Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Arma de defesa contra a realidade política

‘Morreu no último dia 19, aos 90 anos de idade, de causa ignorada, a paulista conhecida como ‘a Velhinha de Taubaté’, que se tornou uma celebridade nacional há alguns anos por ser a última pessoa no Brasil que ainda acreditava no governo.’ O anúncio foi feito pelo cronista Luis Fernando Verissimo no jornal O Estado de S. Paulo, no dia 25 de agosto.

Houve repercussão nacional. Verissimo falou num seminário em Passo Fundo (RS), e jornalistas de todo o Brasil rebateram o assunto em artigos e reportagens. Mas quem era, de verdade, a Velhinha de Taubaté? Ela existiu ou não? Por que esta personagem se tornou um ícone na política brasileira a ponto de alguns testemunharem sua existência real?

Até no Delfim

Na crônica que leva como subtítulo a pergunta ‘Terá sido queima de arquivo?’, Verissimo não dá nome à velhinha – só diz que ela tinha 90 anos quando morreu, de repente, defronte ao aparelho de TV. A personagem da ficção teria vindo a público pela primeira vez no governo Figueiredo, para sintetizar a confiança cega e a crença ingênua nas autoridades.

Em Taubaté – cidade paulista do Vale do Paraíba – a idosa teria morado anos a fio numa casa de madeira em companhia de um gato, servindo biscoitos de polvilho a quem a visitava. A imaginária senhora não poderia ter escolhido lugar melhor para viver: dali, de um sítio hoje famoso – Picapau Amarelo – saíram outras figuras incorporadas ao inconsciente coletivo brasileiro, a partir da pena de Monteiro Lobato (1882-1948).

‘A Velhinha sempre acompanhou a política e acreditou em todos os governos desde o de Getúlio Vargas, inclusive em todos os colaboradores dos governos militares, ‘até’, como costumavam dizer muitos na época, com espanto, ‘no Delfim Netto’!’, contou Verissimo, antes de decretar sua morte ‘por circunstâncias ainda não esclarecidas’. Confiava em Lula desde o início, assim como acreditava na sobrinha Suzette, personagem incorporada à história a partir de fatos recentes: Suzette gerenciava um serviço de acompanhantes a políticos, embora a tia jurasse de pé junto que dava assistência ao terceiro setor.

A velhinha de verdade

Em 1987, a Velhinha de Taubaté se materializou por alguns instantes. A dona de casa Maria José Meloni, de Espírito Santo do Pinhal (SP), que havia se inscrito pelo quadro ‘Porta da Esperança’, do Programa Sílvio Santos, para falar com o presidente José Sarney, conseguiu audiência. Ela tinha esperado oito meses pelo encontro e esteve 25 minutos com o presidente, no dia 8 de agosto daquele ano. Foi o quanto bastou para ser qualificada pelos jornais como ‘a velhinha de Taubaté’

Saia e casaco brancos sobre blusa de bolas azuis, ela encarnou perfeitamente a figura, ao trazer uma bíblia para o presidente e chorar de emoção. Provocada pelos jornalistas, disse que achava o governo Sarney ‘muito bom’ e até falou de política. Como era a época da discussão sobre o mandato presidencial, a velhinha paulista opinou que o presidente só deveria ficar no cargo quatro anos: ‘Coitadinho, ele já sofre tanto, que quatro anos tá bom’.

Ela deixou até mancha de batom em Sarney e, mãe solteira, chegou ao auge quando foi chamada de volta ao gabinete do presidente para ser informada de que um dos seus pedidos havia sido atendido: era o sonho da casa própria. O que aconteceu a Maria José após essa ocasião memorável? Teria obtido realmente um lugar para morar, onde iria pendurar a foto de José Sarney?

Notícia e ficção

Segundo Verissimo, ‘o presidente Sarney telefonava freqüentemente para Taubaté para saber se a Velhinha, pelo menos, ainda acreditava nele’. E ‘Collor foi visitá-la mais de uma vez para pedir que ela não o deixasse só’. Na terça-feira 30/8, o vereador de Taubaté Rodson Lima (PP) ia pedir um minuto de silêncio para a personagem e faria seu enterro simbólico no plenário da Câmara local.

