Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Considerações sobre audiência presumida

Este trabalho teve como preocupação central buscar pistas para a compreensão de quais as estratégias acionadas para entender como a audiência está presente nas notícias. O objetivo foi identificar marcas textuais, nas informações jornalísticas, que remetem à atitude do profissional de presumir, construir, antecipar ou presentificar a audiência. Para desenvolvê-lo, acompanhamos, de maio a agosto de 2001, o dia-a-dia da atividade dos jornalistas nas redações do ESTV2ªED e do Tribuna Notícias, dois telejornais do Espírito Santo. No artigo, para facilitar a exposição, usamos como exemplo só o primeiro telejornal.

Com a finalidade de estudar essa audiência antecipada, propusemos a hipótese da audiência presumida, assim enunciada: os jornalistas constroem antecipadamente a audiência a partir da cultura profissional, da organização do trabalho, dos processos produtivos, dos códigos particulares (as regras de redação), da língua e das regras do campo das linguagens para, no trabalho da enunciação, produzirem discursos. E o trabalho que os profissionais do jornalismo realizam, ao operar sobre os vários discursos, resulta em construções que, no jargão jornalístico, podem ser chamadas de notícias. Para dar conta da hipótese, buscamos apoio nos estudos da produção da notícia e na teoria da enunciação.

Verificamos que, na construção da audiência, os jornalistas mobilizam cinco operações enunciativas, de forma consciente ou inconsciente, que denominamos de: operadores de atualidade, operadores de objetividade, operadores de interpelação, operadores de leitura e operadores didáticos. Verificamos, também, que o traço essencial do modelo enunciativo do telejornal está no poder de falar e mandar olhar aquilo que é construído e referenciado como real.

No que diz respeito à produção das notícias temos de um lado a cultura profissional, entendida como um conjunto emaranhado de retóricas, astúcias táticas, códigos, estereótipos, tipificações, representações de papéis, rituais e convenções relativos às funções da mídia e dos jornalistas na sociedade, à concepção do produto-notícia e às modalidades que superintendem a sua confecção. Isso se traduz, pois, numa série de paradigmas e práticas profissionais dadas como naturais (TRAQUINA, 2001).

Bakthin e Benveniste

Por outro lado, temos restrições ligadas à organização do trabalho, sobre as quais se criam convenções profissionais, que contribuem para definir o que é notícia, contribuem ainda para legitimar o processo produtivo, desde o uso das fontes até a seleção dos acontecimentos. Estabelece-se, assim, um conjunto de critérios de relevância, que e definem a noticiabilidade de um fato, isto é, a possibilidade de ele virar notícia.

Definida a noticiabilidade como o conjunto de elementos com os quais as empresas jornalísticas controlam e produzem a quantidade e o tipo de fatos, entre os quais vai selecionar as notícias, podemos definir os valores-notícia como um componente da noticiabilidade. A combinação deles vai ajudar o jornalista a definir quais os fatos que são suficientemente interessantes, significativos e relevantes para serem transformados em notícia.

Os valores-notícia são critérios de relevância espalhados ao longo de todo o processo de produção, isto é, não estão presentes só na seleção de notícias, mas participam de todas as operações anteriores e posteriores à escolha, embora com um relevo diferente em cada situação. Eles são dinâmicos. Ou seja, mudam em função de aspectos culturais, sociológicos e tecnologias. Por exemplo, a introdução do videoteipe no telejornalismo modificou de forma profunda uma série de fatores, por exemplo, a economia do tempo em televisão.

Esses critérios de relevância, praticamente infinitos, agrupam-se em cinco grandes categorias que, por sua vez, se dividem em outras tantas. A título exemplificativo, vamos indicar algumas delas: 1) categorias substantivas; 2) categorias relativas ao produto; 3) características relativas aos meios de informação; 4) características relativas ao público; e 5) categorias relativas à concorrência.

Dentro desse contexto consideramos que é no trabalho da enunciação que os jornalistas produzem discursos. E é no interior do próprio processo discursivo, por meio de múltiplas operações articuladas pelos processos da própria linguagem, que a audiência é construída antecipadamente.

Por isso, entendemos ser necessário contextualizar a questão da enunciação antes de entrarmos na enunciação jornalística propriamente dita. Consideramos que a teoria da enunciação teve como precursor Bakthin e ganhou um impulso na França com a obra do lingüista Benveniste, que propôs estudar a subjetividade na língua: o aparelho formal da enunciação.

Noção de sujeito

Acompanhamos Bakhtin (1992) quando concebe a língua como um produto sociohistórico, como forma de interação social realizada por meio de enunciações. O conceito da língua como interação social desempenhou um papel importante nos estudos que, hoje, se desenvolvem sobre a interação verbal, como a pragmática, a teoria da enunciação e a análise do discurso que tem como princípio que a linguagem é ação e não um mero instrumento de comunicação.

Bakhtin chama a atenção para o fato de que a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas, nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações: ‘a interação verbal constitui, assim, a realidade fundamental da língua’ (BAKHTIN, 1992, p.123). Como lembra o autor, a enunciação é de natureza social.

Ele argumenta que toda a palavra comporta duas faces, sendo determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Nesse sentido, constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte, isto é, toda a palavra serve de expressão de um em relação ao outro.

Bakhtin instaura o dialogismo como princípio constitutivo da linguagem e condição de sentido do discurso: ‘A língua constitui um processo de evolução ininterrupto, que se realiza através da interação verbal dos locutores’ (1992, p.127).

O outro está sempre presente nas formulações do autor e tem tanto a função de quem recebe como também de quem permite ao locutor perceber o seu próprio enunciado:

‘Os outros, para os quais o meu pensamento se torna, pela primeira vez, um pensamento real (e, com isso, real para mim), não são ouvintes passivos, mas participantes ativos da comunicação verbal. Logo de início, o locutor espera deles uma resposta, uma compreensão responsiva ativa. Todo o enunciado se elabora como para ir ao encontro dessa resposta. O índice substancial (constitutivo) do enunciado é o fato de dirigir-se a alguém de estar voltado para o destinatário’ (Bakhtin, 2000, p.320).

Dessa forma, o interlocutor é constitutivo do próprio ato de produção da linguagem, de certa maneira, ele é co-enunciador do texto e não um mero decodificador de mensagens. Ele desempenha um papel fundamental na constituição do significado e na produção. Logo, um enunciado deve ser analisado levando-se em conta sua orientação para o outro. O outro, no nosso caso, é a audiência presentificada no texto.

Outra noção introduzida por Bakhtin foi o conceito de polifonia, resultado dos trabalhos desenvolvidos sobre a natureza do discurso literário (1981, p.65-85). Ao analisar a obra de Dostoievski e uma série de textos da literatura popular, Bakhtin percebe que o autor investe suas personagens de uma série de máscaras diferentes. Como essas máscaras representam várias vozes a falarem simultaneamente sem que uma dentre elas seja preponderante, Bakhtin qualifica o texto de Dostoievski de polifônico.

O conceito bakthiniano de língua como interação social reintroduz, nos estudos da linguagem, a reflexão sobre a noção de sujeito. Deixa-se de lado o conceito de língua como um sistema neutro e passa-se a ver a língua como o lugar privilegiado de manifestações enunciativas. Tal proposição apresenta-se claramente na teoria da enunciação de Benveniste.

Ato de afirmação

Como mostrou Benveniste, o único modo de fazer o discurso funcionar é pela intervenção do sujeito, que nele investe sua subjetividade: ‘A enunciação é este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização’ (1989, p.82).

No entanto, no ato enunciativo, o sujeito não constitui apenas a si, sujeito locutor, mas também o sujeito-alocutário, isto é, define não só a posição eu, mas também a do tu: ‘…ele implanta o outro diante de si, qualquer que seja o grau de presença que ele atribua a este outro. Toda a enunciação é, explicita ou implicitamente, uma alocução, ela postula um alocutário’ (BENVENISTE, 1989, p.84)

Para o autor, o que, em geral, caracteriza a enunciação é a acentuação da relação discursiva com o parceiro. Na realização do seu estudo sobre o aparelho formal da enunciação, ele tomou como os principais pontos de partida os sistemas pronominal e verbal do francês (BENVENISTE, 1995, p.247-283).

Na descrição do sistema pronominal, o autor distingue os pronomes da pessoa (1ª e 2ª) dos pronomes da não-pessoa (3ª). Os primeiros designam os interlocutores, os sujeitos envolvidos na interlocução(eu, tu, você; nós, vós, vocês); os últimos designam os referentes (seres do mundo extralingüístico de que se fala) e, assim, não devem ser colocados na mesma classe dos primeiros.

Quanto ao sistema verbal, Benveniste diz que existem dois planos de enunciação: o discurso e a história, cada um com os seus tempos característicos. Na história, tem-se o relato de eventos passados, sem o envolvimento do locutor, como se os fatos narrassem a si mesmos.

Pertencem à ordem da história o passé simple (pretérito perfeito simples), os pronomes da não-pessoa, o imperfeito, o mais-que-perfeito e o futuro do pretérito do indicativo. Já o discurso é de ordem diversa: num determinado momento, em determinado lugar, um indivíduo se apropria da língua, instaurando-se como eu, e, ao mesmo tempo, instaurando o outro como tu. É uma enunciação que pressupõe um locutor e um ouvinte e, no primeiro, a intenção de influenciar o outro de alguma maneira.

Em seu livro Quando Dizer é Fazer, Austin (1990) distingue, com precisão, três atividades complementares na enunciação. Proferir um enunciado é ao mesmo tempo:

** realizar um ato locutório, produzir uma série de sons dotada de um sentido numa língua;

** realizar um ato ilocutório, produzir um enunciado ao qual se vincula convencionalmente através do próprio dizer uma força;

** realizar uma ação perlocutória, isto é , provocar efeitos por intermédio da palavra (por exemplo, pode-se fazer uma pergunta – ato ilocutório – para interromper alguém, para embaraçá-lo, para mostrar que se está ali, etc.). O campo do perlocutório sai do contexto propriamente lingüístico.

Grosso modo, Austin mostra que é impossível encontrar enunciações sem valor perfomativo que só descrevessem o mundo. Até um enunciado que parece puramente descritivo, como está chovendo, coloca-nos diante de uma realidade nova, realiza também uma ação, no caso, um ato de afirmação.

Os operadores da notícia

Para o autor, entre está chovendo e afirmo que está chovendo, haveria apenas uma diferença de explicitação; o perfomativo seria explícito no segundo caso e primário no primeiro. Decerto ações como sustentar, afirmar, ordenar…são verbais; não são do mesmo tipo do que ações institucionais como jurar, batizar ou decretar, mas trata-se, nos dois casos, de atos de linguagem. No telejornalismo, é muito comum os editores trabalharem com atos ilocutórios ao interpelar a audiência. Por exemplo: Confira

A enunciação constitui a âncora da relação entre a língua e o mundo: ela permite representar os fatos no enunciado, constituindo, ela própria, um fato, um acontecimento único definido no tempo e no espaço.

A isso, acrescentaríamos que, a partir dos estudos da enunciação, passou-se a estudar outras marcas da presença do enunciador, do co-enunciador, nos enunciados produzidos, como, por exemplo, os indicadores de modalidade, todos os tipos de modalizadores ou marcas lingüísticas, que classificamos como importantes para o estudo da hipótese da audiência presumida na enunciação jornalística.

É no trabalho da enunciação, na operação sobre vários discursos, que os jornalistas produzem as notícias. No entanto, nessa operação, os profissionais não são simples reprodutores do real e senhores soberanos dos discursos, como reza toda uma tradição do fazer jornalístico.

As formas da enunciação jornalística são marcadas por processos de raciocínio ou cadeias de razões, que visam a determinados efeitos de reconhecimento (apreensão, compreensão pela audiência) e podem restringir-se ao anúncio, à descrição, à argumentação, a demonstração e a persuasão.

I Anunciar – Dizer o que aconteceu ou vai acontecer; dizer o que alguém disse, subtendendo a relevância do dito;

II Descrever – Relatar as etapas de um fato, com suas circunstâncias; os passos de um personagem, com seus comportamentos, atitudes, declarações ou proposições, ou o quadro de uma situação, com os diversos aspectos envolvidos;

III Demonstrar – Provar a relevância, validade ou veracidade do que foi anunciado ou descrito;

IV Argumentar – Orientar inferências a partir do que foi dito ou realizado (é o que acontece, comumente, na abertura das matérias no telejornalismo);

V Persuadir – Buscar convencer o outro da importância e da veracidade do relato, utilizando-se, no caso da sedução, apelos muitos comuns (por exemplo, na abrir a cabeça de uma matéria dizendo: Violência na zona norte de Vitória.)

