A imprensa virou notícia. Impulsionada pela discussão em torno do projeto de lei que cria o Conselho Federal de Jornalismo, a mídia tem dado um grande destaque à avaliação de seu próprio papel na sociedade, abrindo espaço para o debate entre as diversas correntes de opinião sobre o assunto.
Sem entrar no mérito da questão, uma vez que o que está em jogo é uma disputa de grandes interesses políticos, empresariais e corporativistas – não necessariamente nesta mesma ordem –, e valendo-nos do rótulo de estudantes universitários (e da imunidade que o papel nos oferece) aproveitamos a ocasião para observar e aprender um pouco mais sobre este fascinante mundo em que escolhemos nos meter: a profissão de jornalista.
Sem dúvida, o debate em questão é de fundamental importância para todos os estudantes de jornalismo do Brasil. Nós, que ainda sequer ingressamos no mundo da profissão, nos vemos diante de uma grande polêmica, onde o que será decidido é o futuro do nosso futuro.
Diante desta situação, a omissão pode caracterizar-se como falta de compromisso e acentuado desinteresse com uma questão que vai além da categoria profissional e envolve a relação dinâmica entre os veículos de comunicação e a sociedade. Assim, defendendo o pleno desenvolvimento da capacidade das novas gerações de jornalistas, adotamos a posição de defesa intransigente de aplicação dos Conselhos.
Não, não se trata aqui de uma apologia à criação do Conselho Federal de Jornalismo. O conselho que defendemos é aquele dado no dia-a-dia dentro das redações, em que os jornalistas experientes atuam como mestres ensinando os seus ‘focas’. Para nós estudantes, o fundamental é que os jornalistas profissionais estejam dispostos e preparados para orientar os jovens em início de carreira, passando os ensinamentos fundamentais, que impliquem a formação adequada de nossas vidas como jornalistas e principalmente como cidadãos.
Comprometimento moral
É um processo simples, mas de grandes implicações: bons jornalistas dão bons conselhos. Bons conselhos formam uma nova geração de bons jornalistas. Estes, por sua vez, fazem o bom jornalismo que resulta em uma sociedade mais democrática e bem informada. Mas este resultado só é atingido quando o conselho torna-se uma prática constante, um hábito dentro das redações.
Se hoje esses conselhos não são praticados, no passado contribuíram para a formação e qualificação ética de grandes nomes do jornalismo brasileiro. Ana Lagôa, 52 anos, 35 de jornalismo, teve como seu grande mestre no início da carreira o jornalista Haroldo Cerqueira Lima. ‘Ele me ensinou a trabalhar, quase tudo que sei da minha profissão, tão maltratada, aprendi com ele’, lembra.
Morto em dezembro de 2003, aos 64 anos, vítima de câncer, Leleco (como Haroldo era conhecido) começou sua profissão aos 18 anos na Folha de S. Paulo. Aos 20, foi enviado a Brasília para cobrir a inauguração da cidade, onde morou durante 40 anos de sua vida. Lá tornou-se editor-chefe da sucursal do jornal, observando os bastidores do poder e a efervescência política que resultou no golpe militar de 1964.
Durante o período militar foi secretário de imprensa do general Emílio Garrastazu Médici, além de trabalhar na Câmara e no Senado. Em 1978 ganhou o primeiro Prêmio Esso de Jornalismo da história da Folha, junto com o jornalista Getúlio Bittencourt. Ambos entrevistaram o general João Baptista Figueiredo, então ‘candidato’ do regime militar à Presidência da República. A entrevista teve grande repercussão na história do jornalismo brasileiro, sendo reproduzida na íntegra por diversas publicações. Foi durante essa entrevista que Figueiredo pronunciou as célebres frases que o marcaram e que antecipou aos brasileiros o temperamento do futuro presidente: ‘brasileiro não sabe votar’, ‘soldado no quartel não sabe nem usar privada’, ‘se houver empresário com dinheiro suficiente, eu vendo a Petrobrás’ e a clássica ‘prefiro cheiro de cavalo a cheiro de povo!’. [N.da R.: Para esta entrevista, o general Figueiredo exigiu que os repórteres não usassem gravador nem fizessem anotações. Depois do encontro, os dois jornalistas trancaram-se numa sala da sucursal brasiliense da Folha, repassaram a memória da conversa e editaram uma entrevista pingue-pongue que ocupou duas páginas do jornal. Figueiredo nunca contestou a matéria.]
