“Não há melhores testemunhas da História do que o jornalista” (José Rodrigues dos Santos, jornalista e escritor português, autor de Crônicas de guerra: da Crimeia a Dachau)
Quando o jornalista e escritor italiano Curzio Malaparte deu a partida para pôr no papel as suas crônicas pessoais sobre a guerra no velho continente, a Alemanha nazista lançava-se com um apetite voraz à ofensiva sanguinária sobre o território soviético, o mais cobiçado e suculento filé do front oriental. Naquele terrível verão europeu, em junho de 1941, Kurt Erich Suckert – nome de batismo de Malaparte – era correspondente na Ucrânia do jornal italiano Corriere della Sera e ostentava o salvo-conduto da temida cruz gamada que o autorizava a transitar entre as barbaridades levadas a efeito pelas tropas germânicas em sua perversa escalada de conquista e extermínio.
Envergando a farda de oficial italiano, Malaparte cobriu os combates das forças do Eixo (formadas pela Alemanha, Japão e Itália) nas frentes da Rússia, Polônia e Finlândia, misturando-se a soldados, prisioneiros e guerrilheiros em cidades e aldeias arrasadas pelos canhões e bombardeios. Transitou pelas ruas do gueto de Varsóvia, apinhadas de gente faminta e amedrontada, e presenciou o massacre na cidade de Iasi (Jassy), na Romênia, onde em dois dias foram mortos mais de 8 mil judeus.
As anotações secretas sobre o pesadelo nazista que o autor ocultou, por várias vezes e em diferentes locais – no forro de seu casaco, na fenda de um rochedo perto de sua casa na Ilha de Capri, com amigos diplomatas, e até em um chiqueiro de uma aldeia ucraniana – transformaram-se na obra intitulada Kaputt (quebrado, em alemão), o seu livro mais festejado, publicado em 1944 e traduzido para mais de dez idiomas. Nas suas 500 páginas ficou retratado, de forma admirável e espantosa, o poder de alcance da maldade, da impiedade e da infâmia, a abominável trindade que contaminou a Europa como um vírus devastador, metamorfoseando a condição humana em um festival de horrores e de degradação que nenhuma fantasia futurista imaginaria criar.
Longe de ser tragado pelo ralo do tempo, o livro tem inspirado intelectuais e artistas pelo impacto de suas imagens e diálogos impensáveis. Em 2008, um episódio de Kaputt que narra a busca do autor pelo médico judeu Josef Gruber serviu de tema para o filme Gruber’s Journey, do cineasta romeno Radu Gabrea. Em 2013, o pintor e escultor italiano Maurizio Cattelan montou uma instalação a que deu o nome de Kaputt, a partir de sua visão do capítulo “Os cavalos de gelo”. A mostra foi apresentada na Fondation Beyeler, na Suíça. Mais recente, em 2014, o ilustrador e quadrinista gaúcho Eloar Guazzelli Filho, mestre em Comunicação pela USP, adaptou a obra para a arte sequencial da HQ (história em quadrinhos), conservando o seu título original.
Cidade proibida
Italiano da Toscana, Malaparte (1898-1957) lutou na 1ª Grande Guerra (chegou ao posto de capitão e recebeu condecorações por bravura) e na década de 1920 filiou-se ao Partido Nacional Fascista, de Benito Mussolini. Foi diplomata e fundou o jornal La Conquista dello Stato. Em 1931, com a publicação de seu livro Tecnica del colpo di Stato, que ataca Adolf Hitler e o próprio Mussolini, é expulso do partido e condenado ao exílio na ilha de Lipari, de 1933 a 1938. Com a eclosão da 2ª Grande Guerra, ele se engaja no conflito como correspondente do Corriere della Sera e, devido às suas reportagens, é afastado da frente ucraniana pela Gestapo (polícia secreta nazista), sofrendo sucessivas prisões na Itália. Mas, a amizade que mantém com diplomatas – a aristocracia europeia e principalmente com o conde Ciano, genro de Mussolini – o favorece em várias situações.
Malaparte esteve no gueto de Varsóvia em janeiro de 1942, depois de conhecer os guetos de Cracóvia, Lublin e Czenstochowa. Na época, o gueto abrigava em torno de 380 mil pessoas amontoadas em um espaço de pouco mais de 3 quilômetros quadrados, equivalentes a 2,4% da área da cidade (seis meses depois iniciou-se a deportação da maior parte da população – mais de 300 mil – para o campo de extermínio de Treblinka).
Ele conta que a “cidade proibida” (assim chamada pelos nazistas) era circundada por um muro alto de tijolos vermelhos, “construído pelos alemães para fechar o gueto como uma gaiola”. Na porta, vigiada por uma escolta de soldados armados da SS (Schutzstaffel – organização paramilitar nazista), estava afixado um edital instituindo a pena de morte para qualquer judeu que tentasse fugir. Apesar da vontade do jornalista de percorrer o gueto sozinho, o governador alemão de Varsóvia, Ludwig Fisher (executado em uma prisão da Polônia, em 1947), deu ordem expressa para que um militar o seguisse “como uma sombra”. “Também daquela vez”, escreve Malaparte, “eu tivera de resignar-me à companhia do Guarda Negro, um jovem alto, de rosto descarnado, de olhar claro e frio.”
Miséria e medo
O silêncio com que depara nas ruas do gueto o surpreende. Ele se fixa nos olhos das pessoas e vê fome, desespero, medo e “a sombra azul da morte.” Quanto às crianças, confessa: “Os olhos das crianças eram terríveis, eu não podia encará-los.” Observando o dia-a-dia do gueto ele reporta: “Nos cruzamentos das ruas viam-se pares de policiais judeus, com a estrela de David estampada em letra vermelha na braçadeira amarela, imóveis e impassíveis no meio do incessante tráfego de trenós arrastados por grupos de rapazes, de carrinhos de crianças, de carrocinhas de mão, atulhadas de móveis, de montes de andrajos, de ferro-velho e toda a sorte de miseráveis objetos.”
O tempo gélido fazia com que grupos de pessoas se reunissem nas esquinas, batendo os pés na neve, abraçadas, “aos dez, aos vinte, aos trinta, para darem uns aos outros um pouco de calor”. O frio era tanto que “esquálidos e pequenos cafés da rua Nalevski, da rua Przyrynek, da rua Zskroczymska, abundavam de velhos barbados, comprimidos uns contra os outros, em pé, em silêncio, talvez para se aquecerem ou se animarem mutuamente, a exemplo dos animais”.
Seguindo em seu passeio lúgubre, Malaparte topa em uma esquina com duas mulheres jovens se engalfinhando por uma batata. “Elas brigavam entre si, arrancando os cabelos e dilacerando o rosto uma da outra, em silêncio e em meio a uma pequena multidão taciturna.” O jornalista conta que “uma delas pega a batata crua do chão e vai embora, enquanto a outra enxuga com as costas da mão o sangue que lhe manchava o rosto”. Malaparte percebe a roupa em farrapos da jovem e nota o seu olhar “de fome, de pudor, de vergonha”. E se espanta: “De repente, sorriu-me. E eu corei”, confessa.
O jornalista relata que a sua presença ao lado de um guarda da Gestapo desperta a curiosidade e o medo na multidão de “rostos barbudos, afogueados pelo frio, pela febre e pela fome”. Nas ruas do gueto ele se viu forçado a saltar, de espaço em espaço, por cima de cadáveres, já que “os mortos jaziam abandonados na neve, entre candelabros hebraicos apagados, à espera das carroças dos coveiros”. Os mortos “estavam com a barba suja de neve e lama. Alguns tinham os olhos abertos, estavam hirtos e duros, se assemelhavam aos judeus mortos de Chagall. A mortandade era grande, afirma Malaparte, e “os mortos permaneciam dias a fio estendidos nas entradas das casas, nos corredores, nos patamares das escadas ou sobre as camas nos quartos apinhados de gente pálida e silenciosa”.
Malaparte relata que os mortos eram recolhidos nas ruas e nas casas por grupos de jovens estudantes deportados da Alemanha, Áustria, Bélgica, França, Holanda e Romênia. “Eram jovens intelectuais educados nas melhores universidades da Europa. Falavam francês, romeno e alemão. Entretanto, agora se apresentavam andrajosos, famintos, devorados pelos insetos e ainda doloridos das pancadas recebidas, dos insultos, dos sofrimentos padecidos nos campos de concentração e na terrível odisseia que os trouxera de Viena, Berlim, Munique, Paris, Praga e Bucareste até o gueto de Varsóvia.”
Enterrando os mortos
Impressionado com os jovens coveiros, Malaparte escreve: “Eu me detinha a observá-los no seu piedoso trabalho. Tinham no rosto uma luz belíssima, nos olhos, uma juvenil vontade de se ajudarem mutuamente, de socorrer a imensa miséria do seu povo. Eles levantavam os mortos com delicadeza e os colocavam nas carroças puxadas por outros jovens andrajosos e macilentos.”
Dias antes, nos guetos de Cracóvia e Czenstochowa, ele tivera uma estranha experiência com outros jovens judeus que, ao vê-lo uniformizado e ao lado de um guarda nazista, foram ao seu encontro demonstrando um misterioso ar de felicidade. “Parecia que a angústia da espera tinha chegado ao fim e que acolhiam aquele instante, até então temido, como uma libertação.” O jornalista conta que ao explicar que não era agente da Gestapo e nem sequer alemão, notou que a desilusão e a angústia tomaram conta de seus rostos. “Um deles”, lembra, “já tinha tirado o xale imundo e colocado nos ombros de uma senhora”, um gesto de adeus que se repetia entre os judeus quando a polícia ia buscá-los. “Ele estava lendo, em um canto da sala, quando eu apareci à porta da casa”, relata o autor. “Levantou-se de chofre, abotoou os sapatos, endireitou os trapos sujos que lhe serviam de meias, procurou o colarinho da camisa esfarrapada debaixo da gola do paletó. Tossia, cobrindo a boca com a mísera mão.”
Sem utilidade
Desfazer-se das roupas e distribuí-las a parentes e amigos quando a Gestapo batia à porta era quase uma rotina entre os moradores dos guetos. Malaparte recorda que viu dois judeus completamente nus, um deles um rapazote de 16 anos, caminhando sobre a neve em uma manhã glacial de inverno. Ladeados por milicianos armados da SS, eles enfrentavam um frio cortante de 35 graus abaixo de zero. Sobre essa cena incrível, narrada pelo escritor ao governador da Cracóvia, Otto Wächter (morto de causa ignorada em 1949, em Roma, de onde tentava fugir para a América do Sul), este justificou “amavelmente” a situação, explicando que os judeus se despiam porque, para eles, as roupas já não tinham utilidade.
Em outra oportunidade, convidado para um jantar de gala em homenagem ao general-governador da Polônia, Hans Frank (condenado pelo Tribunal de Nuremberg e enforcado em 16 de outubro de 1946), o jornalista se viu envolvido em um animado bate-papo sobre o gueto de Varsóvia. Era um banquete dedicado à figura mitológica de Diana caçadora, e a cúpula nazista compareceu em peso. O local era o palácio Bruhl, antiga sede do Ministério das Relações Exteriores da Polônia transformado no QG do governo alemão de Varsóvia. No cardápio, iguarias como faisões, lebres e um gamo das florestas de Radziwilow, trazido por dois criados de libré azul. “Em seu dorso estava cravada uma rubra bandeirinha hitleriana com a negra cruz gamada.”
Para a sua surpresa, Malaparte foi o primeiro a ser servido pela “virtude” de ter nascido italiano. Presente à mesa, o governador de Varsóvia, Ludwig Fischer, escorria com a colher um molho dourado sobre as fatias de carne e detalhava como eram sepultados os judeus no gueto: ”Uma camada de cadáveres e uma camada de cal”, explicava, como se dissesse “uma fatia de carne e uma camada de molho”.
Modelo de eficiência
Saboreando um charuto após o jantar, o autor lembra que um dos convidados ofereceu-lhe, em um cálice de cristal, “a tradicional bebida dos caçadores alemães, o turkischblut ou, ‘sangue de turco’, uma mistura do rubro vinho de Borgonha – um Volnay denso e tépido – com o pálido champanhe de Mumm”. Ao seu lado, o “general-gouverneur Frank” elogiava a organização imposta ao gueto de Varsóvia, considerando-a um “verdadeiro modelo para toda a Polônia”.
