Depois da noite de 13 de dezembro de 1968, a imprensa brasileira passou por uma profunda transformação. O Ato Institucional nº 5, legislação de exceção baixada pelo governo do general Costa e Silva naquela sexta-feira, recrudesceu o regime militar instaurado quatro anos antes e, durante os dez anos em que esteve em vigor, mudou o rumo da história da imprensa brasileira. Um discurso do então deputado federal Márcio Moreira Alves (MDB-RJ) criticando os militares foi o estopim da crise, que atingiu duramente os jornais e o Congresso Nacional, posto em recesso. Desde o início da ditadura, a censura já atuava nos meios de comunicação, mas, com a promulgação do AI-5, foi de fato institucionalizada.
Jornalistas foram presos e os principais meios de comunicação tiveram que conviver com censores dentro das redações. O Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (9/12) pela TV Brasil e pela TV Cultura discutiu os efeitos do AI-5 na imprensa e o legado do ato institucional, quatro décadas depois. Participaram do debate ao vivo o escritor e historiador Ronaldo Costa Couto, no estúdio em Brasília; a historiadora Maria Aparecida de Aquino, em São Paulo, e o sociólogo e cientista político Fernando Lattman-Weltman, no Rio de Janeiro.
Maria Aparecida de Aquino
é historiadora. Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, professora da Universidade de São Paulo e da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Dedica-se ao estudo de temas como censura, imprensa, ditadura militar, história do Brasil e autoritarismo.Ronaldo Costa Couto, escritor, é doutor em história pela Universidade de Paris-Sorbonne (Paris IV). É também economista, jornalista, pesquisador e professor universitário. Acompanhou a transição para a democracia e ocupou diversos cargos no primeiro governo após ditadura militar: foi ministro do Interior e ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República no governo Sarney.
Fernando Lattman-Weltman é doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro (IUPERJ). É professor e pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da Fundação Getúlio Vargas.
Antes do debate ao vivo, na coluna ‘A Mídia na Semana’ o jornalista Alberto Dines comentou a cobertura de duas recentes crises ocorridas na imprensa americana: o pedido de concordata do grupo que edita o Chicago Tribune e a hipoteca do prédio do New York Times. Para Dines, a mídia brasileira errou ao estabelecer uma relação entre os dois fatos. Enquanto o grupo de Chicago está há quase dois anos com problemas financeiros, o jornal nova-iorquino continua sólido. ‘A crise não é sistêmica como a mídia brasileira apresentou hoje. A mídia americana vai fatalmente sofrer os efeitos da crise mundial, mas também a internet. Jornais impressos são mais necessários e têm mais chance de sobreviver à crise do que blogs’ observou.
A autocensura varrida para debaixo do tapete
No editorial sobre o AI-5, Dines avaliou que a imprensa está rememorando o aniversário da promulgação com mais vigor do que há dez anos, mas que os jornais se esquecem de comentar a autocensura que houve nos meios de comunicação. ‘O AI-5 foi um golpe dentro do golpe, os falcões vingando-se das pombas. Mas não esqueçamos que a derrubada do presidente João Goulart processou-se com o apoio quase integral da mídia. Significa que, em 1964, a grande imprensa embarcou numa aventura na qual foi uma das maiores vítimas. Quatro décadas depois, o AI-5 deve servir como advertência: sempre que a imprensa pretende assumir-se como protagonista no lugar de testemunha, paga um preço maior’, disse.
A reportagem exibida antes do debate ao vivo entrevistou jornalistas que falaram sobre as conseqüências do AI-5 para o trabalho da imprensa. O jornalista Carlos Chagas, que era editor de Política de O Globo, contou que estava em Brasília na semana que em o ato foi promulgado. Todos sabiam que os ‘radicais que cercavam o presidente Costa e Silva’ estavam armando um golpe, mas ministros, generais e coronéis garantiam à imprensa que o quadro político seria mantido – não haveria endurecimento do regime – mesmo se a Câmara negasse o pedido para processar o deputado Márcio Moreira Alves. O AI-5 foi um dos piores desastres para as instituições brasileiras e a imprensa sofreu o impacto mais forte. ‘A partir do AI-5 nada era permitido, tudo era proibido’. Chagas ressaltou que todos os ministros, inclusive civis, votaram pelo AI-5 – isto é, pela exceção completa.
O Observatório reexibiu um trecho de entrevista que o ex-deputado Márcio Moreira Alves concedeu ao programa em 1998, quando o AI-5 completou 30 anos. ‘Me pegaram como pretexto para um golpe que estava planejado pelo menos desde junho de 1968, quando se tornou claro que havia uma guerrilha urbana’, disse. O ato institucional foi um bloqueio completo para os meios de comunicação, na opinião do jornalista Wilson Figueiredo, que na época trabalhava no Jornal do Brasil. ‘O AI-5 foi contra a imprensa’, disse. Foi por meio da proibição de notícias, do controle da informação e da censura permanente que se implantou a ditadura. ‘A ditadura se caracterizou pela supressão da liberdade de imprensa, como sempre acontece. Às vezes as pessoas se esquecem de que a imprensa é o termômetro se a democracia está ou não completa’, comentou.
‘A ditadura tem em seu ponto máximo o AI-5, que é o instrumento mais monstruoso de toda a ditadura militar no Brasil. Uma vergonha, um vexame. Eu ainda penso em ter o AI-5 em um quadro pendurado na parede para toda vez que eu passar por lá dar uma lida e, mais uma vez, morrer de vergonha’, afirmou o jornalista Villas-Boas Corrêa. O cartunista Ziraldo lembrou que na noite em que o ato foi decretado estava lançando um livro em um bar na Zona Sul do Rio de Janeiro. No meio do evento, um dos convidados chegou com a notícia e mandou ‘tocar barata voa’ por causa das prisões que já estavam sendo feitas. ‘Foi uma loucura. Todo mundo correu para se esconder. Eu passei a noite com alguns amigos tratando de uma logística para esconder o pessoal mais visado’, explicou.
Ziraldo comentou que a imprensa que surgiu durante a ditadura militar para protestar contra os abusos, a chamada imprensa nanica, mudou a linguagem os jornais, principalmente em relação ao formato do texto. As reportagens passaram a usar um tom mais coloquial. A criatividade da música popular, do teatro e do cartum era muito mais desafiada do que é hoje. ‘O [jornalista] Zuenir Ventura tem uma tese de que a imprensa não reflete o país que ela vive, ela é o país que vive, faz parte do contexto do país’, disse.
Resistência vs. complacência
No debate ao vivo, Dines – que à época era editor-chefe do Jornal do Brasil – relembrou que logo após a promulgação do AI-5 procurou o diretor-executivo do jornal, Manoel Francisco do Nascimento Brito, para argumentar que a imprensa tinha o dever de logo no primeiro momento avisar aos leitores de que o jornal estava submetido à censura formal. ‘Depois disso, cabia ao leitor julgar se o que estávamos dizendo era verdade ou mentira’, explicou. O jornal deveria ser lido com cautela. O diretor concordou, mas impôs a condição de que não deveria haver ‘bagunça’.
A tática adotada pelo jornal desmoralizou os censores. Como eles não sabiam que as páginas aprovadas poderiam ser mudadas na oficina, foi possível passar ao leitor a informação de que o jornal estava controlado. Na primeira página, a previsão do tempo avisava que a temperatura era sufocante. Uma nota informava que ‘ontem foi o Dia dos Cegos’. Mas a resistência não durou muito. ‘Em janeiro de 1969, o Jornal do Brasil e outros grandes jornais aceitaram o esquema da autocensura. Na noite em que os militares deixavam a redação, eu estava preso no Batalhão de Guardas, em São Cristóvão’, lembrou Dines.
A imprensa que em 1964 apoiou o golpe, quatro anos mais tarde foi vítima da ditadura militar. Dines perguntou a Ronaldo Costa Couto se os militares achavam que a imprensa apoiaria o endurecimento do regime. O historiador afirmou que o AI-5 foi um ‘golpe dentro do golpe’ e que o aprofundamento da ditadura foi programado. Costa Couto acredita que pretexto não foi o discurso do deputado Márcio Moreira Alves em si, mas sim o ‘gesto másculo’ da Câmara em não conceder a licença para que o deputado pudesse ser processado. O aprofundamento da ditadura significava, necessariamente, amordaçar a imprensa. ‘Não há democracia sem liberdade de imprensa. Os interessados em ditadura sabem disso muito melhor do que nós’, afirmou.
Imprensa como parte do processo
O jornal O Estado de S.Paulo também encontrou formas de mostrar que estava submetido à censura. Para evitar chamar a atenção dos leitores, o governo proibiu a publicação de páginas com espaço em branco onde seria impresso material vetado. A solução do jornal foi substituir o conteúdo censurado por trechos dos Lusíadas, de Luis de Camões, em atitude considerada corajosa. Dines pediu para Maria Aparecida de Aquino comentar o papel dos jornais na ditadura militar. A historiadora ressaltou que nem todos os jornais resistiram à censura e avaliou que o ano de 1968 foi apenas a reafirmação de 1964. Aquino destacou que a imprensa ajudou a derrubar João Goulart, eleito vice-presidente por vias democráticas, e depois ficou assustada com as conseqüências em 1968. ‘Quando você interrompe o processo democrático, está abrindo portas para que todos os monstros adentrem e venham te assaltar e censurar todas as formas de liberdade’, disse.
Fernando Lattman-Weltman avalia que os acontecimentos de março de 1964 foram ensaiados na década de 1950, em momentos como as campanhas contra a posse de Getúlio Vargas e de Juscelino Kubitschek. Para o cientista político, a imprensa teve um papel decisivo no acirramento desses conflitos. ‘Quando a imprensa perde de vista sua responsabilidade institucional, o fato de que ela é um dos sustentáculos do regime democrático, e passa a intervir partidariamente, ditar os rumos, formar opinião de maneira a favorecer este ou aquele candidato, o resultado é funesto para o jogo democrático’, analisou. A imprensa acaba sendo uma das grandes vítimas desse processo.
Dines pediu para os convidados avaliarem se a imprensa está ‘vacinada’ contra a sedução de deixar de lado seu papel institucional e passar a atuar diretamente no processo político. Ronaldo Costa Couto considera que sim, mas não garantiu que a mídia agirá de forma plena. A imprensa é parte da sociedade e esta ainda precisa desenvolver a consciência política. ‘A ditadura não volta mais’, afirmou. Maria Aparecida de Aquino acredita que a imprensa está preparada e tem vivenciado plenamente seu papel democrático: ‘A imprensa avançou com o país e com a consciência política do brasileiro’.
Fernando Lattman-Weltman tem um olhar mais cético sobre a questão. Para o cientista político, o Brasil ainda não está completamente vacinado contra os erros do passado, mas a falha não pode ser creditada somente à mídia. A sociedade precisa discutir a institucionalização dos meios de comunicação e as condições de exercício da prática jornalística. ‘Há uma evolução do pondo de vista técnico, mas é preciso avançar para não correr os riscos do passado’, disse.
***
AI-5, censura e autocensura
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 490, no ar em 9/12/2008
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
A imprensa está rememorando os 40 anos da promulgação do AI-5 com muito mais intensidade do que o trigésimo aniversário. Ótimo: quanto mais intensa a rememoração mais efeito ela tem sobre a sociedade, sobretudo sobre os jovens.
O que chama a atenção nesta rememoração da mídia é um leve ar de orquestração: todos os jornais começaram a recapitulação simultaneamente, como se estivessem combinados, quase uma semana antes do 13 de dezembro. Curioso também que todos falam na implantação da censura e ninguém lembra que também houve autocensura.
O AI-5 foi um golpe dentro do golpe, os falcões vingando-se das pombas. Mas não esqueçamos que a derrubada do presidente João Goulart processou-se com o apoio quase integral da mídia. Significa que, em 1964, a grande imprensa embarcou numa aventura na qual foi uma das maiores vítimas.
Quatro décadas depois, o AI-5 deve servir como advertência: sempre que a imprensa pretende assumir-se como protagonista no lugar de testemunha, paga um preço maior.
***
A mídia na semana
** Nossa mídia não sabe cobrir a mídia. Jornais, rádios e TVs de hoje apresentaram o pedido de concordata do grupo Chicago Tribune como se estivesse relacionado com o pedido de hipoteca da sede do New York Times. Nada mais errado. Os dois fatos ocorreram no mesmo dia, mas não estão relacionados. O grupo que edita o Chicago Tribune está há quase dois anos enrolado em dívidas. Seu novo presidente, Sam Zell, o magnata de imóveis, não é do ramo de mídia e os seus antecessores tentaram resolver os problemas do grupo como se fosse um negócio de cereais ou de supermercados. A hipoteca do prédio do New York Times é diferente, o jornal continua sólido, a empresa não está ameaçada. A crise não é sistêmica como a mídia brasileira apresentou hoje. A mídia americana vai fatalmente sofrer os efeitos da crise mundial, mas também a internet. Jornais impressos são mais necessários e têm mais chance de sobreviver à crise do que blogs.
******
Jornalista