O Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP) promoveu em outubro um ciclo de seminários sobre as mudanças no mundo do trabalho dos jornalistas. Em três noites, o grupo liderado pela professora Roseli Fígaro reuniu convidados para discutir tendências e estudos que tentam perfilar uma categoria que, inacreditavelmente, pouco se conhece. Nem a indústria, a academia ou os sindicatos sabem ao certo quantos são, como são e o que pensam os jornalistas.
Uma ampla pesquisa está em curso para determinar os contornos desse perfil, o que pode ajudar muito na compreensão dos rumos da categoria e de que forma está sentindo as transformações no campo. Um dos debatedores do evento na ECA foi justamente o professor Jacques Mick, coordenador do estudo que tem patrocínio da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e apoio da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor).
Enquanto os resultados não são totalizados, é preciso atentar para as referências disponíveis. Durante o ciclo, a professora Roseli Fígaro apresentou os resultados da pesquisa “O Perfil do jornalista e os discursos sobre o jornalismo: um estudo das mudanças no mundo do trabalho do jornalista profissional em São Paulo”, realizada entre 2009 e 2012 e concentrada no maior mercado profissional do país. O estudo se valeu de questionários, entrevistas em profundidade e grupos focais, trabalhando com três grupos de participantes distintos, extraídos da base de dados do sindicato local, de uma representativa empresa de mídia nacional, de redes sociais e de free-lancers.
Jornalismo e sociedade
Para além dos aspectos quantitativos e do esforço do grupo em sistematizar os dados dispersos, o que me chamou a atenção foram algumas das falas de jornalistas colhidas nos grupos focais. Esses depoimentos lançam luzes para algo que considero bastante preocupante entre os jornalistas: um afrouxamento do ethos profissional, uma flexibilidade nos valores que pode, sim, comprometer não só as condutas pessoais mas fragilizar o jornalismo como prática social. Reproduzo algumas dessas falas:
>> “Hoje a maioria dos repórteres faz… A maioria não, mas a grande parte faz algum trabalho de publicidade, tipo, de gerar conteúdo para publicidade, que é um saco, uma merda, mas estão pagando muito melhor que [o] jornalismo, então essas coisas valem a pena fazer como frila.”
>> “Um menino, de 20 e poucos anos, é exatamente esse produto que colocam no mercado. Um menino que foge da discussão crítica da ética, do jornalismo, porque não tem… Ele saiu da escola, ele não teve essa formação, pode até ter tido uma noção, mas vai pro mercado e entra numa neurose de patrão que não tem…”
>> “…vai cair naquela velha discussão sobre se o jornalista precisa ou não do diploma. Eu acho, por exemplo, que um médico é muito mais hábil [para] escrever uma matéria sobre medicina do que eu. Eu acho que às vezes um político é muito mais competente para escrever sobre política do que eu, porque se eu tiver que escrever uma matéria sobre política eu vou ter que varar uma semana para estudar política, e eu não sei nem o que é o PMDB [e] o PSDB, para mim muda uma muda e olhe lá, e para por aí para mim sobre política.. Então, se você falar pra mim ‘você quer fazer uma matéria sobre política ou eu posso dar para o Maluf escrever?’, meu, passa para o Maluf.”
O primeiro trecho aponta para a naturalização de uma prática que é, historicamente, avessa ao jornalismo. Os principais manuais, os cânones, os valores de base da profissão se apoiam no modelo Igreja-Estado, que insiste em separar com nitidez os departamentos editorial e comercial de uma empresa jornalística. Preventiva, essa distância auxiliaria os jornalistas a não ficarem atrelados aos compromissos comerciais da empresa para a qual trabalham, criando condições de uma independência maior no trato das notícias. Marcadamente generalizante, o depoimento espalha para um universo grande (e desconhecido) uma prática que contraria as funções do jornalismo. O perigo aponta para o tempo presente.
O segundo trecho citado manifesta uma crítica às novas gerações de jornalistas que chegam ao mercado despreparadas não tecnicamente, mas na dimensão deontológica. Para o participante da pesquisa, as escolas de jornalismo não têm conseguido formar profissionais críticos e éticos, mas sim despejado no mercado de trabalho pessoas adestradas, temerosas e complacentes com eventuais intromissões dos seus superiores hierárquicos. Intervenções, inclusive, que poderiam vir na contramão dos interesses que devem orientar o jornalismo e suas práticas. Agora, o perigo também aponta para o futuro.
A terceira fala evidencia um flagrante descolamento do personagem com aquilo que lhe caberia profissionalmente fazer. Pode-se perceber um grande estranhamento entre a conduta jornalística e a prática cotidiana, como se o repórter não mais sentisse “pertencimento” sobre parte do seu trabalho, como se aquilo lhe escapasse. Estaria por trás desse desligamento a sensação de que não se é capaz ou competente para executar a tarefa. Não estaríamos preparados para fazê-lo, e diante disso, melhor abrir mão também de um dever profissional…
Como antecipei, as falas são preocupantes pois externam sentimentos e entendimentos que fragilizam o ethos jornalístico. A sensação de incapacidade técnica, a formação precária ou insuficiente, a confusão valorativa e um certo afrouxamento ético contribuem para um terreno fértil para a negligência profissional e a debilidade deontológica. Um cenário que tende a neutralizar preocupações sobre a conduta de repórteres e editores, permitindo um desvio perigoso das funções públicas a que o jornalismo se consagrou. Interesse público, diversidade de versões, não-parcialidade, fidelidade aos fatos e outros valores ficam em segundo plano, colocando em risco não só uma profissão e uma categoria, mas principalmente as relações que as atam às demandas da sociedade. Sem justificativa social, sem papel público, o que pode sustentar eticamente o jornalismo?
No dia a dia
As preocupantes falas conduzem nossos olhares para as escolas de jornalismo e para como é urgente reforçarmos o ensino de ética profissional. Os cursos superiores podem “ensinar ética”? Os estudos da área não demonstram que isso seja possível ou que tal aprendizado seja restrito a esse habitat. Entretanto, as escolas são contextos privilegiados para o incentivo da reflexão ética, para a discussão sobre a deontologia dos profissionais da informação.
O debate, a crítica e a autocrítica são passos fundamentais para a cristalização de alguns valores no “cinturão moral” desses jovens jornalistas, e para o acionamento de um ânimo permanente de revisão desses valores. Mas não só. É demasiado esperar que faculdades e universidades em um ou dois semestres consigam “formar” eticamente seus alunos. Tal processo é mais complexo, longo e – ainda bem! – permanente.
Assim como os jornalistas não podem mais deixar de estudar, aprender e intensificar seus preparos técnicos ao longo de suas vidas, também não devem relegar apenas aos anos universitários a sua formação deontológica. O cotidiano ensina todos os dias; as redações são ambientes ricos e dinâmicos para se debater dilemas éticos; os colegas de profissão podem (e devem!) ser interlocutores diante de tomadas de decisão, e também podem atuar como modelos de conduta.
Se são alarmantes algumas das falas colhidas na pesquisa pelo Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho, elas também são reveladoras de uma agenda de ações. Os dados que a pesquisa Fenaj-UFSC-SBPJor persegue podem dar um relevo nacional da categoria, mas trará certamente informações das suas insuficiências. As frequentes transformações tecnológicas que dinamizam o jornalismo não podem ser compreendidas sem os planos da cultura e da ética. A cada mudança de suporte ou equipamento, mudamos nossos hábitos culturais e nos imputamos novos desafios e questões de conduta e comportamento. Nossos valores são colocados à prova, e somos reconvidados a discuti-los.
A ética não está confinada aos livros ou aos compêndios. Ela está nas pessoas, no que pensam e sentem, e como agem em relação às outras. Seja a ética num contexto mais geral, seja num mais restrito, como o profissional. O que me pareceu mais tocante no evento da ECA-USP é a urgência de reforçarmos ambientes e ocasiões para a formação ética dos jornalistas, jovens e mais experientes. Uma voz qualquer martelava a minha cabeça: “É a ética, estúpido! É dela que precisamos falar mais!”
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[Rogério Christofoletti é professor da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do objETHOS]