Por sua vez, o governador de Varsóvia, Fischer, discursava sobre a eficiência de seu trabalho, assinalando, “com ar de modéstia”, que o espaço exíguo do gueto havia atrapalhado o planejamento. “Não é minha culpa se (os judeus) ficam muito apertados”, justificava. “Um pouco mais de espaço e eu teria talvez podido tornar as coisas bem melhor.” Observação refutada por outro participante da festa, Emil Gassner, político alemão e um dos fundadores do partido nazista (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, ou NSDAO, na sigla em alemão), que ironiza a situação: “Os judeus gostam de viver assim”, diz rindo.
Por horas a conversa prossegue, segundo Malaparte, no “calor aconchegante” de uma sala contígua ao salão de banquetes, até que a certa altura o homenageado se volta para o jornalista e exclama: “Se déssemos crédito aos jornais ingleses e americanos, diríamos que os alemães não fazem outra coisa se não matar judeus, de manhã à noite.” Logo em seguida, “erguendo o cálice da Boêmia cheio de turkischblut”, o senhor da Polônia diz com firmeza: ”Você esta na Polônia há mais de um mês e não pode dizer que viu um só alemão tocar a ponta do cabelo de um judeu. “Os pogroms são uma lenda”, afirma Frank. “Beba, sem medo, mein liber (meu caro) Malaparate. Este não é sangue de judeus. Prosit (Saúde)!”
Pogrom em Jassy
Os diálogos surrealistas daquela elite cruel e cínica eram anotados mentalmente por Malaparte em sua trajetória de repórter de uma civilização decadente e amoral. Enquanto os homens de Hitler discorriam sobre judeus e guetos na saleta atapetada cheirando a conhaque e tabaco, e suas mulheres – as fraus– “tricotavam ao pé do fogo de lenha de carvalho que crepitava na lareira”, a realidade nas gélidas ruas do gueto de Varsóvia não comportava eufemismos. Lá, escreve o autor, “bandos de cães ossudos farejavam o ar atrás dos fúnebres comboios, e tropéis de meninos maltrapilhos, trazendo no semblante os sinais da fome, da insônia e do medo, recolhiam na neve os trapos, os pedaços de papel, as latas vazias, as cascas de batatas e todos aqueles preciosos rebotalhos que a miséria, a fome e a morte sempre deixam atrás de si”.
Com o copo de vinho na mão, Malaparte sente-se desafiado a contar o que viu na cidade de Jassy, capital do antigo principado da Moldávia, em fins de junho de 1941, nos primeiros dias da guerra da Alemanha nazista contra a Rússia soviética. A Romênia era aliada da Alemanha e o jornalista estando na cidade para acompanhar a guerra no front, foi procurado por alguns judeus que denunciaram a preparação de uma ação violenta, um pogrom (palavra russa que significa causar estragos, destruir) por parte das autoridades do governo romeno contra a comunidade judaica.
Dias depois, a chacina realmente acontece e após uma noite de muita confusão, sirenes, “matraquear de metralhadoras e gritos”, Malaparte recorda o que viu: “Fui à janela, olhei para a Strada Lapusneanu. A rua estava coberta de formas humanas abandonadas em gestos desordenados. Mortos empilhados uns sobre os outros juncavam as calçadas. Algumas centenas de cadáveres amontoavam-se no meio do cemitério. Caminhões alemães e romenos passavam carregados de cadáveres.”
Saindo à rua, Malaparte presencia um espetáculo de horror. “Turmas de soldados e de policiais, grupos de mulheres do povo, bando de ciganos, em alegre burburinho, iam despojando os cadáveres, erguendo-os, virando-os ora de bruços, ora para um lado, ora para outro, para tirar-lhe os paletós, as calças, as cuecas, firmando-lhes os pés na barriga para arrancar-lhes os sapatos. Era um vaivém jovial, um mercado e ao mesmo tempo uma festa. Os mortos nus jaziam abandonados em posições atrozes.” (O massacre de Iasi, que durou vários dias, matou mais de 13 mil judeus. O marechal Ion Antonescu e seu vice Mihai Antonescu, acusados de ordenar a matança, foram fuzilados em 1 de julho de 1946. O comandante da guarnição de Iasi, coronel Constantin Lupu, foi condenado à prisão perpétua.)