Dentro desse contexto, categorizamos cinco operações enunciativas mobilizadas pelos jornalistas, de forma consciente ou inconsciente, em que a audiência estava presente na produção das notícias, de uma forma constante, durante o período de investigação, que denominamos de operadores de atualidade, operadores de objetividade, operadores de interpelação, operadores de leitura e operadores didáticos.

Os tempos do presente

Tomando como exemplo o ESTV2ªED procuraremos mostrar, de uma forma simplificada, como esses operadores são mobilizados.

a) operadores de atualidade

Vt-navio/destino 29/5/2000

Loc./apres. :

MAU TEMPO SUSPENDE

TRABALHOS DE RETIRADA DE

ÁGUA DE NAVIO. / A

EMBARCAÇÃO ESTÁ, HÁ TRÊS

ANOS, PARADA EM

ALTO-MAR. / AGORA, CORRE

RISCO DE AFUNDAR E

PROVOCAR UM ACIDENTE

ECOLÓGICO NO LITORAL DA

GRANDE VITÓRIA. / / /

/ / / / / / RODA VT / / / / / / /

O telejornal mostra-nos várias formas pelas quais as operações enunciativas procuram construir um vínculo ativo com a audiência. Uma delas é a atualização do passado. O telespectador (co-enunciador) é transportado virtualmente para o momento do fato já ocorrido. Os fatos são descontextualizados da sua experiência histórica e formatados nas normas e regras do noticiário televisivo. É o presente presentificado.

Os jornalistas nas mais diferentes ações, sempre de natureza discursiva, constroem e fazem funcionar diferentes formas de ‘captura’ da audiência em relação ao mundo e à temporalidade próprias do telejornal. A temporalidade do noticiário não é uma cronologia, ou seja, não é uma medida de tempo que reproduz, como um espelho, o tempo do fato; é uma temporalidade produzida.

O jornal televisivo é um concerto de ritmo-informação. Tudo o que conta é o mundo do fato que pertence à ordem do instantâneo, do efêmero. O presente não é um tempo como os outros; ele não se encadeia com outros tempos, sucede-se a si mesmo sob a forma de outro presente.

O espaço do noticiário televisivo se apresenta, assim, como um espaço onde o fato – sempre fugaz, esquivo e ambivalente – nasce como notícia, e o presente absoluto que surge é precisamente o presente da notícia enunciada, da notícia produzida: o presente da enunciação.

Procura-se estabelecer uma cumplicidade com a audiência (o co-enunciador) oferecendo uma representação do mundo real que é produzido na própria ordem da informação, busca-se criar um efeito de real, indicando-se explicitamente para cada informação a referência que o constitui. É o presente social, um tempo difuso, mediado entre o passado e o futuro, convertendo todos os tempos no presente em que o telejornal convida a audiência a atuar.

Idéia de credibilidade

Dentro desse contexto, observamos que os enunciado acima apresenta conjugações verbais no presente do indicativo: suspende e corre. O que o jornalista, produtor-enunciador do discurso, procurou fazer foi com que os verbos no presente do indicativo coincidissem com o momento da enunciação, isto é, com a leitura do texto pelo apresentador. Na prática, uma descontextualização do fato e seu enquadramento no tempo do telejornal, o presente da enunciação.

b) operadores de objetividade

Vt-passeata/servidores 29/05/2000

Loc./apres.:

SERVIDORES DO ESTADO

FAZEM PASSEATA NO CENTRO

DE VITÓRIA. / RECLAMAM QUE

O GOVERNO NÃO ATENDE ÀS

REIVINDICAÇÕES. / A

MANIFESTAÇÃO DUROU QUASE

DUAS HORAS E TUMULTOU

AINDA MAIS O TRÂNSITO. / / /

/ / / / / / RODA VT / / / / / / /

A objetividade é um dos dogmas do jornalismo, porque está intimamente ligada com um fator inerente a esse campo, a credibilidade. O discurso jornalístico se assenta sobre essa base, à perda da credibilidade implicaria a conseqüente perda, no nosso caso, de audiência. Caso o telespectador (co-enunciador) não acredite mais no que o noticiário televisivo está dizendo, é rompido um contrato de comunicação, uma cumplicidade entre o jornal e o seu interlocutor.

