Nos primeiros dias da semana passada, o site do vivíssimo poeta Juan Gelman, há poucos meses distinguido com o Prêmio Príncipe de las Asturias, divulgou uma nota redigida por Marcelo Gelman que reportava o lançamento de uma antologia de Crisis, uma das mais importantes publicações editadas nos anos 1970, na Argentina. O próprio Juan Gelman fez parte da redação da revista enquanto a situação política permitiu.
A coletânea, organizada pela pesquisadora María Sondereguer, graduada em Letras e pós-graduada na Sorbonne, intitula-se Revista Crisis (1973-1976) – Del intelectual comprometido al intelectual revolucionario, e foi editada pela Universidad Nacional de Quilmes. A obra resulta de 20 anos de dedicação e estudos voltados à causa da recuperação da memória jornalística, política e estética de um grupo de intelectuais militantes que marcaram o panorama editorial argentino e da América Latina, aqui e nos exílios.
Para quem não teve a chance de ler Crisis, explico que se tratava de uma revista com periodicidade mensal, editada em Buenos Aires durante três anos – um curto tempo de vida, portanto. Em suas 40 edições, reuniu e divulgou parte significativa do pensamento nacionalista, antiimperialista e socializante (nos marcos do peronismo), sem esquecer, em sua proposta cultural, a vertente existencialista, a revisão da história, o humor ácido, os testemunhos de intelectuais e as vozes dos deserdados anônimos em seus ofícios invisíveis. Também sublinhava, sutilmente, a necessária unidade continental em resposta à preponderância dos Estados Unidos, o que anulava as possibilidades do pleno desenvolvimento do Terceiro Mundo, como éramos assim batizados.
‘Diálogo forte’
O período em questão era mesmo de tempestade política em toda a América Latina, atormentada por regimes discricionários encorpados ou em gestação. A existência de Crisis, apoiada pelo capital de um empresário, Federico Vogelius, coincidiu com a volta do peronismo ao poder na Argentina, após um interregno de 20 anos entre duas ditaduras militares.
Na inesquecível redação de Crisis conviveram, primeiro com a direção editorial do romancista Ernesto Sábato, e pouco depois sob a coordenação jornalística do uruguaio Eduardo Galeano, nomes como Haroldo Conti (desaparecido desde 1976), Rogelio Garcia Lupo, Santiago Kovadloff, Aníbal Ford, Jorge B. Rivera, o ilustrador e caricaturista Hermenegildo Sábat, o diagramador Eduardo Ruccio Sarlanga, Maria Ester Gílio, Osvaldo Bayer, Vicente Zito Lima, e outros tantos colaboradores, inclusive brasileiros.
Com uma média de 22 mil leitores, com picos de até 45 mil, Crisis foi um estuário com origem nos anos 1960 – as lutas de independência nacional, o socialismo à cubana, o ‘maio francês’, a afirmação das mulheres – para onde confluiu um movimento que representou, segundo analisa Sondoreguer, em entrevista à jornalista Lisy Smiles, do site La Capital, de Rosário, a emergência das classes médias com uma nova demanda cultural, a que se soma uma chave mais política nos anos 1970. Explica a pesquisadora:
‘A condição de intelectual nos 60 estava legitimada pelo compromisso político de um modo sartreano na escrita, e nos 70 passa a ser dominada pela opção no campo político, esta dada pela condição de militante político. Um exemplo claro é uma entrevista com Julio Cortázar, no primeiro número [na realidade, foi no segundo], na qual o escritor diz: ‘Minha metralhadora é a literatura’.’
Mas, ao mesmo tempo, de acordo com Sondereguer, essa perspectiva de radicalidade era aberta, abrangia outros campos das idéias, como demonstra a divulgação em Crisis de uma conversa com Jorge Luis Borges, expoente da literatura argentina, nada inclinado às posições da esquerda, citada pela organizadora da antologia:
‘Ao mesmo tempo, a revista traz outras entrevistas, como uma com Jorge Luis Borges, pela qual propõe uma perspectiva ampla do espaço cultural. Há um diálogo forte entre esta questão do intelectual comprometido ao intelectual revolucionário, mas, ao mesmo tempo, a revista publica em suas páginas outras produções culturais.’
Situação opressiva
Uma afirmação editorial da qualidade de Crisis não passaria despercebida e, obrigatoriamente, estenderia sua influência a distintos quadrantes. Foi o que ocorreu no Brasil com o jornal Versus, lançado pelo jornalista gaúcho Marcos Faerman, em São Paulo, no final de 1975, ano em que Crisis ainda era presente. A redação de Versus, onde fui um dos editores, e sobre o qual também organizei uma recente compilação que chamei de Versus – Páginas da Utopia, tinha Crisis como Norte na bússola. A influência de Galeano e equipe em nosso fazer jornalístico e político foi além do programa inicial, que enunciávamos como ‘cultura como forma de ação’, e que mais tarde desbordou na luta aberta pela formação de um novo partido dos trabalhadores, de caráter socialista.
A presença distante de Crisis estendeu-se ao tratamento editorial que dispensávamos à literatura, à história, ao regionalismo e ao internacionalismo, forçando o contraste entre o discurso acadêmico e a escrita popular, de negros, sertanejos, índios, mulheres, acirrando contradições e antecipando o choque com o obscurantismo antidemocrático. As diferenças formais entre uma publicação e outra, entretanto, eram largas. A revista de Buenos Aires seria mais conservadora em seu conteúdo e linguagem gráfica, mais presa a um esquema editorial predeterminado; a de São Paulo era praticamente reinventada a cada edição.
Mas, tal como a redação de Crisis praticava sob as ameaças de censura, Versus também abordava os assuntos mais detestados pela censura por meio de elipses e temas transversais, apelando à inteligência e sensibilidade dos leitores. A entrelinha e o subtexto eram truques de sobrevivência comuns sob a mano dura dos generais, como descreve Sondereguer em resposta a uma pergunta da repórter Lysi Smiles sobre a atitude de Crisis:
‘Há algumas estratégias. A revista incluía edições de fac-símiles de documentos históricos. Em março de 76 publica um documento que remete a um conflito político de 100 anos antes, que a pessoa poderia ler em código. (…) não há uma declaração aberta contra a ditadura. Em um encontro com Galeano, há mais de 15 anos, ele assinalou que a revista editava seus artigos com muita antecipação, porém, deviam ser aprovados pela Secretaria de Imprensa de Videla. Então, não havia muitas possibilidades de que [Crisis] tivesse uma posição pública aberta contra a ditadura, por isso podiam ser lidas coisas mais codificadas.’
Em Versus, a intensa colaboração e sentimento de irmandade com Crisis fortaleceu-se ainda após seu fechamento, com a repressão violenta na Argentina, a saída de Juan Gelman e o exílio de vários colaboradores da redação. Galeano, que manifestou preferir interromper a edição de Crisis antes que fosse empastelada à força, passou a escrever de Barcelona para Versus, atividade que manteve por um bom período. No Brasil, tratávamos de fazer nossa parte, denunciando a situação opressiva na Argentina. Em várias oportunidades intercedemos – com parcos meios, é verdade – para tentar auxiliar companheiros argentinos (e uruguaios), que se refugiavam no Brasil para salvar a pele, em busca de abrigo ou de uma saída para um país mais seguro.
Uma palavra
Como uma espécie de saldo daqueles tempos, colecionei cada número impresso de Crisis, desde sua primeira edição, hoje encadernados em minha biblioteca, volumes que ainda hoje consulto com freqüência. Perdi apenas alguns poucos, assim como toda a coleção dos Cuadernos de Crisis que possuía, publicações modelares que guardavam o pensamento e a trajetória de personagens da historiografia latino-americana, outro legado brilhante daquele grupo iluminado de jornalistas e intelectuais. Páginas que, talvez, não voltem à vida.
Mas repisar os passados caminhos da resistência de Crisis faz evocar outras circunstâncias dos dias de hoje, quando a imprensa mundana está cheia de homens e mulheres que sonham com a imortalidade e imaginam que esta pressupõe uma vitória fugaz contra o esquecimento. Assim, tratam de acumular fortuna, propriedades, carros de luxo, usando as veleidades da mídia para cavar um espaço entre a massa dos mortais e, daí, destacar-se na órbita da fama. Enganam-se os que assim pensam e agem.
Nestes dias de lobos com os caninos à mostra, é preciso mais do que simplesmente roer para quebrar a casca do frio anonimato. ‘Essa imortalidade se alcança pelas obras, pela memória que se deixa nos outros. Essa memória pode ser ínfima, pode ser uma frase qualquer’ (Jorge Luis Borges). Ou mesmo uma palavra. Crisis?
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Jornalista, cineasta e editor do Via Política