Em Brasília, o senador Arthur Virgílio (PSDB-AM) afirmou que ‘a velhinha é imortal’ e disse que a preferia ‘chocada e chorosa’ a um ‘governo morto’. E o senador Cristovam Buarque, que anunciou sua saída do partido de Lula, sentenciou: ‘Agora, nem ela. Era a última a acreditar’.

Os mecanismos pelos quais uma personagem inventada, criada pela imaginação humana, se torna parte do nosso cotidiano são um dos objetos de estudo das ciências que investigam as complexas inter-relações entre a mídia e a política. Pesquisadores do Núcleo de Estudos de Mídia e Política (Nemp) da Universidade de Brasília abordam esse tema no universo de interpretações da notícia como um produto cultural, cujo espectro de atuação ultrapassa a mera informação: integra o ser humano na sociedade contemporânea.

Pontos de referência

O professor Luiz Gonzaga Motta, coordenador do Nemp, aponta a dualidade das notícias: de um lado, são informativas; de outro, ‘instigam a imaginação dos leitores-receptores, que trazem para o ato de leitura toda a memória cultural de que são portadores’. Ao se transformar em ‘ato ritualístico’ da vida moderna, a busca pela informação, conquanto atividade racional, não deixa de lado os mitos que o ser humano traz em sua memória atávica.

‘As notícias são pré-configuradas por categorias mitológicas e estão presas, como a literatura, por matrizes mitológicas que as conformam’, define Motta, classificando as narrativas jornalísticas de ‘fábulas da vida moderna’. A narrativa dos meios de comunicação só adquiriria sentido de fábula, entretanto, na imaginação da audiência, que aí entra com seu arcabouço inconsciente para lhe conferir materialidade. O mito é, segundo o antropólogo catalão Lluis Duch, ‘parte inalienável e indestrutível’ de nossa biografia íntima, que contém elementos cognitivos, afetivos e de avaliação constante da realidade política circundante.

‘Os imaginários sociais constituem pontos de referência no vasto sistema simbólico que qualquer coletividade produz e através do qual ela se percebe, divide e elabora os seus próprios objetivos’, ensina Baczko. ‘Os mass media fabricam e emitem, para além das informações centradas na atualidade, os imaginários sociais: as representações globais da vida social, dos seus agentes, instâncias e autoridades.’

Em águas uterinas

Outro pesquisador do Nemp, Venício A. de Lima, uniu os conceitos de imaginário social, cultura política e hegemonia (Gramsci) para configurar o que chama de ‘Cenário de Representação da Política’ (CR-P): ‘O CR-P é o espaço específico de representação da política nas`democracias representativas´contemporâneas, constituído e constituidor; lugar e objeto da articulação hegemônica total, construído em processos de longo prazo, na mídia e pela mídia, sobretudo na e pela televisão’. Segundo Lima, os símbolos nutrem a realidade e se nutrem dela, e sua função é a de introduzir valores e modelos para a conduta individual ou coletiva.

Essa atração irresistível entre os dois campos, entre o símbolo e sua representação na mídia, entre o personagem e a notícia, foi classificada pelo professor e jornalista argentino Miguel Wiñazki – em sua obra La noticia deseada. Leyendas e fantasmas de la opinión pública, como ‘magnetopatia’, fenômeno capaz de despertar ‘crenças poderosas e voláteis’. Analisando casos concretos reportados pela mídia argentina e a repercussão que tiveram na opinião pública, Wiñazki defende a idéia de que a tribu masiva (no conceito antropológico) dispara a phantasia popular para construir a notícia desejada.

‘As notícias desejadas são a superestrutura de uma estrutura psicossocial que pretende permanecer sempre crendo no que mais lhe convém.’ E vai adiante: ‘A notícia desejada é uma construção uteromórfica plural, um sistema de representações sem articulação empírica no qual a sociedade, a tribu, se insere como quem submerge em águas uterinas, próprias, como uma proteção contra a realidade mesma.’

Personagens de fábula

Desde a ascensão do operário metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da República – ou antes, desde Fernando Collor de Mello; ou ainda mais cedo, com Tancredo Neves –, a sociedade brasileira está engajada na gestação desse útero de esperanças, cujo líquido amniótico são os sonhos de um Brasil melhor. No processo, têm relevante papel os meios de comunicação, participantes na construção e na destruição dos nossos mais caros mitos políticos.

