Não serei o poeta de um mundo caduco./ Também não cantarei o mundo futuro./ Estou preso à vida e olho meus companheiros/ Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças./ Entre eles, considero a enorme realidade./ O presente é tão grande, não nos afastemos./ Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas./ Não serei o cantor de uma mulher, de uma história./ Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela./ Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida./ Não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins./ O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente. (Mãos dadas, Carlos Drummond de Andrade)
Este trabalho analisou o discurso de matérias dos jornais impressos brasileiros Folha de S.Paulo e O Globo na cobertura do Seminário Internacional Comunicações Eletrônicas e Convergência de Mídias, realizado em Brasília entre os dias nove e onze de 2010, a fim de identificar o funcionamento discursivo, estratégias e silenciamentos, que materializam as posições de ambos os veículos, que se mostram avessos à discussão acerca da proposta de um marco regulatório para a mídia brasileira. Para tanto, utilizou-se como referencial teórico-metodológico a Análise de Discurso (AD), tendo em vista que a compreensão do funcionamento discursivo revela a opacidade da linguagem: sua relação com a história e com a ideologia, cabendo à AD disponibilizar instrumentos conceituais que permitam uma leitura crítica. Concluiu-se que ambos os veículos que tiveram suas matérias aqui analisadas ocultaram aspectos fundamentais da questão em torno da regulamentação de mídia, ao passo que outros aspectos, aqueles que reforçam a posição ideológica dos jornais, contrária ao marco regulatório, foram enfatizados. Ocorreram, assim, distorções dos dois veículos na cobertura do evento em questão e a vinculação, sempre reforçada, do termo “regulação” à ideia de “censura”, silenciando o que envolve a questão da regulação de fato.
1. Introdução
Entre os dias nove e onze de novembro de 2010, realizou-se em Brasília o Seminário Internacional Comunicações Eletrônicas e Convergência de Mídias, evento promovido pelo Governo Lula com o objetivo de discutir a proposta do então ministro da Comunicação Social, Franklin Martins, de se aprovar um marco regulatório para a mídia brasileira e questões sobre a regulamentação (ou regulação) de mídia. Para debater o tema, estiveram presentes representantes de órgãos reguladores de diversos países, como de Portugal (Anacom e Entidade Reguladora para a Comunicação Social – ERC), da Espanha (Comissão de Mercado das Telecomunicações – CMT), do Reino Unido (Office of Communications – Ofcom), dos Estados Unidos (Federal Communications Commission – FCC) e da Argentina (Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual da Argentina – AFSCA).
Apesar da relevância do debate e do porte do evento, os grandes veículos de comunicação do país não o cobriram devidamente, na medida em que o espaço dispensado ao tema foi ínfimo nos jornais e, informações sobre as verdadeiras questões que a regulamentação da mídia envolve, omitidas. Tendo constatado isso, debruçamo-nos, neste trabalho, sobre a cobertura do Seminário feita por dois impressos brasileiros de circulação nacional, a Folha de S.Paulo e O Globo, a fim de analisar as matérias veiculadas pelos mesmos sobre o tema da regulação nos dias nove, dez e onze de novembro de 2010, período em que o evento foi realizado. Para tanto, utilizamos como referencial teórico-metodológico a Análise de Discurso (AD).
Nosso propósito, no pequeno espaço deste trabalho, é efetuar uma leitura discursiva das matérias publicadas nos dois jornais, que vêm, comumente, se mostrando avessos à discussão. Portanto, nosso objetivo passa longe de tentar compreender a posição dos jornais, que já é bem conhecida, mas entender o funcionamento discursivo, estratégias e silenciamentos, que materializam estas posições.
A pesquisadora Eni Orlandi (1999) estabelece a diferença entre três modos de leitura: a primeira e mais básica é a de decodificação, a segunda, a de interpretação, mas só a leitura de compreensão pode mostrar os mecanismos de construção dos gestos de interpretação. Ou seja, não se trata somente de interpretar os textos, mas compreender como estas interpretações são construídas, de que posições partem, quais os efeitos de sentido que se dão a partir dos dispositivos textuais.
A compreensão do funcionamento discursivo é útil porque revela a opacidade da linguagem: sua relação com a história e com a ideologia. O leitor comum dos jornais costuma atribuir à linguagem dos veículos o grau de transparência justificada ideologicamente: reflexo da realidade, espelho dos acontecimentos, objetividade. Cabe à Análise do Discurso, entre outras disciplinas, disponibilizar instrumentos conceituais para uma leitura crítica.
No primeiro capítulo, traçamos um breve histórico da legislação brasileira de imprensa desde o seu surgimento, contextualizando a discussão da regulamentação no Brasil e, num segundo momento, em outros países, apresentando alguns dos modelos de entidades reguladoras existentes em diversas partes do mundo.
No segundo capítulo, trabalhamos os aspectos teórico-metodológicos que embasaram a análise discursiva realizada: apresentamos os conceitos de formação discursiva (FD) e memória discursiva (MD), utilizados por Eni P. Orlandi, Maria Marta Furlanetto e Maria do Rosário Gregolin.
O terceiro capítulo consiste na análise de oito matérias jornalísticas que tratam do tema da regulação da mídia a partir, principalmente, da cobertura do Seminário Internacional das Comunicações Eletrônicas e Convergência de Mídias.
Este trabalho enquadra-se em uma das linhas de pesquisa, Mídia e Práticas Discursivas, conduzidas pelo orientador desta monografia.
2. Tematização: regulação da mídia
2.1. Discussão no Brasil
Embora a discussão sobre os limites e as funções das instituições de comunicação faça parte das leis brasileiras desde os tempos coloniais, foi somente na Constituição Federal de 1988 que a Comunicação Social foi tema de capítulo constitucional específico no Brasil. Como nos aponta Fernando Oliveira Paulino (2008, p. 66)[1], a operação de gráficas e a posse de livros eram ilegais no país antes da declaração da Independência, em 1822, e a entrada de grande parte dos livros era, então, feita clandestinamente. Mas o primeiro ato de censura institucionalizada se deu após a criação da Imprensa Régia, em 1808.
Gráficas seriam implantadas, por iniciativa oficial, com a chegada da família real em 1808 e a criação, em 13 de maio de 1808, da Imprensa Régia (posteriormente denominada Imprensa Nacional) que tinha como razão de ser publicar os atos normativos e administrativos da Corte portuguesa, recém-instalada no Rio de Janeiro. Ainda em 1808, Decreto de 27 de setembro institui a censura prévia com o propósito de impedir qualquer publicação contra a religião, o governo e os bons costumes. Em 1821, Decreto de 2 de março regulamenta a liberdade de imprensa acabando com a censura prévia. (PAULINO, 2008, p. 66-67)
Em 19 de janeiro de 1822, foi baixada uma portaria que inaugurou o princípio da responsabilidade sucessiva[2] nos abusos de imprensa e, no mesmo ano, o príncipe regente Dom Pedro I criou um júri composto de 24 cidadãos e aboliu as sanções relativas aos abusos contra a religião, os bons costumes e os indivíduos, permanecendo apenas as penalidades relativas aos abusos contra o Estado. O que foi determinado em 1822 vigorou até 1823, quando, segundo Paulino, foi implantada aquela que seria considerada a primeira lei de imprensa brasileira,
que teve como referência a lei de liberdade de imprensa portuguesa de 1821, que repudiava a censura e declarava livre a impressão, a publicação, a venda e a compra de livros escritos de toda a qualidade e estabelecia que os abusos seriam objeto de julgamento (…) (PAULINO, 2008, p. 67-68).
Na Constituição de 1824, o artigo 179, inciso IV, estabelecia a liberdade de expressão por meio da escrita, contanto que o autor respondesse pelos abusos que, eventualmente, cometesse em suas publicações textuais, e em 1830 foi sancionado o primeiro Código Penal brasileiro, onde os crimes decorrentes do abuso de imprensa passaram a ser enquadrados (PAULINO, 2008, p. 68). “Com o advento da República em 1889, estabelece-se um novo Código de Processo Penal (1890), que fazia referência a crimes de imprensa e promulga-se a Constituição (1891), que manteve a liberdade de expressão e de pensamento” (PAULINO, 2008, p. 69).
Mais adiante, após a ocorrência de fatos significativos para a história da mídia brasileira, como a primeira transmissão oficial de rádio no Brasil (1922) e leis relativas ao telégrafo e ao telefone (que, em 1917, passaram a ser de domínio exclusivo do governo federal), o princípio da responsabilidade sucessiva foi substituído pelo da responsabilidade solidária da mídia, quando, em 1923, as normas relativas ao Código Penal foram substituídas pela criação da lei nº 4.743, que
[…] ficou conhecida pelo nome do seu relator, Adolfo Gordo, senador por São Paulo, e determinou o princípio da responsabilidade solidária, substituindo a tradição da responsabilidade sucessiva para crimes de imprensa e a censura prévia, além de criar o direito de resposta e a prisão especial para jornalistas, e extinguir o júri popular, passando as decisões para um juiz (PAULINO, 2008, p. 69-70).
A segunda lei de imprensa da República brasileira entrou em vigor quando, em 14 de julho de 1934, o então presidente Getúlio Vargas baixou o Decreto 24.776. Tal lei foi “alterada com a instauração do Estado Novo, em 1937, que implementou a censura, possibilidade de apreensão de jornais e o amplo uso do rádio como instrumento de exercício de poder” (PAULINO, 2008, p. 70). Foi criado, então, em 1939, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), “que elaborava a propaganda oficial e controlava o conteúdo artístico e as emissões das instituições de comunicação” (PAULINO, 2008, p. 70), e o programa “A Hora do Brasil” – que, em 1962, teve seu nome modificado para “A Voz do Brasil” –, passou a ter transmissão diária obrigatória em cadeia nacional.
Com o fim da 2ª Guerra Mundial e o processo de redemocratização que se seguiu ao mesmo, o Decreto 24.776 (primeira lei de imprensa) voltou a vigorar no país. Já em 1949, são incluídas normas relativas à televisão, que foi inaugurada oficialmente em 1950, ano em que Getúlio Vargas foi eleito e publicou decreto que reduzia os prazos das concessões de dez para três anos, além de criar “uma comissão para elaborar um Código Brasileiro de Radiodifusão e Telecomunicações”, decreto que foi revogado após o suicídio do presidente, em 1954 (PAULINO, 2008, p. 71). Porém, antes disso (em 1953), de acordo com Paulino (2008, p. 71), Vargas sancionou lei que “regulava a liberdade de imprensa e reinstaurava o princípio da responsabilidade sucessiva”, e que determinava, entre outras coisas, que só se aplicaria pena de prisão “aos autores dos escritos incriminados”, não podendo exceder de um ano.
No governo Jânio Quadros (1960-1961), foi restabelecida a censura prévia, em 1961. No de João Goulart (1961-1964), foi publicado o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), que criou o Conselho Nacional das Telecomunicações, órgão responsável pelo acompanhamento e regulação das comunicações. E então, com o início do período da ditadura militar no Brasil (1964-1985), mudanças significativas ocorreram na legislação brasileira de imprensa. A Lei nº 5.250, de 1967, criou o Ministério das Comunicações e deu início à
regulação de notícias difundidas por rádio e teledifusão (tevês e rádios), sendo a lei de imprensa que vigora até os dias de hoje, embora tenha em seu conteúdo vários pontos conflitantes com a Constituição Federal de 1988 e seja uma das leis proclamadas por profissionais com “resquício do entulho autoritário”. A Lei nº 5.250/67 prevê pena de prisão para jornalistas e responsáveis editoriais pelos "delitos de opinião", regulamenta o processo de apreensão e impressos, fixa teto para indenizações por dano moral e, dentre outras determinações muito questionadas por profissionais de comunicação, não admite prova de verdade em casos de acusação contra o presidente da República, os presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, ministros do Supremo Tribunal Federal, chefes de Estado ou de governos estrangeiros e seus representantes (PAULINO, 2008, p. 74).
O governo militar atualizou, em 1969, a Lei de Segurança Nacional[3], que, como os demais decretos do período autoritário que censuraram cada vez mais a liberdade de imprensa, determinava diversas restrições ao conteúdo das emissoras de rádio e tevê, estabelecendo penas como a detenção de três meses a um ano para a divulgação de notícias que o governo considerasse tendenciosas ou falsas, capazes ou com a intenção de provocar indisposição do povo com as autoridades constituídas, como nos aponta Paulino (2008, p. 74).
