Carlos Brickmann, em texto intitulado “Homofobia e chatice – Olha a cabeleira do Zezé”, publicado na edição 677 do OI, rubrica Circo da Notícia, em 17/01/2012, se dedica a opinar sobre o que lhe parece uma tendência atual – se estaria a ver manifestação discriminatória em face da orientação sexual de forma intensamente generalizada.
O jornalista, que se refere à homofobia como “discriminação racial” (?!), se insurge contra um artigo que também curiosamente não identifica, preferindo ao seu autor fazer referência como “um desses intelectuais com gavetas cheias de diplomas e uma cabeça vazia de ideias e raciocínio”. O artigo incógnito, ainda segundo o jornalista, criticaria o estilo estereotipado de homossexual (“a bicha louca”) veiculado no folhetim em cartaz na Rede Globo e também o ator que o representa, Marcelo Serrado, por haver declarado não desejar que sua filha de sete anos visse na televisão um beijo entre dois homens. Brickmann se insurge contra a conclusão do autor criticado e não declinado: “para o professor-mestre-doutor-sabe-tudo, também é homofobia” [a posição do ator quanto ao caráter inapropriado de um beijo entre dois homens para a sua filha de sete anos].
Para fundamentar sua tese de que andam a exagerar nas denúncias de discriminação aos LGBTs, o jornalista também traz dois argumentos. O primeiro, que o personagem construído pelo ator está de acordo com o modo que foi concebido pelo seu autor, o jornalista e escritor Aguinaldo Silva. No segundo, Brickmann sustenta que o fato de Aguinaldo haver participado do conselho editorial do jornal Lampião da Esquina (1978-1981), um dos eventos fundadores do movimento homossexual brasileiro, ainda em contexto do regime de exceção, lhe proporciona imunidade em relação a suas atitudes em relação à homossexualidade. Em outras palavras, o jornalista entende que o simples fato de Aguinaldo haver atuado da edição desse jornal o coloca acima de quaisquer questionamentos quanto aos seus posicionamentos em relação às homossexualidades.
Teses no movimento social
Privada pelo jornalista de conhecer o artigo criticado e tirar minhas próprias conclusões, trago alguns comentários sobre esse modo singular de argumentação empregado por Brickmann em seu texto. O primeiro deles é o fato – contrário à elementar noção do contraditório e da crítica intelectual – de criticar um autor e seu texto mantendo o seu nome e o título do trabalho em causa ocultos. Não é sustentável a crítica que não permite ao criticado o direito de resposta e ao leitor o conhecimento sobre o que e de quem se trata. O segundo é o uso da desqualificação do autor, não nominado, como recurso argumentativo. E não se diga que o jornalista teria “poupado” o autor com o anonimato.
A desqualificação do autor como forma de refutação às suas teses é recurso que, para dizer o mínimo, contraria a regra de justiça, segundo a qual sujeitos iguais devem merecer o mesmo tratamento. O jornalista busca por meio desse recurso, obter a adesão de seus leitores. Dado que o autor não merece respeito, suas opiniões devem ser ridicularizadas. O terceiro é em relação ao próprio argumento usado para desqualificar o autor. A premissa movimentada é o disseminado preconceito contra intelectuais acadêmicos (“professor-mestre-doutor-sabe-tudo”). Esquece o jornalista, entretanto, que ele próprio ocupa lugar semelhante, mais grave em tempos nos quais prevalece a tese corporativa a transformar ofício em profissão.
O quarto diz respeito à tese proposta de que uma atitude pretérita imunizaria o ator social em relação a toda a sua trajetória. Parece-me demasiado óbvia a sua fragilidade. Mais ainda por desconsiderar, no caso concreto, os posicionamentos adotados pelo autor em causa no interior daquele movimento social. Hipervalorizar o simples fato de participar da criação e realização de uma empresa jornalística e seu produto, desconsiderando suas teses no interior do veículo e movimento social, bem como suas teses no momento presente sobre as mesmas lutas (que, ao que parece, é uma das críticas do autor criticado), parece-me francamente insustentável.