Quando Tancredo foi eleito, o país vinha da desilusão da campanha pelas diretas e se inflou com a vontade de ter, afinal, um verdadeiro desenvolvimento e não o progresso fake do milagre econômico da época militar. O inexplicado, o terror e o ritual em torno da doença e da morte do primeiro presidente civil dariam as primeiras tintas ao imaginário social que, mais tarde, veria em Collor o presidente corajoso e másculo para enfrentar o dragão da inflação, com sua energia de caçador de marajás (mais figuras das mil-e-uma noites). O salvador da pátria erigido pela mídia seria derrotado por novos e inesperados personagens mascarados – os caras-pintadas.

‘Nordestino, pobre e retirante’, Luiz Inácio da Silva, nascido em Garanhuns (PE) de família de lavradores e levado a São Paulo pela mãe, encarnou a passagem da ‘cultura da pobreza’ para o que seria a ‘cultura da transformação’. Ele seria o ‘filho do Brasil’, no livro de Denise Paraná, sintetizando o que Antonio Candido apontou como a ‘essência do socialismo’ e que ele veio representar: ‘O esforço para chegar a uma sociedade na qual a distribuição dos bens seja pelo menos tão importante quanto a sua produção’.

‘Irreal e divagante’

O jornalista do New York Times Barry Bearak, que passou no Brasil três dias para escrever um perfil do presidente, comparou Lula a um ‘pequeno urso’, e não teve dúvidas em afirmar que ele é ‘uma fábula ambulante’. Bearak percorreu os lugares onde Lula viveu – do ABC paulista ao interior de Pernambuco – para contar a história que seria publicada pelo jornal em junho de 2004 e, para entrar no clima, teria experimentado até buchada de bode. Para ele, o dirigente brasileiro segue ‘a clássica história da democracia, o garoto pobre que cresceu para ser presidente’.

Além disso, o jornalista norte-americano dizia, em meados do ano passado, que o presidente, ‘como estadista’, mantinha na política externa uma postura arrojada, desafiando ‘regimes comerciais internacionais que favorecem as nações ricas em detrimento das pobres’. Nessa reportagem, Bearak não tinha dúvidas em afirmar que a vida de Lula ‘inevitavelmente servirá como uma fábula maravilhosa’, mas evitava previsões: ‘Ainda é cedo para saber qual será a moral da história’.

O que aconteceu nos últimos meses no Brasil é material suficiente para analisar o imaginário social e compreender a súbita aparição da Velhinha de Taubaté e sua morte anunciada na mídia. Ou, como assinala Wiñazki, para promover um retorno das ‘massas infantilizadas’ – ‘olhos cerrados, polegar na boca, sentidos adormecidos pela situação não objetal, pré-natal’ – ao útero. O paradoxo é que ‘aí se encerram os vivos com os mortos’ e o resultado é ‘fantasmagórico, imaterial, irreal e divagante’.

Saia branca e blusa de bolas

Ao dar existência concreta à velhinha de Taubaté, milhares de pessoas acionaram suas matrizes mitológicas para enquadrá-la na condição de personagem real. Os mass media fizeram sua parte. Configuraram, a longo prazo, o cenário de representação em que a personagem atuaria, composto pelos elementos do imaginário social, da cultura política e da hegemonia. Detonada pelo gatilho da fantasia popular, a figura imaginária que fazia biscoitos de polvilho se transformou na notícia desejada – defesa e proteção contra a realidade que, de tão fantasmagórica, até parece ficção.

Valor e modelo de conduta individual e coletiva, a velhinha é o que nós gostaríamos de ser, com todo o passado que carregamos: crentes na política e nos políticos, na figura do presidente como legítimo representante de 53 milhões de votantes – a fábula viva pela qual muitos se afeiçoaram e por quem foram às ruas, no dia da posse, com a bíblia na mão e lágrimas nos olhos.

A paulista Maria José Meloni pode ainda estar viva. Sua antecessora, a da crônica de Verissimo, vem nos mostrar a força dos mitos e a necessidade que temos de nos amparar neles para entender a contemporaneidade. Assim como o homem primitivo tecia explicações para os fenômenos da natureza que não podia desvendar, também o ser humano moderno utiliza formas de mediação entre si e a natureza para tentar se inserir no mundo. Entre essas formas pode estar uma idosa de saia branca e blusa de bolas azuis.

******

Jornalista, Brasília