Bittencourt, hoje diretor de Redação do DCI, via em seu colega Haroldo, 12 anos mais velho, a calma e a paciência como qualidades mais admiráveis. ‘Ele era muito conhecido na época, muito respeitado e muito paciente com os mais jovens’.
Para Leleco, aconselhar transcendia o simples exercício da ética profissional, significando o comprometimento moral na transmissão do significado da própria vida. Essa preocupação constante ficou registrada em um caderno de manuscritos de seu arquivo pessoal. ‘Aos jovens repito um conselho: há um tempo certo para fazer as coisas recompensadoras. Não permitam que o medo ou a insegurança se transforme em procrastinação’.
Sonhos e ideiais
O tempo, somado às ricas experiências profissionais, moldou em Haroldo Cerqueira Lima um caráter forte e uma inteligência apurada e interpretativa. ‘Já vivi muito tempo e sei que isso não leva a nada. A não ser que você transfira a alguém aquilo que há de mais importante na vida: descobrir a honra e mantê-la até o fim’.
Ana Lagôa assim o definia em uma entrevista concedida a Marinilda Carvalho, publicada em 20/12/1999 neste Observatório [veja remissão abaixo]:
‘Um grande jornalista, um homem íntegro, que suportou um cargo de chefia em Brasília sob as pressões daquela fase [ditadura militar] sem jamais descambar para a direita. Sem nunca abandonar o afeto. Acho que ele levou a máxima do Che ao pé da letra. Encarava as feras, sem perder a ternura. Ninguém lembra dele hoje, ficou doente, se aposentou. Quem perdeu foi a imprensa brasileira e os jovens jornalistas, que ficaram privados da sua experiência magnífica, de um amor enorme pelas pessoas e pelo trabalho.’
Particularmente tivemos o privilégio de aproveitar tudo isso, quando conhecemos Haroldo em setembro de 2003. Meses depois, em novembro, o Centro Acadêmico do qual fazemos parte o homenageou com o título de patrono da entidade. Não há risco algum em afirmar que pudemos aprender muito mais sobre o jornalismo nas conversas que com ele tivemos, do que sentados no banco da universidade ouvindo alguns professores reproduzir em palavras as técnicas dos manuais.
E a nós, Leleco deu uma missão: ‘A história é uma seqüência de mitos e mentiras que se transformam em realidades e verdades. Desmascarar isso é a responsabilidade de quem escreve, inclusive do jornalista’. E também um conselho: ‘Ser jornalista é dominar a arte de engolir sapos’.
Sobre o jornalismo que iremos enfrentar quando na vida profissional, foi esta a análise: ‘O jornalismo atual vive de falsas polêmicas, alimenta-se do debate estéril e faz do sensacionalismo seu ideal. Resultado: produz uma cultura que não resiste às próximas 24 horas, na presunção de que o leitor não terá o mínimo de discernimento para identificar esse desvio irresponsável da nobre missão que a imprensa está reservada: a de informar os fatos que aconteceram, que estão acontecendo e que poderão acontecer. O pior de tudo é que, nessa escalada de falta de compromissos históricos, resvala pela infidelidade à verdade, trilha os caminhos da irresponsabilidade e, não raro, transforma-se em instrumento de interesses escusos e de idéias degradantes do bem estar coletivo’.
De fato, isto pode parecer desanimador, principalmente para quem ainda é movido por sonhos e ideais. Mas nós jovens ainda temos muito que aprender pela frente. E aprender se torna mais fácil quando nos são dados bons conselhos.
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Estudantes de jornalismo na Universidade Tuiuti (Paraná)