O debate em torno da ética jornalística tem por hábito situar o jornalista numa espécie de Olimpo, onde ele permanece como integrante de uma casta privilegiada. Não somente o próprio jornalista se autoproclama um intocável, como lança para a opinião pública tal imagem. Na prática, não deveria haver esse muro demarcando os limites entre o jornalista e o interesse público. A ética jornalística é a ética do cidadão. E o jornalista tem que ter em mente que a informação é um direito fundamental da sociedade. O jornalista tem ainda que se ater a um fato crucial: a autocensura, como forma de ocultar informações que caberia divulgar junto à opinião pública.
1. Introdução
Os pecados atribuídos aos jornalistas são inumeráveis. Por lidar com uma matéria prima cambiante, como a informação, que a rigor deveria ser um direito de toda a sociedade, o jornalista se vê na maioria das vezes emparedado entre os interesses de empresa e os interesses de imprensa. A diferença entre um e outro é colossal.
Os interesses de imprensa estão diretamente relacionados com a qualidade da informação e sua verossimilhança. Um fato é tão mais verdadeiro se aprofunda um dado crítico da realidade, tanto mais confiável se expõe as veias abertas de uma dada sociedade.
Mas essa busca pela verdade objetiva esbarra, na maioria das vezes, nos interesses de empresa. O hiato é profundo e trágico. E advém desse conflito entre um e outro tipo de interesse uma boa parte dos dilemas éticos vivenciados pelos jornalistas em suas lides cotidianas. Atender ao patrão ou o que a realidade revela como fruto da apuração jornalística? Este parece ser o questionamento mais constante na prática dos jornalistas.
Mas é aí que entra o maior desafio e a necessidade de desmistificar o problema da ética jornalística. O jornalista, antes de ser jornalista, é um cidadão. A sua ética não deve prevalecer sobre a ética do cidadão. Não existem duas éticas, assim como não existem dois pesos e duas medidas.
2. O jornalista e o cidadão
Essa aproximação entre o papel do cidadão e o papel do jornalista em sociedade é fundamental para que se compreenda e desmistifique a questão da ética no jornalismo. Por que? Simplesmente pelo fato de que o jornalista não deveria aceitar algumas situações que não aceitaria enquanto cidadão. Ou seja, o jornalista não tem uma ética própria. Trata-se de um mito. Aquilo que o afeta, como jornalista, deve afetá-lo, antes de mais nada, como cidadão. O sentir-se cidadão deveria funcionar como termômetro para suas ações e seus julgamentos.
O mito que atribui ao olhar do jornalista um dispositivo de objetividade é uma falácia. Posturas de jornalistas experientes como Cláudio Abramo esclarecem melhor esse falso princípio:
O jornalista não pode ser despido de opinião pública. A posição que considera o jornalista um ser separado da humanidade é uma bobagem. A própria objetividade é mal-administrada, porque se mistura com a necessidade de não se envolver. (Abramo, 2002, p.109)
Portanto, a ética no jornalismo começa onde tem início a ética do cidadão. Ou seja, a resolução da questão ética depende também do que o jornalista considera como seu dever de cidadão. O estabelecimento dessa semelhança desmistifica algumas posições tão comuns aos jornalistas. Em primeiro lugar, a noção de impunidade. O cidadão não deixará de ir para a cadeia, caso venha a cometer um crime. A mesma regra se aplica ao jornalista.
Então, para manter uma postura ética, a despeito das pressões que venha a sofrer da empresa onde trabalha (e elas variam de uma para outra), o jornalista deve manter a consciência de que o seu limite é o limite do cidadão. Se um governante aumenta injustamente a carga de tributos, o jornalista deve apurar e noticiar a informação com o mesmo nível de abnegação e indignação que um cidadão teria, perguntando-se: em que essa mudança me afetará enquanto cidadão, consumidor e contribuinte?
O jornalista não é um Clark Kent, ele não está imbuído de uma missão especial, de uma cruzada:
O papel do jornalista é o de qualquer cidadão patriota, isto é, defender o seu povo, defender certas posições, contar as coisas como elas ocorrem com o mínimo de preconceito pessoal ou ideológico, sem ter preconceito de não ter preconceitos. O jornalista deve ser aquele que conta a terceiros, de maneira inteligível, o que acabou de ver e ouvir. (Abramo, 2002, p.110)
3. O direito à informação
Essa transparência defendida por Cláudio Abramo remete a uma questão mais ampla. O jornalista, em seu exercício ético cotidiano, não pode perder de vista que a informação é um direito fundamental da sociedade, embora não possamos esquecer que a imprensa transformou-se numa empresa que gera lucros e fortunas. Mas é preciso saber que o mercado é uma conseqüência e não a própria razão de ser da imprensa:
Jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão dedicados ao jornalismo, assim como os sites informativos na internet, nada disso deve existir com a simples finalidade de gerar empregos, fortunas e erguer impérios de mídia; devem existir porque os cidadãos têm o direito à informação. (Bucci, 2000, p.33)
As deformações da imprensa brasileira, e da mídia em geral, são menos um atributo do jornalista e mais das empresas jornalísticas.
Os piores problemas da imprensa brasileira são problemas construídos no interior das empresas de comunicação por forças e interesses que ultrapassam os domínios de uma redação e nada têm a ver com interesses legítimos de seus telespectadores, leitores, ouvintes. (Bucci, 2000, p.32)
E, deve-se acrescentar, nada teriam a ver com os interesses legítimos dos jornalistas. Esse julgamento subordina, uma vez mais, a ética jornalística aos interesses da sociedade e do cidadão:
Discutir ética na imprensa só faz sentido se significar pôr em questão os padrões de convivência entre as pessoas, individualmente, e de toda a sociedade no que se refere ao trato com a informação de interesse público e com a notícia. (Bucci, 2000, p.32)
Vale dizer, só faz sentido se a esse objetivo estiverem subordinados não somente os jornalistas, mas também os seus patrões e as corporações em que funcionam os veículos de comunicação.
4. Os riscos da autocensura
Há que se abordar ainda um tema muito pertinente no tocante à atuação jornalística que o afastaria dos caminhos da ética, vale dizer, da defesa da informação enquanto direito inalienável do cidadão. Trata-se da questão da autocensura do jornalista, tanto ou mais grave do que a censura imposta pelo patrão ou por deontologias ou códigos. Isso ocorre quando o jornalista, de posse de uma informação de interesse público, acabada encarando essa informação como de caráter privado.
Tome-se como exemplo o episódio envolvendo o jornalista Carlos Monforte, da Rede Globo, e o ex-ministro Rubens Ricúpero. Enquanto se preparava para gravar uma entrevista, Rubens Ricupero afirmou que trabalhava para favorecer o então candidato à presidente, Fernando Henrique.
Indiferentes ao fato de que os microfones estavam abertos, jornalista e ministro conversavam. A conversa foi captada por antenas parabólicas. O incidente, como se sabe, levou à demissão do ex-ministro.
Se o episódio lançou olhares de desconfiança para a máquina do Estado, acabou por revelar, contudo, um fato mais grave:
Mas existe uma outra leitura do incidente das antenas parabólicas. A de que se tratou, acima de tudo, de um escândalo jornalístico. (…) O jornalista Carlos Monforte atribuiu caráter privado a informações de interesse público, sem usá-las em sua entrevista e fez da matéria que se seguiu um mero simulacro. (Kucinski, 1998, p. 50)
Tivesse o jornalista imbuído de uma postura cidadã, teria interpelado o Rubens Ricupero com mais veemência. Mas o que houve foi o contrário, e a conversa talvez jamais tivesse se tornado de conhecimento do público, não fosse por uma falha técnica.
O que de mais grave advém desse episódio é que Carlos Monforte não foi questionado pelos colegas jornalistas, sinal de que os mecanismo de autocontrole estão bem amalgamados na categoria, como se fosse parte do ethos dos jornalistas brasileiros. Grave? Gravíssimo! Mas não elide o fato de que trata-se aí de um desvio de conduta, que deve ser combatido pelos jornalistas em nome da ética.
5. Conclusão
Se a ética no jornalismo está sujeita a pontos de vista diferentes, ao sabor das circunstâncias e dos seus personagens, que ao menos não se perca de vista esses dois parâmetros mais basilares: o fato de que, numa moderna democracia, são os direitos do cidadão que pairam acima de tudo o mais; e que um desses direitos é, sem dúvida, a informação.
Que também não se perca de vista que o jornalista é, antes de mais nada, um cidadão. Essa premissa pode assegurar ao jornalista o fio condutor da ética de que ele tanto necessita para sobreviver ao contraditório que a realidade lhe oferece, a todo o momento.
Se não é a salvação, pode funcionar como uma espécie de bússola; se não o protege dos equívocos a que ele está sujeito, como todo mortal, pode injetar-lhe consciência crítica, indispensável à atividade jornalística.
A censura imposta pelas empresas de comunicação e pelo poder, ou, o que é mais grave, auto-imposta, como ilustrada no episódio das antenas parabólicas que ocasionou a demissão do ex-ministro Rubens Ricupero, é na verdade um desvio de conduta que deveria privilegiar, antes de mais nada, o interesse público – vale dizer – o conjunto da sociedade.
Estes três pontos – o sentir-se cidadão antes de ser jornalista, a consciência de que a informação é um direito da sociedade, e a necessidade de combater os pecados da auto-censura – funcionam como paradigmas a serem observados pelos jornalistas, como caminho para o estabelecimento de princípios éticos no jornalismo.
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Estudante de Jornalismo da Universidade Tiradentes (SE)