Por isso, a objetividade é de fundamental importância para os telejornais. As explicações para esse dogma, esse mito jornalístico, são muitas. Ao longo deste estudo, já expusemos algumas, como, por exemplo, a de que os jornalistas usam a objetividade como uma forma de proteção diante da empresa jornalística para a qual trabalha bem como para evitar possíveis críticas dos leitores. Ser objetivo é ser imparcial e impessoal.

O que pudemos constatar é que a objetividade para os jornalistas, mais do que um espírito de autodefesa, está relacionada fortemente à idéia de credibilidade, ou seja, quanto menos o jornalista interfere, como mediador, no dizer do outro, mais a notícia estaria se aproximando da realidade, da verdade.

Fonte dos discursos

O enunciado indica essa preocupação. O verbo está na terceira pessoa do singular ou do plural. No enunciado, os servidores fazem uma passeata e reclamam do Governo (está subentendido que os servidores, eles, fazem uma passeata e reclamam).

c)operadores de interpelação

•Vt-tabela/jogos hoje 17/05/2000

Loc./apres. :

SEIS JOGOS HOJE PELA

SEGUNDA RODADA DO

RETURNO. / DUAS PARTIDAS

FORAM À TARDE. / O SANTA

MARIA GANHOU DO SERRA POR

TRÊS A UM. / E O LINHARES

TAMBÉM VENCEU O

RIACHUELO, PELO MESMO

PLACAR. / . AGORA, À NOITE,

TEM MAIS QUATRO

JOGOS. / CONFIRA A

TABELA. / / /

/ / / / / / RODA VT / / / / / / /

Uma das estratégias enunciativas mais complexas que ocorrem no telejornal é a interpelação da audiência, quando o enunciador se dirige a uma audiência genérica, sem marcas precisas de designações, e solicita que ela se manifeste, propondo um diálogo televisivo.

O enunciador procura exercer certos efeitos sobre interlocutor, dando-lhe ordens, sugerindo procedimentos, lembrando-o de futuros acontecimentos, etc. No entanto, os efeitos podem se realizar ou não. Um ato de ameaça pode não persuadir o interlocutor; um ato de ameaça, necessariamente, não precisa resultar numa ação.

No entanto, como vimos na redação do ESTV 2ªEd, a expectativa do enunciador é o sucesso do enunciado, o aceite da audiência ao que está sendo proposto. Mais uma vez, funciona o senso-comum de que o jornalista é a fonte dos discursos. Entendemos que, de uma forma ou de outra, o enunciado afetará o interlocutor, mesmo que não seja da forma que o enunciador tinha em mira.

Figura de supressão

No enunciado, o enunciador faz à audiência (co-enunciador) pedidos de continuidade. Depois da fazer um breve apanhado do campeonato de futebol do Estado do Espírito Santo, o enunciador, mais do que dar uma ordem, mesmo o verbo estando na terceira pessoa do singular do imperativo (você), faz um convite ao telespectador para que confira os jogos da noite e, assim, sabendo que vão acontecer assista a eles ou não.

d) operadores de leitura

Vivo exterma- greve/ônibus noite 29/5/2000

Loc./apres.:

BOA-NOITE.

SEGUNDA-FEIRA DE

PROTESTOS E SURPRESAS. / A

GREVE DOS MOTORISTAS DE

ÔNIBUS, INICIADA HOJE DE

MANHÃ, CONTINUA NA

GRANDE VITÓRIA. / O

PROTESTO É CONTRA A

SUSPENSÃO DO PASSE

LIVRE. / O REPÓRTER ANDRÉ

JUNQUEIRA ESTÁ NO CENTRO

DE VITÓRIA E MOSTRA COMO

OS TRABALHADORES ESTÃO

FAZENDO PARA TENTAR

VOLTAR PARA CASA./ / /

/ / / / / / VIVO EXTERNA / / / / / / /

Os operadores funcionam nos meandros, nos interstícios, ‘nas zonas de sombra’, nos vazios e no silêncio dos enunciados. Não é nada fácil identificá-los. É preciso atuar como uma espécie de detetive para encontrar, nas superfícies significantes, as marcas, as pistas desses operadores.

