores, é preciso garantir o mínimo de rigor científico nas críticas produzidas. Esse pode ser o elemento distintivo em relação ao outros grupos de crítica de mídia já existentes. O objetivo deste trabalho é produzir diagnósticos sobre a produção jornalística analisada.
** Cada equipe deveria manter um grupo de produção jornalística experimental, com definição prévia do objeto, da metodologia e do período de produção, com vistas a desenvolver alternativas ou inovações capazes de minimizar os aspectos problemáticos do diagnóstico obtido. Esta produção deverá ser objeto de auto-crítica por parte da própria equipe, e até mesmo do olhar das outras equipes da rede.
A cada equipe da Rede, individualmente, caberia:
** Montar um site próprio e, de acordo com o acerto entre todos os componentes da Rede, responsabilizar-se por parte da alimentação do site comum;
** Atuar de acordo com a premissa metodológica comum: elaborar um planejamento bienal de trabalho no qual conste a articulação entre os projetos de pesquisa voltados para o monitoramento e para o desenvolvimento da produção jornalística experimental.
** Elaborar um projeto de monitoramento, com a definição do objeto, da metodologia e do período de análise, no qual a crítica regular e periódica seja um instrumento ou um resultado da execução do projeto. Cada equipe tem total liberdade para a escolha do objeto (matérias de jornais impressos sobre o tema saúde; matérias de telejornais sobre o tema infância e adolescência; etc).
** Elaborar um projeto de produção experimental em jornalismo a partir do diagnóstico produzido, a fim de que essa produção, sistemática e metodologicamente conduzida, possa aperfeiçoar ou inovar as técnicas de produção jornalística.
As contribuições deste texto são bastante incipientes, claramente de natureza ensaística, e tem por objetivo provocar uma discussão sobre os parâmetros e os tipos de críticas produzidas pela chamada ‘crítica de mídia’ e por pesquisas acadêmicas. Reconhece a sua importância para a qualificação do trabalho de jornalistas e organizações, embora não descarte outros instrumentos, como os conselhos de imprensa, mas busca caracterizar a ‘crítica’ como um momento do processo contínuo de aperfeiçoamento do trabalho jornalístico. A crítica produz o diagnóstico, aponta o problema, mas como resolver aquilo que nos incomoda? A universidade não pode deixar que a responsabilidade da melhoria fique exclusivamente na mão dos criticados.
E assumir essa responsabilidade exige voltar-se para a sua própria produção científica, a fim de buscar nela as bases para a construção de resultados práticos capazes de corrigir ou minimizar as críticas apontadas. É a produção efetiva de resultados através dos fundamentos ou da aplicação de nossas teorias que irá nos dar a mínima certeza de que estamos ou não compreendendo bem o nosso objeto, de que estamos efetivamente elaborando um conhecimento capaz de, cada vez mais, conduzir a prática do jornalismo a um patamar mais elevado.
Uma das primeiras conclusões a que chegaremos, penso, é de que muitas de nossas críticas, embora pertinentes, são muito difíceis de serem corrigidas. Porque envolvem múltiplos aspectos, como o mercado, as rotinas organizacionais, a competência cognitiva dos repórteres, as relações com as fontes, entre outros fatores que todos podem perfeitamente enumerar, mas que exigem um esforço sistemático e criativo para contornar. Nós, pesquisadores, temos sido pródigos em apontar inúmeros problemas dos produtos jornalísticos disponíveis no mercado, mas temos sido muito pouco propositivos. É imperativo que viremos esse jogo.
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Jornalista, professor da Universidade Federal de Sergipe, um dos líderes do Laboratório de Estudos em Jornalismo – Lejor, doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia