MEMÓRIA / ZÉ GRANDÃO
& MURILO FELISBERTO
Jornalismo, paixão e morte, 18/06/07
‘Morreu José Roberto de Alencar. Azar de quem sobrou. O mundo sem ele ficou mais pobre, mais chato e burro. Dias antes havia morrido Murilo Felisberto. Dois grandes jornalistas. Com eles lá se foi mais um pouco do pouco que restava entre nós do jornalismo como paixão. Duvido que surjam no futuro próximo pessoas tão apaixonadas pelo jornalismo como eram José Roberto de Alencar, o ‘Zé Grandão’, e Murilo Felisberto.
Ambos veneravam o jornalismo, os grandes jornais e os grandes jornalistas. Viviam a profissão à moda antiga, ‘romântica’, como definem com desdém os moderninhos, com muito papo de botequim depois do fechamento, e também engajada, não politicamente engajada, simplesmente engajada. O jornalismo como um engajamento em valores humanos e estéticos, não meramente como uma forma de saber, ou um jeito de ganhar dinheiro.
Ambos mineiros, como tantos outros jornalistas brasileiros de destaque, eram gregários, viviam com e para os amigos. E eram ambos perfeccionistas. Também morreram cedo demais, Murilo aos 67 anos e Alencar aos 62. Mas parece que aí param as semelhanças entre esses dois grandes jornalistas. É sobre as diferenças entre os dois que quero escrever.
Murilo era o bem formado, o intelectual, estudou no colégio americano Gamon. Alencar era o prático. Um caminhoneiro que virou repórter, pelas mãos de Luiz Nassif. Murilo era classe média (suponho). Alencar era povo. Murilo provavelmente preferia whisky. Alencar decididamente tomava cachaça. Murilo era muito mais o editor, o condutor de redações, o inovador do departamento de arquivo do JB e depois criador da linguagem dialogada e direta do Jornal da Tarde, que influenciou tantos outros jornais, inclusive o alternativo Amanhã. Tinha o faro do que é notícia, segundo escreveram seus amigos, mas me parece que era basicamente um jornalista de redação.
Alencar não conseguia esquentar cadeiras. Era o repórter de rua por excelência. De rua, e das quebradas pelo Brasil afora. Quando descobria que não queriam reportagem, não queriam que viajasse, demitia-se. Fanático por um furo na primeira página. Deve ter colecionado o maior número de furos em primeira página da história do nosso jornalismo. Lembro o dia em que ele me procurou para receber os elogios pelo seu furo na Gazeta Mercantil, revelando os contratos de risco para exploração de petróleo que a Petrobrás queria assinar com empresas estrangeiras.
Mas os furos do jornalismo, como o próprio jornalismo, têm vida curta. ‘Efêmera glória matinal: ao meio dia jornal já é papel de embrulho…’, diz o próprio Alencar em um de seus livros de causos. Já a linguagem jornalística do Alencar, seu estilo, seu modo de escrever, é uma invenção que fica. Tenho a certeza de que ainda vai ser objeto de estudos acadêmicos.
Se Murilo detestava o vulgar, como dizem os seus obituários no Jornal da Tarde e no Estadão, Alencar conseguia usar o vulgar para desconstruir o formalismo da narrativa padrão do nosso jornalismo. Isso em textos bem estruturados, com a informação precisa, hierarquizada e contextualizada e nunca escondendo sua indignação pelos desastres sociais que encontrava. Era uma escrita ao mesmo tempo galhofeira, anarquista e bem humorada. Como ele conseguia isso?
Nesta nota rápida é possível apenas levantar algumas pistas. Quando a escrita ameaçava se tornar formal demais, ele a quebrava com expressões do vocabulário popular. Exemplo: o uso das palavras ‘pirralhos’ e ‘guria’, nesta frase: ‘… A história começa em 1995, ano da morte do construtor Walmir Costa. Viúva, com quatro pirralhos e a guria, dona Vera arrumou emprego de vendedora…’. Quando ameaçava se tornar solene, ele a quebrava com expressões fortes do dia a dia: ‘Morreu Darcy Ribeiro. Azar de quem sobrou: o mundo sem ele ficou mais pobre, mais chato e burro….’
Conseguia sempre fugir do pomposo, do pernóstico. Também trazia para a narrativa jornalística algo do som dos sertões: ‘Notícia ruim nunca faltou aos sete mil moradores de Puerto Casado, no Chaco Paraguaio… E a sina não ia mudar justo em dia agourento como aquele…’. Criava, assim, efeitos de lugar e época. E gostava de brincar com os significados de palavras ambíguas, observou bem um dos poucos registros de sua morte nos jornais desta semana.
Volto ao meu ponto de partida, do jornalismo como paixão. É uma paixão que pode ser vivida de vários modos, o sofrido, o lúdico, o prazeroso. Fora ou dentro das redações. Mas é sempre uma relação intensa, uma entrega total. E passa sempre pelo manejo criativo e respeitoso da língua. A língua é o nosso registro do mundo e nosso elo com os leitores. Não é algo que se aprende na escola. Alencar não aprendeu na escola. Não vem no diploma de jornalismo. Está no DNA. Nasce com a gente. É parte do talento para o jornalismo.
Mas é claro que os talentos só vão se mostrar se o jornalismo lhes der espaço. E aí está o paradoxo: cada vez que morre um Alencar ou um Murilo, morre um pouco mais do próprio espaço do jornalismo como paixão, e com isso a possibilidade de se revelarem novos apaixonados.
(*) Bernardo Kucinski, jornalista e professor da Universidade de São Paulo, é editor-associado da Carta Maior. É autor, entre outros, de ‘A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro’ (1996) e ‘As Cartas Ácidas da campanha de Lula de 1998’ (2000).’
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