Um rato no muro
O relato do jornalista sobre o massacre na Romênia não parece impressionar o grupo de comandantes nazistas. Sacudindo a cabeça em desaprovação, o governador de Varsóvia intervém: “Não, não é assim que se faz”, diz Fischer. “A Alemanha é um país de civilização superior e repugnam-lhe certos métodos bárbaros”, enfatiza Frank. “Matar judeus não é do estilo alemão. É uma tarefa estúpida, um desperdício inútil de tempo e de energias. Nós os deportamos para a Polônia e os encerramos nos guetos. Lá dentro têm liberdade para fazer o que querem. Nos guetos das cidades polacas, os judeus vivem como numa livre república.”
Todos brindam e riem. Erguendo a taça de champanhe em sinal de concordância, Hans Frank se aproxima de Malaparte e demonstrando uma inusitada cordialidade, discursa: “Não somos um povo de assassinos, mein líber. Quando voltar para a Itália, espero que conte o que viu na Polônia. Seu dever de homem honesto e imparcial é dizer a verdade.”
Semanas depois, em um almoço em homenagem ao pugilista Max Schmeling (boxeador alemão, campeão mundial de pesos-pesados em 1930 e paraquedista da força aérea alemã na 2ª Grande Guerra), Malaparte se encontra novamente com o homem-forte da Polônia. Hans Frank sugere um passeio pelo gueto. Após o almoço, Malaparte e os outros convidados seguem em carreata até a entrada da “cidade proibida” e descem dos carros em frente à entrada do alto muro de tijolos vermelhos.
Frank explica à plateia que apesar da punição de pena de morte para os judeus que tentam sair do gueto, muitos deles cavam buracos à noite na base do muro e escapam para comprar comida e roupas na cidade. “O tráfego do mercado negro no gueto se faz em grande parte através desses buracos”, diz em tom professoral. “Durante o dia eles tapam os buracos com um pouco de terra e folhas. Arriscam a vida com verdadeiro espírito desportivo”, ironiza.
De repente, um soldado se ajoelha, aponta o fuzil para o buraco no muro, faz pontaria e atira. “Um rato”, ele brada. Malaparte percebe que há um alvoroço nervoso entre as convidadas. “As damas riam e soltavam gritinhos, arregaçando a saia até o joelho”, diante da possibilidade da aparição do bichano. Mas, para surpresa geral, do buraco emerge a cabeça de uma criança, com os cabelos pretos despenteados e as mãozinhas pousadas na neve. Era um menino, e de acordo com o jornalista, o general Hans Frank repreende o soldado por ter errado o alvo, pega o fuzil e ele mesmo faz o disparo. “Todo jogo tem suas regras”, adverte o nazista para Malaparte.
Um ano depois, na primavera de 1943, o gueto é destruído após uma rebelião que dura quatro semanas (o Levante do gueto de Varsóvia, de 19 de abril a 16 de maio). Os 56 mil judeus remanescentes são enviados para os campos de morte de Treblinka e Majdanek e os poucos combatentes que conseguem escapar se unem aos grupos guerrilheiros que lutam contra os nazistas nas florestas ao redor de Varsóvia.
Nesse mesmo ano, em setembro, na casa de Punta Masullo, na ilha de Capri, Malaparte dá o ponto final em seu manuscrito. “E saiba-se que prefiro esta Europa kaputt – quebrada, acabada, que se fez em pedaços, que foi à breca – à Europa de ontem e à de vinte, ou trinta anos. Prefiro que tudo esteja por refazer a ter de aceitar tudo como herança imutável”, escreve o jornalista. “Que os tempos novos sejam, por conseguinte, tempos de liberdade e respeito, para todos, inclusive para os escritores, pois a literatura necessita de respeito tanto quanto de liberdade.”
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Sheila Sacks é jornalista