O Iraque tem armas químicas e por isso vai sofrer intervenção das Nações Unidas, capitaneadas pelos Estados Unidos. A informação sobre o arsenal lesivo à humanidade, seguido da justificativa de invasão pelas forças da Otan, foi estampada exaustivamente com destaque nas páginas dos jornais de maior tiragem e circulação e nos noticiários das rádios e TVs de várias partes do planeta.
País invadido, população massacrada, patrimônios culturais destruídos, Saddam Hussein enforcado num porão, território controlado pelas forças de ocupação… e até agora nenhuma arma química apareceu.
Em 30 de outubro de 1938, às oito horas da noite da tradicional brincadeira do dia das bruxas nos Estados Unidos, o cineasta, escritor, ator e produtor Orson Welles deu início à transmissão dramatizada do livro A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, pela estação de rádio CBS. Marcianos invadiam a Terra e as chances de sobrevivência dos humanos não ultrapassavam pouco mais de uma centena. Os ouvintes que não estavam sintonizados no momento em que Welles informou tratar-se de ficção, entraram em pânico, propagado como rastilho de pólvora pelos quatro cantos do país. E os Estados Unidos viveram uma invasão de mentira a partir do sentimento público de que era tudo verdade. Foram apenas 40 minutos de traquinagem, suficientes para confirmar o poder de captura do imaginário e dos sentidos coletivos pelos meios de comunicação de massa.
A ideologia da desregulamentação
No Brasil, em 17 de junho de 2009, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, disse que ‘a profissão de jornalista não oferece perigo de dano à coletividade’. O argumento foi usado na condição de relator do projeto que acabou com a exigência do diploma para exercício da profissão de jornalista, aprovado por 8 votos a 1.
O que essa decisão suprema vai acarretar para a categoria de jornalistas? A estagiária Camilla Lopes, 28 anos, há dois trabalhando em redação de jornal e próxima de se formar, está frustrada e desiludida. Primeiro, porque pagou a faculdade ‘com muito sacrifício’. Segundo, porque ‘jornalista agora é nada, fomos dizimados como categoria, e hoje já trabalhamos por um pão’, completa a colega.
As preocupações de Camilla não parecem infundadas. Não se trata de dizer que é o diploma de jornalista que dá qualidade à profissão, nem que as faculdades vão acabar por causa disso. O que está em jogo é que o diploma é que dava corpo à categoria como tal, desde que a lei 83.284 de 13 de março de 1979 instituiu juridicamente esse documento como o meio de obtenção do registro profissional junto ao Ministério do Trabalho. Entretanto, essa é uma questão que pode ser superada voltando-se, inclusive, ao que era antes. Tinha direito ao registro quem apresentasse matérias assinadas publicadas em jornais. Mas hoje já não é mais possível lançar mão dessa experiência para a consolidação do jornalista como categoria em razão da multimídia.
Será necessário, então, a quem interessar, pensar o modo mais adequado de salvar uma categoria que foi efetivamente atropelada pela ideologia da desregulamentação.
A violência que vem por aí
As empresas vão continuar a contratar, sim, os formados nas faculdades de Comunicação. Por salários miseráveis. Esses recém-formados vão carregar o piano do dia-a-dia e os que se mostrarem talentosos na arte de defender os interesses empresariais ou de falar bobagem com excelente texto vão ser promovidos a bons salários, com perspectivas de chegar aos postos de chefia. No mais, serão contratados a peso de metal os especialistas, mestres e doutores que bem traduzem a opinião e os desejos dos donos dos veículos de comunicação.
Mas enquanto Camilla é uma materialidade e o capitalismo na sua forma econômica e financeira também, uma pulsão atual, para lá de moderna, só percebida por sensibilidades e mentes do estofo de um ministro Gilmar Mendes e de acadêmicos de ponta, chama a atenção do resto para o ‘capitalismo cognitivo’. Nessa chave, a luta de classe travada nas bases do real é considerada conservadora. O mundo do conhecimento está acima, paira sobre essas insuportáveis e medíocres preocupações relativas ao comer, morar, vestir, calçar, deslocar, estudar e adquirir conhecimento.
Botando de lado a ironia motivada pelo enfado diante de tanta pretensão, o fim do diploma deixou os jornalistas sem categoria. Mas, sem precisar lançar mão do ‘capitalismo cognitivo’ no seu discurso sobre as ‘novas formas de luta’, mais do que nunca o sindicato dos jornalistas vai precisar saber se articular para enfrentar a violência ideológica que vem por aí, feita concreta nas relações de trabalho. Tudo enquanto o capitalismo cognitivo salta lépido sobre uma profissão que já foi assunto para Balzac.
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Jornalista e doutora em Semiologia pela UFRJ