Verificamos que o enunciador propõe uma série instruções, de senhas e de questões como um caminho a ser percorrido pela a audiência (co-enunciador). O enunciado funciona, como um roteiro, um script a ser preenchido.

Como num jogo, é oferecida à audiência a possibilidade de entrar na partida com o investimento dos seus mecanismos de projeção e identificação com aquilo que se dá como objeto ofertado. É nessa relação que se estabelecem vínculos, cumplicidades, bem como o contrato de comunicação.

Ação inconsciente

Nos enunciado notamos um recurso enunciativo muito utilizado no telejornalismo o uso de uma figura de supressão, a elipse, que consiste em suprimir termos necessários à construção do enunciado, mas indispensáveis à compreensão do sentido. No exemplo acima sentimos a falta do artigo indefinido uma. Com acréscimo do artigo teríamos: ‘Uma segunda-feira de protestos e surpresas’.

e) operadores didáticos

VT- farmácias/genéricos 16/6/2000

(E22) Loc./apres.:

MAIS UM INSTRUMENTO A

FAVOR DA SAÚDE DO

CONSUMIDOR. / A PARTIR DE

AMANHÃ, A FARMÁCIA QUE

NÃO TIVER A LISTA DE

GENÉRICOS À MOSTRA VAI

SER MULTADA. / HOJE,

MUITAS DELAS JÁ ESTAVAM

CUMPRINDO A

DETERMINAÇÃO. / MAS O

CONSUMIDOR AINDA

CONTINUA ENCONTRANDO UMA

DIFICULDADE: ENCONTRAR O

GENÉRICO DESEJADO. / / /

/ / / / / / RODA VT / / / / / / /

A pesquisa de campo que realizamos, as entrevistas com os editores e as análises dos enunciados permitem-nos apontar os operadores didáticos como aqueles que mais oferecem indícios, em relação aos demais operadores, da viabilidade teórico-prática da hipótese da audiência presumida. Isso porque há uma aproximação muito grande entre a preocupação didática do jornalista (cultura profissional, valores-notícias etc.) e a transposição dessa pretensão para os enunciados (trabalho da enunciação sobre a produção dos discursos).

No entanto, mais uma vez, foi possível observar que isso se dá de uma forma praticamente inconsciente. Os jornalistas mobilizam códigos e regras do campo da linguagem ao usarem os operadores didáticos sem se darem conta da natureza discursiva do seu trabalho. Questionados sobre isso, as respostas variam desde porque é preciso dar tudo detalhadamente porque a audiência não entende até a explicação, que reforça o ser profissional de que o jornalista é a fonte das notícias, de que se eu entendo, as pessoas também vão entender.

Bem mastigadinho

Observamos que o enunciador no enunciado (E22) trabalha com a chamada lei da exaustividade, ou seja, procura dar o máximo de informações, que, supõe, são necessárias para a audiência (o co-enunciador) compreender o enunciado.

Foi possível observar também que, no texto, para tornar mais acessível e didático os modos de dizer, o enunciador recorre a operadores argumentativos, certos elementos da gramática que têm por função indicar a força argumentativa dos enunciados, a direção para o qual apontam.

No enunciado (22), o enunciador observa que há mais um instrumento a favor da saúde do consumidor. A situação permite inferir que já existiam outros instrumentos que beneficiavam o consumidor. Além disso, ainda no enunciado, ao utilizar a partir de amanhã, cuidem-se as farmácias, quem não tiver remédios genéricos nas prateleiras vai ser multado. No entanto, utilizando-se de uma estratégia argumentativa, contrapondo o hoje ao amanhã o enunciador diz que muitas delas não possuíam os genéricos.

O argumento é reforçado no enunciado com a ressalva do mas com a ênfase do ainda, indicando que não está sendo fácil para os consumidores comprarem os genéricos nas farmácias porque eles não são encontrados.

