Francisco Daudt, colunista da Revista da Folha, merece crédito pela competência de traduzir o desejo inconsciente de alguns jornalistas. ‘Governo assassina mais de 200 pessoas’, segundo ele, deveria ser a manchete em letras garrafais. Seu artigo foi publicado na Folha de S.Paulo em 19 de julho, dois dias depois da tragédia em Congonhas.
O título reivindica adequação vocabular desde a capa. ‘O que ocorreu não foi acidente, foi crime.’ Não, não precisa investigar nada. Não, não precisa haver julgamento. Nem defesa existe nesse Estado Democrático de Direito. Se jornalistas tivessem um insight, teriam contato com esse poder de condenar a priori – poder que exercem às vezes, notadamente quando convém a interesses determinados.
O texto faz referência ao livro Crônica de Uma Morte Anunciada, de Gabriel García Márquez – que também é jornalista, a melhor profissão do mundo. Crime não é só o ato de matar. Assassino também é aquele que, sabendo que um crime vai ocorrer, nada faz para impedi-lo. O livro antecipa tudo no lead, à primeira página. Até a última, o leitor é levado a aplaudir a obra: clap, clap, clap.
Tergiversar sobre fatos
‘Sei que falo por uma enorme quantidade de brasileiros trabalhadores que sustentam essa máquina de (des)governo, muitos mais que os 90 mil do Maracanã, para expressar o nojo e a raiva que esse acúmulo de barbaridades nos provoca’, continua, aproveitando sua oportunidade de ser porta-voz. De quem? Talvez daqueles que o ex-governador Cláudio Lembo classificou como minoria perversa e branca.
Não é exagero, como veremos a seguir. Psicanalista que é, Daudt, por dever de ofício, sabe ouvir e interpretar. O programa de assistência social do governo, com 11 milhões de inscrições, deve ser chamado de bolsa-esmola. ‘Talvez condenem a mim, por ter deixado o coração explodir’, sublinha, antes de encerrar. É um final que antecipa, como profecia, a obscena reação petista: top, top, top.
A primeira opinião que li sobre o acidente de Congonhas, na Folha Online, foi da colunista Eliane Cantanhêde. ‘Quando vai ser o próximo?’ adota, à Francisco Daudt, o tom de tragédia anunciada. Entre uma opinião e outra, Cantanhêde apurou fumaça e outros indícios de falha mecânica para reportagens. No dia 19, ela assina outro artigo com a mesma inspiração: não muda de opinião, tergiversa sobre fatos.
‘Informações não caem do céu’
‘Infraero, Anac e empresas esperaram para ver. Deu no que deu. A pista pode ou não ter sido determinante nessa tragédia específica com o Airbus, mas a responsabilidade do governo não está aí, no detalhe. Está no fato de ter convivido todo esse tempo com o perigo, sem agir, sem prevenir. O acidente e as duas centenas de morte são dolorosos, terríveis. Mas, infelizmente, não foram uma surpresa’, conclui ela, no igualmente interrogativo ‘Fatalidade?’ (grifo meu).
O ‘detalhe’ é a liberação da pista sem o grooving: se isso contribuiu para o acidente, o governo deverá, necessariamente, ser responsabilizado. A colunista, ao reputar um fato à irrelevância de um detalhe, mantém o tom de tragédia anunciada, escolhido desde a primeira hora. Que se danem os fatos. Importa apenas manter o palanque contra o governo. Se alguém contesta esse tipo de manobra, atira nos mensageiros, que coisa feia!
Eliane Cantanhêde é uma jornalista talentosa. É referência de êxito profissional para muitos estudantes de jornalismo. A esses, ela disse, em passado não muito distante, que roubava documentos porque ‘informações não caem do céu’. Hoje, ela é colunista especializada na politização de acidentes aéreos. Já que encontrou coisas que efetivamente caem do céu, talvez tenha parado de roubar documentos – ou os exemplos de falta de moralidade neste país não vêm de cima?
Acidente da Gol
Após o acidente com o avião da Gol, a imprensa registrou, corretamente, a apreensão de passaportes dos pilotos do Legacy, determinada pela Justiça brasileira. Enquanto permaneceram hospedados no Copacabana Palace, eles foram procurados e não quiseram falar. Era direito deles. No depoimento prestado à Polícia Federal, ficaram em silêncio. Era direito deles. Deixaram o país indiciados num relatório parcial: é a nossa lei, ora. Oposição e governo são capazes de politizar tudo, se isso os beneficiar. O dever da imprensa é desconstruir discursos.
Após o indiciamento, um fato indubitável, havia um clima de linchamento no ar, opinou Eliane Cantanhêde. Alberto Dines viu até a reedição da Escola Base (particularmente, não vi nada parecido com isso). Cantanhêde voou até os Estados Unidos para ouvir os pilotos diante de seu advogado. Ainda não havia provas do tal transponder desligado, que pode ter contribuído para o acidente, concluem todos (a exceção, talvez, para o jornalista Joe Sharkey, um sobrevivente do Legacy). Quatro controladores de tráfego aéreo também responderão por homicídio.
Que fique bem clara minha opinião: não existem malvados pilotos-imperialistas nessa história. Mas é preciso compreender e evitar a repetição da tragédia, sem politizá-la, apurando responsabilidades. Se isso fere o orgulho norte-americano, paciência. Se isso incomoda o governo, não estou nem aí. José Serra, candidato à versão doméstica de Rudolph Giuliani, se quiser palanque no acidente da TAM, que vá montá-lo longe das matérias sobre a tragédia.
Marola anti-Lula
Não é sem razão que, no dia 19 de julho, entre 11 leitores que se manifestaram na Folha de S. Paulo, todos, em maior ou menor grau, com mais ou menos adjetivos, apontam a (ir)responsabilidade de autoridades federais. Em Porto Alegre, onde resido, percebi essa mesma tendência nas manifestações publicadas em Zero Hora, veículo em que o anti-petismo só é menor se comparado à revista Veja.
Destaco o insuspeito Fábio Konder Comparatto, cujas opiniões costumam ser referência para a esquerda em geral – e para o petismo, em particular. ‘Nas democracias autênticas, quanto maior o poder, maior a responsabilidade. No nosso serviço público, é exatamente o contrário: quanto maior o cargo, maior a irresponsabilidade. Espera-se que o Ministério Público examine seriamente a responsabilidade dos dirigentes da Infraero por homicídio culposo, com a liberação indevida para o tráfego aéreo das mal acabadas pistas do aeroporto de Congonhas.’
Ele mudou de opinião? Não sei. O que leva pessoas que aparentemente recusam o comportamento de torcida organizada a afirmar, categoricamente, o detalhe de uma ‘liberação indevida’ de pista? A imprensa, sem dúvida, mas não somente ela. Possivelmente, são os erros e omissões no gerenciamento da crise aérea, que já dura 10 meses. Ou ainda indícios de superfaturamento nas obras de aeroportos, um ataque aos contribuintes e um bofetão na cara da sociedade. Mas a miopia lulista não vê isso e os flagrantes de anti-petismo na imprensa alimentam essa doença.
Essas torcidas organizadas, lulistas e antilulistas, querem ganhar no grito. São chatíssimas, insuportáveis e a imprensa está contaminada por elas, sobretudo pelos integrantes do segundo time: existe hierarquia nas redações, para quem não sabe. O poder de ambas as torcidas, registre-se, é distinto. Agenda muito mais quem tensiona a partir da imprensa. Mais numeroso é o grupo que se insurge contra a mídia grande, independentemente dos fatos que se apresentam. Se é contra o governo do presidente Lula, a grita é alta. Trata-se de um processo de venezuelização alimentado pelos dois extremos.
Dever da imprensa
É legítimo duvidar e questionar governos, ainda mais no caso em tela. Se já fizeram tantas – como a ampliação da área de embarque de um aeroporto que, diziam todos os especialistas, precisava reduzir pousos e decolagens (o que, diz-se, será feito agora) – não seria exatamente uma surpresa terem cometido uma ‘liberação indevida’ pela pressão das companhias aéreas. A omissão da Infraero nas horas seguintes à tragédia, aliás, segue indesculpável.
No momento que encerro esse artigo, sequer informações sobre a caixa-preta foram divulgadas. Prudência e caldo de galinha, talvez, passem a nortear opiniões que até agora foram guiadas pela obra de ficção do jornalista García Márquez. Autocrítica? Não, nem todos os jornalistas têm. Isso é coisa para profissionais honestos, como Luiz Weis, capaz de reconhecer a existência de fatos novos. Ou Alberto Dines, que sistematicamente é atacado pela torcida lulista e antilulista, conforme a opinião que expressa.
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Jornalista, Porto Alegre, RS