Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Deformações jornalísticas

Nos esporádicos eventos que exigem apresentações (entrevistas, por exemplo), é comum haver referências à minha atuação como ‘jornalista’. Dentre todas as alcunhas imerecidas, esta provoca mais desconforto, porque não tenho formação na área, jamais pretendi exercer a atividade e tampouco acredito exercê-la. Tento desfazer o equívoco, mas os interlocutores argumentam que minhas colaborações regulares para veículos informativos me inserem na seleta categoria.

Discordo, embora lisonjeado. Furtar um grau superior reconhecido oficialmente soaria desonesto com o distinto público. Também alimento a ilusão (ultrapassada e romântica, admito) de que jornalistas profissionais possuem compromisso com a objetividade, a veracidade e o interesse coletivo. Meus textos, ao contrário, são demasiado opinativos e diletantes para tamanhas pretensões.

Abdicar da qualificação não significa, entretanto, aceitar seu viés legitimador. Ninguém precisa de diplomas para coletar informações, cultivar análises e reproduzir raciocínios legíveis. Canudos de papel não materializam vocações ou talentos em qualquer afazer criativo.

Na verdade, considerando a qualidade média dos serviços em questão, a própria formação universitária precisa ser repensada com urgência. Uma preocupante parcela dos jovens jornalistas brasileiros carece de rudimentos teóricos que deveriam ser exigidos de qualquer cidadão, ainda mais de alguém que pretende ‘formar opiniões’. Supondo-os diplomados, e quase todos são, chegamos a nos perguntar como conseguiram completar o colegial e passar num vestibular, antes mesmo da formatura.

Garantia de qualidade e competência

Não me refiro à imprensa de província (amiúde injustiçada), nem às crônicas esportivas e policiais, recheadas de cacoetes divertidos. Até respeitados veículos de abrangência nacional sucumbem a escrutínios rigorosos. Os erros de gramática e concordância aparecem com lamentável freqüência. Amiúde surge o clássico ‘dar a luz a’ e uma constelação de cacofonias no estilo ‘nunca ganha’. E os lugares-comuns se transformaram em dialeto particular, subproduto inócuo do discurso publicitário.

Há também demonstrações constrangedoras de ignorância acerca dos assuntos abordados. As besteiras com vocabulário jurídico e científico dariam livros. Em recente matéria sobre os descalabros do Judiciário, alguém incluiu o Tribunal de Contas, órgão autônomo, auxiliar do Legislativo. Acabo de ouvir uma repórter mencionando o Ministério ‘do’ Público, na mesma rádio onde outra relatara os casos de gripe suína no estado americano de ‘Órrio’. Claro, ninguém precisa ser poliglota, mas um ‘Bob Dáilan’ ou um ‘Reimbáude’ já são demais em qualquer contexto, não apenas cultural.

Talvez devêssemos tolerar deslizes textuais ou de conteúdo específico, tendo em vista as vicissitudes do ofício. E toda generalização seria tola, especialmente num universo tão amplo quanto diversificado. Mas algumas ponderações críticas se fazem necessárias porque parte da categoria mobiliza-se para defender a exigência do diploma justamente como garantia de qualidade e competência. Corporativismos à parte, será que as faculdades existentes atingem esses nobres objetivos?

Crise inédita de credibilidade

Um sério problema da formação acadêmica jornalística é que sua inviável pretensão à universalidade resulta em amplo superficialismo. Não há como especializar o formando em todos os assuntos de interesse público. Mesmo em espaços ‘apenas’ informativos, certas pautas demandam exatidão e profundidade inacessíveis a curiosos ocasionais. Privar o público de esclarecimentos técnicos pode acarretar prejuízos irreversíveis. A imprensa não é nem pode ser feita apenas por jornalistas.

Não que a decisão do STF traga novidades às relações laborais. Sob arengas liberalizantes ou legalistas de patrões e empregados, dissemina-se a adoção consensual de estratégias para driblar a legislação trabalhista. A tendência fatalmente inviabilizará as regulamentações profissionais. Aliás, funcionários que se transformam em Pessoas Jurídicas não podem reclamar de precariedade, amadorismo ou perda de direitos.

E as empresas continuarão preferindo candidatos diplomados. Além de conhecer jargões e técnicas básicos, eles disputam chances num mercado de trabalho já suficientemente competitivo, que pressiona os iniciantes a sufocar abstrações éticas para satisfazer os desmandos dos superiores. Assim estará garantido o exército de pobres diabos que se acotovelarão para inventar uma futura Escola Base, outro casal Nardoni, os novos pugilistas cubanos.

Se há qualquer ameaça ao futuro do jornalismo brasileiro, os interessados podem procurá-la numa crise inédita de credibilidade, nascida nas próprias redações e alimentada com a cumplicidade de todos os envolvidos, principalmente os tais diplomados. Mas será impossível compreender a decadência roçando apenas sintomas aparentes e momentâneos, sem dissecar sua natureza essencialmente política.

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Historiador e escritor, Campinas, SP