Algumas canções “inocentes”
O quinto e último refere-se à acusação que faz de “chatice”. O fato dos setores historicamente desqualificados e descapitalizados estarem fazendo-se sujeitos da história e, em nome próprio, denunciando práticas contumazes de estigmatização e inferiorização, manifestas diuturnamente e sobre as mais comuns situações. De tão disseminadas essas práticas, e pela força mesmo do modo de funcionamento da dominação simbólica, são vistas como “inocentes”, “humorísticas”, sendo não raro introjetadas e defendidas por elementos dos próprios segmentos-alvo do processo de desqualificação – caso em que o escritor Aguinaldo Silva se enquadra (BOURDIEU, 2001 e 2007). Vejam-se os seus posicionamentos contrários à criminalização da homofobia e contrário ao tratamento do beijo entre pessoas do mesmo sexo de maneira equânime ao dispensado quando entre pessoas de sexos diferentes, por exemplo.
Para sustentar sua tese, o jornalista Brickmann abre seu texto com a citação de trechos de músicas muito populares que tratam de alguns desses segmentos – judeu e negro, no caso. Como toda escolha, esta também é arbitrária e atende a um fim determinado. A saber: comprovar a sua tese de que hoje as pessoas estão muito chatas, reclamando por qualquer coisa. Resulta, porém, emblemático o fato de a escolha do jornalista haver recaído sobre dois exemplos nos quais o modo estereotipado e desqualificante aparecem de forma, digamos, suave.
Seria legítimo indagar por que não usou, por exemplo, versos como “Quero uma mulher, que saiba lavar e cozinhar / E de manhã cedo me acorde na hora de trabalhar” (Emília, Wilson Batista e Haroldo Lobo, 1941); “A mulher quando é solteira / Seu perfume é água tônica / Depois de casada / É pior que a peste bubônica” (Lundu do baiano, Bolim Bolacho, autor desconhecido, 1905); “Minhas condições agora vou dizer … / Sou empregada sindicalizada / E quero férias, quero os meus papéis / Não sou nada exigente, trezentos mil-réis / Vou querer de ordenado, pago adiantado! …/ – Então eu lhe faço uma contraproposta: / É mais negócio eu me casar consigo / Que a senhora trabalha para mim de graça!” (Cozinheira grã-fina, Sá Roris, 1939); “O homem sacode a lapela, a poeira cai / A mulher quando perde a linha / Pode lavar que a mancha não sai” (Sacode a Lapela, Mirabeau e Jorge Gonçalves, 1955); “Essa mulher há muito tempo me provoca / Dá nela! Dá nela! / É perigosa, fala mais que pata choca / Dá nela / Dá nela! (Dá Nela, Ary Barroso, 1930); “Chegaste na minha vida / Cansada, desiludida / Triste, mendiga de amor / E eu, pobre, com sacrifício / … / Mostrei-te um novo caminho / … / Tudo porém foi inútil / Eras no fundo uma fútil / E foste de mão em mão / Satisfaz tua vaidade / Muda de dono à vontade / Isso em mulher é comum” ( Número um, Benedito Lacerda e Mário Lago, 1939); ou o primeiro samba-enredo da Portela, em 1932, quando ainda se chamava “Vai como pode”: “Lá vem ela chorando / O que é que ela quer? / Pancada não é, já dei! / … / Quer dinheiro / Dinheiro não há” (FAOUR, 2008).
Poderia, igualmente, ter-se utilizado de algumas das também “inocentes”: “Melô da galinha”, de Pedrinho da Flor, com alterações e interpretação de Dicró; “Rock das Aranhas”, de Raul Seixas, 1980; “Maria Sapatão”, de Chacrinha, 1981; ou o “Galo boiola”, de Gina Teixeira, 2006.
Como diz o dito popular, “Pimenta nos olhos dos outros, é refresco!”.
Referências:
FAOUR, Rodrigo. História Sexual da MPB. A evolução do amor e do sexo na canção brasileira. São Paulo: Record, 2008.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
_________. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
http://tvbrasil.org.br/observatoriodaimprensa/cme/110201_579.htm
http://tvbrasil.org.br/observatoriodaimprensa/cme/120207_626.htm
http://tvbrasil.org.br/observatoriodaimprensa/cme/120207_resumo_626.htm
http://letras.terra.com.br/dicro/202636/
http://www.esnews.com.br/entretenimento/826-entrevista-com-dicro
http://letras.terra.com.br/raul-seixas/75678/
http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/marchinhas/maria-sapatao.php
http://comerdematula.blogspot.com/2010/01/nao-homofobia-acoes-da-sociedade-civil.html
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[Rita de Cassia Colaço Rodrigues é pesquisadora, Rio de Janeiro, RJ]