Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Como nasce um especialista

Quando a gente acha que não vai mais se surpreender com a ‘escola Ali Kamel de jornalismo hipotético’, as Organizações Globo conseguem se superar. Na quarta-feira (20/8), algumas horas após o terrível acidente aéreo em Madri (restos do avião ainda fumegavam na pista, na imagem ao vivo repetida da CNN) a Globo News colocou no ar um ‘especialista em aviação’ para falar sobre as possíveis causas do desastre.

Às 13h51, a notícia já estava no G1 – com um impagável subtítulo:

‘Especialista em aviação levanta possíveis causas para o acidente em Madri:

Se a falha foi na decolagem, pode ser causada por objeto na turbina. Se foi no pouso, é possível que seja falha do piloto, no pneu ou na pista’ [ver aqui].

Ou seja: quatro horas depois do momento do acidente (9h45, no horário de Brasília), o portal da Globo ainda era incapaz de confirmar se o avião havia se acidentado numa decolagem ou num pouso, mas – apesar desse ‘pequeno’ detalhe – o ‘especialista’ Gustavo Cunha Mello não se furtava a conjeturar hipóteses sobre as causas da tragédia.

Tarefa hercúlea

Instigante tarefa para uma noite de insônia: tentar descobrir quem é esse fantástico especialista, capaz de especular sobre as causas de acidentes aéreos apenas vendo pela TV a fumaça dos destroços. Uma busca no oráculo Google nos indica que o sujeito é, de fato, uma fera no assunto. Em matéria no jornal O Globo de 1/8/2007, discorrendo sobre as hipóteses do acidente com o Airbus da TAM em Congonhas, nosso expert foi assim descrito:

‘Para Gustavo Cunha Mello, especialista que analisou mais de 175 mil acidentes aéreos e foi ouvido por O Globo em reportagem publicada nesta quinta, a possibilidade de falha mecânica não pode ser descartada’ [ver aqui].

Vejam só! Eu nunca poderia imaginar que já tenham ocorrido no mundo 175 mil acidentes aéreos, mesmo começando a contá-los pela queda de Ícaro! Mas surpreendente mesmo é haver um ser humano que se dedicou a analisar cada um deles. Supondo que tenha gasto em média 30 minutos para um breve estudo de cada caso, dedicando 8 horas por dia a essa extenuante tarefa, o infatigável Gustavo entregou nada menos que 24 anos de sua vida adulta (incluindo sábados, domingos e feriados) ao estudo dessas fatalidades. Não me admira que seja capaz de desvendar suas causas apenas aspirando o aroma do querosene queimado.

Querem mais? Apesar dessa tarefa hercúlea, sobrou-lhe tempo para cursar faculdades, fazer pós-graduação, dedicar-se a outras especialidades e até ao ensino dos nossos jovens.

Sobre o ‘caos aéreo’

Pela minha pesquisa, Gustavo Mello inicia sua colaboração na lavra hipotética d’O Globo em outubro de 2006, na época do acidente do Boeing da Gol com o Legacy, no qual já é citado (grifos meus):

‘(…) para o engenheiro Gustavo Tavares da Cunha Mello, autor de tese de mestrado sobre acidentes aeronáuticos, é possível que o piloto do Legacy tenha se esquecido de ligar ou até mesmo desligado o sistema anticolisão, para voar mais alto’ [ver aqui].

Em 25/7/2007, na seqüência imediata do acidente da TAM em Congonhas, retorna ao periódico, ostentando títulos mais convincentes:

‘Gustavo Cunha Melo, engenheiro da Universidade Federal Fluminense e especialista em gerenciamento de risco, diz que estudos recentes desenvolvidos na Europa indicam que as pistas dos aeroportos devem ter, no mínimo, 2.400 metros para receber aviões de grande porte’ [ver aqui].

O especialista volta ao jornal dos Marinho (com ainda mais diplomas e títulos) em 5/8/2007, em matéria de Soraya Aggege falando sobre as causas do ‘caos aéreo’:

‘Um ano depois, os lobbies das empresas já estavam criados, e, no ano seguinte, a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) foi criada. O setor ficou desde então sem controle – diz o economista e engenheiro Gustavo Cunha Mello, professor da Universidade Federal Fluminense e consultor de riscos e seguros da Correcta’ [ver aqui].

Traços da dissertação

Em 21/11/07, sua fama já chegava à Band News, que também contou com sua preciosa colaboração:

‘A medida poderia ser a primeira ação do governo em direção à desmilitarização do setor, segundo o professor da Universidade Federal Fluminense especializado em aviação, Gustavo Cunha Melo’ [ver aqui].

Curiosamente, a Universidade Federal Fluminense não inclui o professor Gustavo na lista oficial de docentes (datada de 2006) que está disponível para download no seu site.

Também não é possível encontrar seu currículo no sistema Lattes, do CNPq, embora por lá restem traços da sua dissertação de mestrado, defendida em 2005, com o título ‘Uma hierarquia dos fatores contribuintes de acidentes aéreos’.

Corretor de seguros

Buscas no Google com o seu nome associado à palavra ‘avião’ nos levam apenas a seus comentários em sites de notícias e jornais, muitos deles replicados dos originais. Nenhum artigo técnico ou livro sobre o assunto, nenhuma colaboração em revistas especializadas de aviação, nenhum vínculo com entidades ou empresas do setor aéreo.

Querem saber quem de fato é o consultor de seguros Gustavo Tavares da Cunha Mello? Seu currículo, por ele mesmo, está no site da sua corretora.

Não o conheço. Pode ser que seja um excelente corretor de seguros. É de se supor que entenda de seguros de avião bem mais do que eu, ou do que vocês que me lêem. Ao que parece, também entende um pouco de seguro-saúde, de recursos humanos, de gestão de risco em plataformas de petróleo. Mas também pode ser que não tenha sequer um brevê, e que não saiba muito bem a diferença que existe entre um MD-82 e um Fokker 100.

O fato é que, hoje, Gustavo Mello tornou-se um consagrado especialista em acidentes aeronáuticos na maior rede brasileira de mídia.

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Consultor em tecnologia gráfica, São Paulo, SP