Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Diploma, acessório ou necessidade?

O debate sobre a obrigatoriedade da formação universitária específica para jornalistas tem provocado reações inesperadas e esquizofrênicas no meio jornalístico: profissionais calejados e progressistas, que defendem o jornalismo participativo da web, agora concordam com a exigência dos diplomas: apenas jornalistas formados podem lidar com conteúdos gerados através da internet “por pessoas, e não por editores tradicionais”, atesta o professor e jornalista Gerson Luiz Martins.

Ele assegura em artigo para o site da Fenaj e reproduzido neste Observatório(20/12) “que o conteúdo da internet não é jornalismo, por mais que possa em muitos momentos se constituir em informação cidadã”. Ele crê que somente um jornalista diplomado pode organizar a enorme massa de informação da web e que somente a intervenção deste poderá converter a abundância caótica dos conteúdos online em notícias para a sociedade. É um argumento sólido, mas afirmar que “conteúdo de internet não é jornalismo” é deixar de reconhecer o impacto da revolução digital na imprensa, virtual ou impressa. E estreitar a definição da profissão com uma visão precipitada. Conteúdo de internet pode ser jornalismo ou não. Depende do tratamento que for dado a ele. Depende de edição.

Por outro lado, jornalistas que espumam de raiva quando se fala em regulação da mídia, que acreditam que lei e imprensa são incompatíveis, agora apoiam abertamente a participação de profissionais sem formação específica na profissão. Ou mesmo sem formação universitária alguma. E pedem apoio legal para sua causa. As duas posições antagônicas trazem suas próprias contradições. A reintrodução do debate, a partir da aprovação do Senado da não obrigatoriedade do diploma, trouxe à tona muitas questões importantes. A discussão deve continuar, até esgotar todas as dúvidas que pairam sobre a obrigatoriedade legal da diplomação universitária e as supostas garantias democráticas e éticas que dela seriam originadas.

O nível das escolas. E dos patrões

A questão da obrigatoriedade da formação universitária específica não é coisa simples e deve ser mais debatida pelos profissionais e pela sociedade. Sim, pela sociedade também. Não só jornalistas diplomados produzem informação, hoje em dia. Muitos profissionais sem diploma escrevem e publicam notícias de grande relevância jornalística. E já o fazem há muitos anos. O tema não é fácil e não aceita soluções simplistas do tipo “sou contra”, ou “a favor”. Até porque o Projeto de Emenda Constitucional abre brechas para não-jornalistas dentro da profissão. Desde que tenham diploma de pós-graduação em jornalismo.

A grande imprensa parece aceitar bem a ideia dos “sem-diploma”. Gianni Carta, escrevendo pela CartaCapital (1/12), fez uma retumbante defesa do jornalismo “sem-diploma”. Para ele, diploma de jornalista é “bom para pregar na parede”. Ele explica em seu artigo que o jornalismo na Europa e Estados Unidos não demanda diploma de quem produz notícias como profissional. E que Andrew Marr, escocês e “jornalista de mão cheia”, não poderia exercer sua profissão no Brasil porque é formado em Letras. Marr, de 51 anos, foi editor do Independent e do Economist. Carta é um crítico da imprensa brasileira e das escolas que estão a formar os nossos jornalistas. Crê que estas não estão a formar bons profissionais e que a maioria dos formandos está destinada a trabalhar para a mídia ultraconservadora. Ele comenta:

“Os grandes diários brasileiros, com colegas com canudo de jornalista ou não, são ilegíveis. Por exemplo, um dos destaques da Folha de S.Paulo na quinta-feira (01/12) é que a apresentadora Fátima Bernardes ‘deve deixar a bancada do Jornal Nacional’. Ela estaria ‘cansada’.”

Eis a questão: o nível das escolas de Jornalismo é baixo, ou seriam os patrões que limitam o trabalho de apuração dos repórteres – e principalmente dos colunistas? Seriam as duas coisas? Como dizia o grande jornalista italiano Enzo Biagi (outro que não tinha diploma de jornalista): “Meus únicos patrões sempre foram meus leitores.”

Retrocesso amparado no corporativismo

O editorial do Globo Online de 7/12 atribui a proposta de obrigatoriedade dos diplomas a interesses de “corporações sindicais com raízes no serviço público”. O comunicado do Globo explica também que as redações precisam de maior diversidade de pontos de vistas de profissionais qualificados. Se ficarem limitadas a só contratarem jornalistas, vão perder “a colaboração de especialistas com outras formações”. A enorme variedade de temas abordados pelos jornais demanda, além dos jornalistas, outros especialistas, prega o editorial. Mas o fundamento da argumentação do editorial do Globo é que o “PEC dos diplomas” viola a liberdade de expressão e impressão.

Não é o que pensa Beth Lima, ex-presidente da Fenaj, a Federação Nacional de Jornalistas. Ela acredita que o argumento mais fraco contra a obrigatoriedade dos diplomas é justamente este: sua exigência representaria um ataque à liberdade de expressão. Ela crê que qualquer pessoa pode expressar-se em qualquer mídia. Os limites impostos são provenientes “da própria lógica temporal do jornalismo e nos projetos político-editoriais”. Ou seja, o que não é publicado não o foi por razões de tempo, espaço ou por determinações políticas e editoriais. Não é possível publicar tudo, no fim das contas. Não há espaço, tempo, ambiente político ou editorial disponível para isso.

A autora apresenta também, como exemplo de liberdade de expressão no jornalismo, o grande número de matérias publicadas por outros profissionais e especialistas de nível superior. Mas não diz que eles não publicam como jornalistas. E se a legislação for aprovada, o que será da participação deles? Serão eternos colaboradores, mesmo que já tenham abandonado suas carreiras pelo jornalismo há décadas? Serão impedidos de publicar notícias, por não terem diploma de jornalista? Isto é inaceitavelmente burocrático para o jornalismo do século 21. Um retrocesso amparado no corporativismo.

Lei não define produção de informação

As associações de classe, como a Fenaj, defendem a obrigatoriedade dos diplomas. E também têm ótimas razões: “a qualidade, a ética e a democracia na informação”. E a capacitação específica ainda proporcionaria aos jornalistas maior independência ao profissional, afastando o poder manipulador e maligno dos donos de empresas jornalísticas, deixando o profissional menos dependente das exigências e interesses dos proprietários de jornais. O argumento é bastante pueril. Não creio que formação universitária específica possa estabelecer paridade entre jornalistas e donos de empresas jornalísticas. Esta é uma crença ingênua.

E quanto à qualidade da informação, a ética na produção das notícias e a democratização da informação, estas não são monopólio das escolas de Jornalismo. Os jornalistas não são mais a vanguarda da democratização da notícia. Agentes da liberdade de expressão, como o WikiLeaks e o Public Intelligence, agora dividem este papel com a imprensa. A qualidade das notícias e o exercício ético da profissão podem ser ensinados dentro de uma grade curricular de um curso de Jornalismo. Mas podem ser igualmente distorcidos pela prática profissional, seja pelo estilo de vida do jornalista ou pelos interesses dos grandes jornais. A noção do que é ou não de interesse jornalístico também não pode ser transformada em fórmula mágica que ilumina os caminhos dos produtores de notícias automaticamente, segundo critérios paramétricos fixos e imutáveis. Algumas pessoas sabem encontrar notícias. Outras tropeçam nelas, mas não sabem ou não podem reconhecê-las.

Outra ilusão é acreditar que apenas os diplomas funcionam como garantias à integridade da profissão. Esta proposição obscurece o papel dos sindicatos e outras organizações de classe na defesa da profissão. A maior parte do mundo ocidental garante a probidade da profissão através destas associações, e não com diplomas. A obsessão dos brasileiros com titulações escamoteia a vergonha de um passado recente iletrado e reflete a herança do senhorialismo de uma sociedade impiedosamente hierarquizada. Onde quem não é pobre é “doutor”. Com ou sem diploma.

O Le Monde Diplomatique(editado por Silvio Caccia Bava, sociólogo) apresentou, em sua edição deste mês, uma enquete sobre a posição dos leitores sobre o assunto. A pesquisa apresenta a seguinte interrogação:

“Qual sua opinião sobre o projeto de lei que restitui a exigência do diploma para o exercício da profissão de jornalista?

Aos leitores são oferecidas quatro opções:

1) a favor, contribui para um jornalismo de qualidade;

2)contra, pois impede a liberdade de expressão;

3)contra, prejudica a democratização da comunicação;

4)indiferente, lei não define produção de informação.”

A enquete conseguiu escapar do reducionismo do contra versus a favor. Do sim ou do não absoluto. E ainda introduziu uma consideração fundamental para iluminar a querela sobre a necessidade (ou não) de formação universitária específica para o exercício do jornalismo: “a lei não define produção de informação”. E se não há consenso neste debate, creio que não há ninguém que concorde que a produção de notícias deva ser definida por lei.

***

[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]