Dentro desse contexto, notamos que a preocupação didática dos jornalistas está relacionada com o valor-notícia imagem da audiência. Ele se investe da autoridade de poupar a audiência de pensar. Tudo deve ser sempre bem-explicado. Como é dito no jargão jornalístico, você tem que entregar tudo bem mastigadinho, com todos os detalhes, tim-por-tim, para que a audiência compreenda.

Como numa fábrica

Entendemos que a motivação em ser sempre didático, recorrendo a regras e normas da cultura profissional, procurando se antecipar aos desejos da audiência, poupando-a do trabalho de pensar, de uma forma ou de outra, influenciam na produção de enunciados onde o tempo inteiro são acionados os operadores didáticos.

Ao final deste trabalho, algumas observações, as cinco operações da enunciação jornalística, que categorizamos como: atualidade, objetividade, interpelação, leitura e didática, foram analisadas de uma forma isolada, porque queríamos identificar algumas marcas de cada um dos operadores para demonstrar como eles estabelecem vínculos, cumplicidades com a audiência no dia-a-dia dos telejornais.

Foi possível observar, ao longo da análise, que esses operadores não se encontram de forma solitária. Num enunciado, podemos encontrar dois, três, todos os operadores, construindo juntos laços com a audiência. Através dessas manobras enunciativas, o contrato de comunicação é construído. É nesse processo também que a audiência (co-enunciador) é definida antecipadamente.

Na análise, estabelecemos, ainda dois momentos que estão imbricados: de um lado, a produção dos enunciados e, de outro lado, a atividade dos jornalistas. O objetivo foi, mais uma vez, mostrar como se dão às operações de construção da audiência e como as rotinas de trabalho, as organizações, a cultura profissional e a noticiabilidade são fatores extralingüísticos que fazem parte do discurso jornalístico.

Com relação às rotinas de trabalho, acreditamos que é preciso lançar um novo olhar sobre as mesmas. Uma tradição sociológica dos estudos norte-americanos e ingleses, dentro de um contexto de uma sociologia da notícia, estuda as rotinas profissionais dos jornalistas como se fossem atividades mecânicas, ou seja, como se todo dia o jornalista chegasse à redação e, como numa fábrica, realizasse as mesmas tarefas pelo simples acionamento das máquinas, regras estabelecidas e padronizadas.

Tecendo e construindo

No que diz respeito à audiência presumida que enunciamos da seguinte forma: os jornalistas constroem antecipadamente a audiência a partir da cultura profissional, da organização do trabalho, dos processos produtivos, dos códigos particulares (as regras de redação), da língua e das regras do campo das linguagens para, no trabalho da enunciação, produzirem discursos. E o trabalho que os profissionais do jornalismo realizam, ao operar sobre os vários discursos, resulta em construções que, no jargão jornalístico, podem ser chamadas de notícias, consideramos que ela se mostrou viável.

Na análise, verificamos que as operações e construções propostas na hipótese acima indicam que a audiência é presumida no próprio processo de enunciação jornalística, ou seja, o outro, que compôs a cadeia interativa da atividade jornalística, não é só um personagem revestido de certas marcas de indicadores sociais, mas alguém construído na própria produção imaginária dos organizadores e enunciadores do discurso.

Acreditamos que a hipótese da audiência presumida aponta para uma possível articulação nas investigações do campo do jornalismo entre os estudos do newsmaking, numa perspectiva da sociologia da notícia (a teoria etnoconstrucionista), a teoria da enunciação e análise do discurso francesa.

Entendemos que, pelas evidências levantadas ao longo do trabalho, é um caminho que pode ser seguido. No entanto, com certeza, representa os primeiros passos, uma contribuição pequena, um convite para que outros pesquisadores, das mais diversas formas, se interessem pela articulação sugerida, pela hipótese da audiência presumida.

Não temos dúvida que deixamos de lado uma série de questões a serem estudadas com relação à construção antecipada da audiência, por exemplo, como ela agenda a sociedade, ou seja, como os noticiários televisivos vão tecendo e construindo diariamente a realidade social. Mas, como já afirmaram outros autores, não é possível descrever tudo.

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Jornalista, chefe do departamento de Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco