Duda Mendonça, em 2002, produziu um ‘Lulinha paz e amor’, de bem com a vida. Ganhou. Em 2006, o candidato Lula esqueceu as covinhas no rosto e, com olhos injetados, foi obrigado a recorrer à indignação. Caso contrário naufragaria na onda de acusações e escândalos.
O surpreendente resultado do primeiro turno na semana passada obrigou o candidato-presidente a adotar um novo figurino: o do estadista sofrido e sazonado, reflexivo, capaz de contornar momentos difíceis.
Os marqueteiros de Alckmin não deixaram: no domingo (8/10), na TV Bandeirantes, o candidato da oposição partiu para o ataque antes mesmo de esquentar os motores. Aquele que era classificado como anódino, produtor de platitudes, apareceu com inesperada veemência, próximo da incivilidade.
Palavras cifradas
As duas transmutações sinalizam um mesmo fenômeno: o marketing político conseguiu produzir em nossas paragens o milagre de liquidar os arquétipos, dar sumiço aos temperamentos, evaporar personalidades, estilos e até mesmo carismas.
Em certos ambientes políticos, sobretudo nos insuficientemente politizados, candidatos passam a ser meros produtos com conteúdos e embalagens rapidamente conversíveis e adaptáveis às necessidades e oportunidades do momento.
Se vivesse hoje, Winston Churchill (1874-1965) teria de se conformar com as pesquisas de qualidade e concordaria em afinar a sua famosa retórica ao timbre cockney do povão? Quem responde é o seu remoto sucessor, Tony Blair, que ao capitular diante dos índices de rejeição e anunciar a disposição de não mais disputar a chefia do governo fez uma discurso digno do próprio Churchill.
Na política britânica também pontificam marqueteiros (spinn doctors), porém os partidos são vertebrados e os políticos têm vocações e convicções. A hegemonia do marketing no processo político brasileiro só pode ter uma explicação: não há efetivamente um processo político. O que existe é uma disputa antropofágica pelo poder. Troca de guarda entre tribos de canibais devidamente caracterizados pelos respectivos carnavalescos. Não muito diferente de uma escola de samba.
Ao arrebatar o direito de exibir o primeiro debate entre Lula e Alckmin, a TV Bandeirantes pretendia organizar um espetáculo capaz de marcar de forma decisiva a disputa eleitoral (à Globo caberá encerrar o ciclo, na véspera do 2º turno). Para isso, a rede anfitriã concebeu um formato capaz de manter o telespectador acordado num modorrento fim de domingo. As intervenções foram curtas (dois minutos), seguidas de réplicas e tréplicas. Comprometidos com esta fragmentação, e para chamar a atenção da audiência, os debatedores só poderiam apelar para trancos, numeralogia e tiradas de efeito.
Não deu outra. Choveram números e estatísticas, siglas e palavras cifradas com pouquíssimo contrapeso dialético. A numeralha despejada para mostrar o preparo e calibre do candidato acabou inútil. Lula enguliu três zeros numa citação e Alckmin agarrou-se ao preço do Aerolula. Se houvesse mais tempo para criticar e defender o número de ministérios, o eleitor sairia melhor servido.
Briga de comadres
A divisão do programa em cinco blocos (para aumentar o número de inserções comerciais) cansou a audiência e cansou os beligerantes. Quem conseguiu causar suspense e provocar um mínimo de aprofundamento foram os jornalistas do grupo Bandeirantes. Que só tiveram acesso a um bloco.
Os marqueteiros e assessores das duas campanhas não foram pegos de surpresa: aprovaram o formato, sabiam de antemão que seria impossível oferecer um mínimo de idéias e projetos de governo. Queriam guerra, estavam a fim de revanches. O faroeste e o friforó [antiga corruptela de ‘free for all’] ainda dominam o imaginário dos nossos publicistas e publicitários.
Com estas considerações fica parecendo ao leitor que este observador discorda da acalorada discussão sobre o Dossiêgate. Esta é uma discussão de capital importância, não pode ser ignorada (e certamente vai estender-se além da posse do próximo presidente, inclusive no tocante ao papel da revista IstoÉ), mas estreitado naquele formato, mesmo um assunto destas proporções rendeu, no máximo, estocadas. Nenhuma delas mortais.
Com 45 segundos para formular uma pergunta, o candidato Alckmin não poderia mostrar ao telespectador as dimensões do episódio, o mesmo aconteceu com Lula quando precisou oferecer um background de informações preliminares para armar seu contra-ataque.
Se a Band pareceu excessivamente preocupada em obter altos índices de audiência para um evento de interesse público, a TV Globo não escondeu o seu desinteresse em valorizá-lo. O debate foi manchete de todos os grandes jornais do país no dia seguinte (inclusive do Globo), freqüentou as rádios ao longo do dia inteiro (inclusive na CBN), estava nos portais e nos blogs da internet, mas não ‘repercutiu’ no principal telejornal brasileiro, o Jornal Nacional da TV Globo.
Isso não é manipulação, é paroquialismo. Briga de comadres. Faz parte desse colossal espetáculo cada vez menos político e cada vez mais circense, no qual o futuro do país é decidido em corridas de bigas quebradas e lutas entre gladiadores assustados.
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Os presidenciáveis na arena
[Excerto de comentário para o programa radiofônico do OI de 10/10/2006]
Boas notícias depois da decepção do debate da Band: a Folha de S.Paulo anunciou ontem [9/10] a sabatina com os presidenciáveis nos próximos dias 18 e 19. Um de cada vez. O Globo e Estado de S.Paulo não vão querer ficar atrás e certamente vão organizar as suas sabatinas.
Este tipo de debate com jornalistas pode render respostas longas, idéias mais elaboradas e programas de governo concretos. O debate tipo combate, como o organizado pela Band, rende muito pouco para o eleitor e leitor exigente.
Diante de jornalistas experimentados e independentes, os candidatos não conseguirão tergiversar fingindo que não entenderam a pergunta. Além disso, a sabatina é publicada, pode ser comparada com a sabatina de outro jornal. Essa é uma contribuição verdadeiramente jornalística de parte da imprensa onde não sobra muito lugar para o espetáculo.