Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As novas faces do Big Brother

1. Numa passagem do filme O Ultimato Bourne, blockbuster em cartaz, um jornalista pergunta no celular à sua fonte de informações se já tinha ouvido alguma menção a determinada palavra. Ao ser pronunciada, a palavra, que era o codinome de uma operação secreta da CIA, aparece na rede de controle da agência de espionagem. Ato contínuo se identifica o número do telefone, assim como o nome do proprietário, cuja vida é posta em risco desde então. Trata-se de ficção, certo, mas a façanha é tecnicamente possível. Como bem se sabe, o Echelon, o superprograma norte-americano de controle mundial dos conteúdos das telecomunicações, funciona nessa linha de proezas, em que se abolem os limites entre ficção e experiência concreta.

2. Desde junho último, quando a Apple passou a vender o seu iPhone (híbrido de celular com Ipod), hackers de todo o mundo iniciaram uma competição para ver quem quebrava primeiro o seu código de proteção. A façanha acaba de ser finalmente levada a cabo por um grupo de adolescentes norte-americanos.

3. Um jornalista de O Globo fotografa a troca de e-mails entre ministros do Supremo Tribunal Federal durante o julgamento da denúncia do Ministério Público contra os envolvidos no chamado ‘mensalão’. Dividem-se as opiniões: algumas são de elogio ao feito jornalístico, outras condenam a ‘invasão de privacidade’.

Banalização e descartabilidade

Guardadas as devidas proporções, as três situações pertencem ao mesmo fenômeno, isto é, ao recrudescimento das possibilidades técnicas de invasão da privacidade e à configuração disso que Cezar Brito, o presidente do Conselho Federal da OAB, definiu acertadamente como ‘estado de bisbilhotagem’. De fato, se por um lado, a disseminação das redes digitais, por sua topologia descentralizadora, põe em crise os mecanismos tradicionais de controle dos discursos no âmbito da mídia, por outro a disseminação das tecnologias entre os mais diferentes usuários acaba fazendo o cotidiano sócio-histórico equivaler-se ao ciberespaço – uma matriz aberta, sem fronteiras nem hierarquias.

A verdade é que ainda não se pode ter posições fechadas sobre essa nova realidade, que funda um outro tipo de sociedade. Já na primeira metade do século passado, Teilhard de Chardin (1881-1955), pensador cristão evolucionista, associava às novas tecnologias da comunicação a sua idéia do caminho progressivo da espécie na direção de um organismo humano planetário, o ‘ultra-humano’. Ele se referia concretamente à ‘extraordinária rede de comunicação radiofônica e televisiva’ como um verdadeiro sistema nervoso, um ‘estado superior de consciência, difuso nas franjas ultratecnicizadas, ultra-socializadas, ultracerebralizadas da massa humana’.

Chardin não viveu para ver a hipertrofia tecnológica dessa experiência audiovisual do mundo, que hoje dá margem ao que Nelson Brissac chama de sobreexposição: ‘Um mundo onde tudo é produzido para ser visto, onde tudo se mostra ao olhar, coloca necessariamente o ver como um problema. Aqui não existem mais véus nem mistérios. Vivemos no universo da sobreexposição e da obscenidade, saturado de clichês, onde a banalização e a descartabilidade das coisas e imagens foi levada ao extremo.’

Margens mínimas

As três situações acima apontadas são, em última análise, casos dessa sobreexposição, que coloca a todos, indistintamente, sob o império do olho armado pela tecnologia. Este é o espírito do tempo em que vivemos e, em princípio, não haveria como julgá-lo à luz de categorias morais de séculos passados. No entanto, é preciso considerar que se as múltiplas tecnologias da informação e da comunicação podem ser interpretadas como um alargamento tecnológico do espaço público – portanto, como uma suposta ampliação do funcionamento democrático –, não se segue necessariamente que tais tecnologias possam ser tidas como responsáveis pela construção ou pela consolidação de velhas instituições democráticas no real-histórico.

As situações apontadas valem como sintomas de uma questão a ser elaborada por autoridades, analistas e imprensa. Sob o signo desse olhar virtualmente ilimitado – uma verdadeira atualização da idéia do Big Brother orwelliano –, são mínimas as margens de gozo da privacidade. É forçoso produzir uma cultura compatível com essa restrição. E isto implica discutir a advertência do presidente do Conselho Federal da OAB: ‘Sem privacidade, não há liberdade.’

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro