Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Crônica do descaso, descaso crônico

Leio as propostas do novo ministro da Educação, Tarso Genro, sobre a ocupação de 100 a 250 mil vagas ‘ociosas’ nas universidades privadas, para alunos de baixa renda (que estudaram na rede pública), beneficiários de políticas de cotas e portadores de necessidades especiais. Para acolher esse público, as universidades escolhidas – por seu mérito – teriam a contrapartida da isenção de impostos federais.

A se acreditar em um político petista (e está cada vez mais temerário fazê-lo), a idéia é engenhosa, no sentido em que todo mundo sai ganhando – menos as universidades públicas. Ganham os novos alunos, com o acesso ao curso superior; ganham duplamente as universidades privadas, com a renúncia fiscal e com a incorporação de um novo rótulo de ‘ação social afirmativa’ ou coisa parecida; ganha o MEC, que se livra dos protestos dos excluídos e da pecha de permitir o favorecimento das classes mais abonadas nas universidades públicas; ganha a sociedade, que aumenta o porcentual de pessoas com diploma superior, e, por que não dizer, ganham os meus ouvidos, que não agüentam mais essa cantilena de universidade ‘Robin Hood’ privatizada e paga pelos mais ricos para ajudar os mais pobres.

Não creio que o porcentual sugerido – 25% das vagas, as chamadas ‘vagas ociosas’ – seja aceito pelas universidades particulares. É muita coisa, algo em torno de um milhão de alunos em cinco anos, e talvez seja um dado perturbador, para o bem ou para o mal, em seus projetos de expansão.

Barbas de molho

Foram seis anos de farra e, de 2001 para cá, as universidades – e principalmente as faculdades privadas – têm experimentado um crescimento à base de 2 a 3 cursos por dia. Entre 1996 e 2002, houve um crescimento de 500% (!) nas vagas dos cursos privados de Direito, e de 600% (!!) nos cursos de Administração. Em 1995, quando foi aberta a porteira, tínhamos 894 instituições de ensino superior, sendo 220 públicas. Em 2003, eram 1.960 instituições (crescemos 119%), sendo 208 públicas.

Enquanto as instituições privadas cresceram 156% (!!!), nem Jesus Cristo, bem treinado, conseguiria o milagre de uma expansão neste ritmo nas universidades públicas – que, aliás, ‘cresceram negativamente’ (como dizem alguns economistas) em -1% (menos 1%!!!!).

Caminhamos para ter 4 milhões de alunos matriculados nos cursos superiores, e o porcentual de matrículas nas particulares vai chegar rapidinho aos 80%. Como qualquer outro negócio, em termos de tomada de decisão, já deve estar passeando pela cabeça dos diretores das instituições privadas a minhoca da dúvida sobre esta explosão: será que a demanda ainda continua a crescer nessa taxa? – ou seja, vale a pena continuar abrindo cursos e mais cursos, igual padaria? Ou será que o cenário está mudando, como alerta o ex-ministro e atual consultor em Educação Paulo Renato ‘Por quê não pensei nisso antes’ Sousa?

Em algumas instituições, a inadimplência ronda perigosos 30% e uma ajudazinha do governo seria muito bem-vinda. Aí vem o caso de pôr na balança: isenção de impostos versus recebimento de mensalidades. Para quem tem um percentual elevado de vagas ociosas, não precisa nem fazer as contas. Mas para aqueles cursos muito bem conceituados, onde não há ociosidade de vagas, pouca inadimplência e uma boa relação entre oferta/demanda, é hora de desconfiar e pôr as barbas de molho.

Cortes profundos

O que eu não consigo entender é o porquê de não se aplicar essa grana (da isenção fiscal) e outras granas nas instituições públicas, em vez de colocar a azeitona na empada particular. O ministro Tarso Genro disse que esses recursos seriam investidos na expansão de universidades públicas em locais de pouca oferta. Quando o projeto ficar pronto, iremos saber quanto, quando e onde, mas será que dá para acreditar?

Enquanto isso, que tal dar uma espiada nos lugares onde a demanda é muito maior e as universidades estão patinando (algumas para trás) e sem dinheiro até para pagar a conta de luz? Pelo menos nos tempos de FHC sabíamos que não haveria refresco, e que nem se fizéssemos uma greve a cada dois meses o MEC iria repor as vagas abertas pelas aposentadorias dos professores e dos servidores federais. Mais recursos para as universidades públicas, então, nem pensar.

O tal modelo, digamos, neoliberal, impedia que se ‘gastasse’ mais dinheiro do que estava na Constituição, mas não achava nem um pouco ruim que se retirasse 20% do orçamento do MEC – a tal de DRU – a título de financiar a estabilidade do real, ou outro motivo qualquer.

Aí é que está o pulo do gato: a Constituição de 1988, no seu artigo 212, estipula que a verba destinada ao MEC seja de, no mínimo, 18% da receita de impostos. Então, não estão aí incluídas, nesta palavrinha, as receitas do pagamento de taxas e de contribuições – como a CPMF, por exemplo.

A receita para o Orçamento da União cresceu 187% no período FHC; e a verba do MEC, 84%. Em 1995, a receita foi de 105 bilhões de reais, o orçamento do MEC foi de 9 bilhões de reais. Em 2003, já no governo Lula, mas ainda assombrados pela ‘herança maldita’, o orçamento total foi 333 bilhões de reais – e o do MEC de 18 bilhões de reais –, antes de levar uma poda de 3,6 bilhões de reais e de outros cortes. Em 2004 eram pouco mais de 413 bilhões de reais, mas já bloquearam (cortaram, em pêtês) 7 bilhões. No MEC, fora a folha de pagamento de ativos e inativos, a verba para custeio e investimentos caiu de 6,3 bilhões de reais para 5,67 bilhões, isso antes da DRU. Que tal?

Estatísticas grosseiras

Em 2003, o então ministro Cristovam Buarque oscilou entre o delírio e a confusão, mas, em seus momentos de aguda lucidez, foi muito claro ao botar o dedo na ferida e reclamar mais verbas para a educação. Acharam (o governo) que isto era um desrespeito muito grande e deram o troco, despedindo-o pelo telefone.

Diz-se que o atual ministro é mais chegado ao núcleo do poder, e que tem boas relações com o pessoal do cofre – deve ter o número do telefone de todos eles. Isto pode ser um grande bem ou um grande mal: no que se refere aos salários, pelas esmolas anunciadas até agora, muito provavelmente vem outra greve em abril. E volta, mais uma vez, aquele papo de que os professores ganham muito bem, que as universidades desperdiçam muito dinheiro, que não há ‘projeto’, que lá fora é mais barato, que só dá gente da elite nas faculdades públicas e blablablá… E lá se vai mais um ano, mais uma década, mais uma geração perdida nesta eterna enrolação, que disfarça a verdade de que a Educação, em todos os níveis, é a maior responsabilidade de um Estado que se queira socialmente decente. Tem que investir, sim, investir muito, o dobro, o triplo, seja lá quanto for. Tem que ‘gastar’, como queiram.

Temos que enfiar a carapuça e ver que só deixaremos de ser um país emergente (ou submergente, como em 2003) se acabarmos de vez com estatísticas grosseiras como ‘relação matrículas/professor’ ou ‘custo médio do aluno’, além de outras tediosas bobagens, e começar, simplesmente, a agir. O que temos a perder é apenas a vergonha do nosso atraso.

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Engenheiro, professor do Departamento de Estatística da Universidade Federal de Juiz de Fora