Em 1986, após convocação da Assembleia Constituinte por Sarney (1985-1990)[4], é promulgada a Carta Magna. Em 1988, a Constituição Federal ganha um capítulo específico para a Comunicação Social, que estabelece a liberdade de expressão e “veta a censura de natureza política, ideológica e artística […] e reza que os meios de comunicação não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio” (PAULINO, 2008, p. 75), dentre outras determinações. Em 16 de julho de 1997, foi publicada a Lei Geral de Telecomunicações (LGT), revogando grande parte do Código Brasileiro de Telecomunicações. Os serviços de radiodifusão foram mantidos sob a organização e fiscalização do Ministério das Comunicações. E, em 25 de junho de 2002,
após 14 anos de previsão constitucional e onze anos de lei ordinária (Lei 8.389 de 30/12/1991), foi finalmente instaurado o Conselho de Comunicação Social que atuou até 11 de dezembro de 2006, data da última audiência da entidade que não promoveu nenhum evento em 2007 […] (PAULINO, 2008, p. 77).
Traçado esse breve histórico das questões relativas às leis de imprensa no Brasil, vimos que não houve, ainda, uma reformulação da legislação, condizente com os impactos das mudanças tecnológicas na era digital. “A regulamentação da mídia no Brasil está apoiada no Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT) de 1962, que se encontra defasado em relação às novas tecnologias” [5]. A Lei de Imprensa editada em 1967 pelo governo militar, autoritária e repleta de restrições à liberdade de imprensa, foi totalmente revogada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 30 de abril de 2009. O tema tem sido amplamente discutido no Brasil nos últimos dois anos e ganhou maior repercussão em 2010, por conta da tentativa do ministro da Comunicação Social do governo Lula (2002-2010), Franklin Martins, de aprovar um projeto de regulamentação dos meios de comunicação brasileiros.
A proposta do ex-ministro foi mal recebida pelos grandes veículos do país, que publicaram, implícita e explicitamente, acusações de tentativa de censura e de controle de conteúdo jornalístico[6] por parte do governo. Porém, como veremos adiante, a regulamentação de mídia em diversos países do mundo culminou na criação de conselhos de imprensa que atuam como órgãos reguladores que visam assegurar o compromisso dos meios de comunicação com o público sem, no entanto, cercear sua liberdade, de acordo com Bertrand (2002, p. 143):
Um enunciado do objetivo fundamental dos conselhos mais útil é: todos visam preservar a liberdade da imprensa contra as ameaças diretas e indiretas por parte de um governo. Esforçam-se todos para ajudar a imprensa a assegurar suas funções na sociedade – e obter-lhe assim o apoio da opinião pública no seu combate pela independência.
No Brasil, o debate em torno da criação de conselhos de imprensa vem encontrando diversos obstáculos. Grande parte desses obstáculos deve-se à insistência da mídia brasileira em vincular o termo “regulação” (ou “regulamentação”) a “censura” e “cerceamento da liberdade de imprensa”. Democracia, liberdade de imprensa, concessões de emissoras de rádio e televisão a parlamentares, propriedade cruzada dos meios, oligopólios, interesses políticos, ética jornalística, responsabilidade social dos meios de comunicação: várias são as questões envolvidas nesse debate. Isso porque, segundo Bertrand (2002, p. 143),
numa democracia, a imprensa é simultaneamente uma indústria, um serviço público e o quarto poder político. Desta tríplice natureza decorre a maioria de seus problemas, pois ela acarreta uma associação conflituosa entre quatro grupos: os cidadãos, os jornalistas, os proprietários dos materiais e os dirigentes da nação, eleitos ou nomeados.
Países como a Suécia, Reino Unido, Portugal, Espanha, Canadá e Estados Unidos possuem, há longa data, conselhos de imprensa que, como órgãos reguladores, cumprem a função de assegurar a responsabilidade social da mídia. No Brasil, não há quem o faça. Para refletir sobre a situação do país com relação a essa questão, faz-se necessário saber que
um conselho de imprensa é uma maneira de utilizar a opinião pública, mais forte do que antes, com a finalidade de fazer pressão sobre a mídia para que ela sirva melhor a população. Um conselho é impensável numa ditadura, seja ela fascista, comunista ou religiosa. E um conselho tem muita dificuldade para funcionar num país subdesenvolvido, onde a mídia também o é (BERTRAND, 2002. p. 143).
2.2. Discussão em outros países
O primeiro país no mundo a utilizar mecanismos de autorregulamentação (ou autorregulação) de imprensa independente foi a Suécia, que, em 1916, criou conselhos de autorregulamentação que tiveram, mais tarde, seus modelos seguidos e funcionam hoje em vários países, mas “somente se multiplicaram a partir do início dos anos 60.” (BERTRAND, 2002, p. 141). Tendo criado, em 1809, o ombudsman no serviço público, a Suécia foi também quem adaptou a função para o jornalismo, garantindo espaço, nos jornais, para a atuação de um vigilante do trabalho jornalístico realizado pelo próprio veículo. De acordo com Fernando Oliveira Paulino, pesquisador dos Meios de Assegurar a Responsabilidade Social da Mídia[7], o papel do ombudsman é reconhecido como um mecanismo eficaz de autorregulação, na medida em que sua atuação é voltada para a representação dos interesses do público do jornal (em sueco, ombus: público, man: representante).
O cargo assim denominado foi criado em 1809 com a responsabilidade de receber e tramitar as queixas dos cidadãos relacionadas ao funcionamento do governo e da administração pública. A partir de então, a experiência foi aproximada e adaptada em outros países. Na mídia, a presença de ombudsman ou variantes terminológicas como defensor del lector (Espanha), mediateur (França) e provedor dos leitores, provedor do ouvintes e provedor dos telespectadores (Portugal) surgiu como forma de promover a deontologia jornalística nas instituições de comunicação (PAULINO, 2008, p. 109)
Assim, podemos considerar que a primeira grande contribuição histórica para o debate em torno da liberdade de imprensa e regulamentação da mídia foi dada pela Suécia, país que possui uma das imprensas mais liberais do mundo e onde “circula também uma variedade enorme de jornais (pelo menos 400 diários) editados por comunidades ou organizações, muitos deles subsidiados pelo governo, de 1977 a 1986, como garantia do pluralismo da informação.”, de acordo com dados disponíveis no artigo “Berço da Liberdade”, publicado no portal do Instituto Gutenberg em novembro de 1996 (boletim nº 12)[8].
Além disso, o Conselho de Imprensa da Suécia é uma organização voluntária, sem nenhuma participação do governo, sendo mantido pelas três principais organizações jornalísticas do país: o Clube dos Publicistas, a União dos Jornalistas e a Associação dos Editores de Jornais[9]. A mídia do país, portanto, não sofre censura por parte do governo, sendo dele desvinculada, o que diferencia a ideia de regulação da ideia de censura, o que não ocorre no país. Os crimes de imprensa praticados na Suécia são julgados por um júri popular, pois os suecos consideram que “ética não é um assunto para as leis ou os tribunais, mas exclusivamente para o público e as organizações jornalísticas” e que “a liberdade que a imprensa possui deve ser proporcional à responsabilidade.” (GUTENBERG, 1996, boletim nº 12).
No Reino Unido (Inglaterra, Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales), onde há jornais desde 1621, o conselho de autorregulamentação da imprensa existe desde 1955, tendo sido reformulado em 1991, passando então a se chamar Press Complaints Commission (PCC). A organização é voluntária e foi criada pela imprensa, sendo sua principal tarefa encaminhar as queixas do público contra jornais e revistas – para queixas contra rádio e televisão, há cinco outras instituições de regulação no Reino Unido, além de programas de televisão –, de acordo com artigo de Paulo S. Lyra, publicado em abril de 1997 no portal do Instituto Gutenberg (boletim nº 14)[10]. Além disso, os britânicos podem fazer reclamações por meio do Disque-Ética, queixando-se diretamente com um representante da Comissão de Reclamações contra a Imprensa, que entrará em contato com editores de publicação, o que pode ocorrer antes mesmo da publicação.[11]
O 0171-disque-ética é apenas uma das várias formas de atuação do PCC. O mais comum é que as pessoas que se sintam prejudicadas escrevam uma carta mencionando especificamente o que o jornal ou revista fizeram de errado. O PCC então envia uma cópia ao editor, sugerindo que as partes entrem em acordo diretamente. Quando não há acordo, o caso vai a julgamento, que pode terminar com a publicação de uma condenação ao jornal ou revista.[12]
Também no Reino Unido, há o Office of Communications (Ofcom), responsável pela regulação dos setores de TV e rádio, telecomunicações de linha fixa e celulares, além das ondas sobre as quais operam os dispositivos sem fio, sendo responsável perante o Parlamento britânico (accountability) e financiado por taxas da indústria pela regulamentação da radiodifusão e redes de comunicações, e ajuda financeira de concessão do Governo, de acordo com informações disponíveis no website oficial da entidade[13]. Operando sob a Lei de Comunicações de 2003, a entidade concentra atividades antes atribuídas a organizações como Office of Telecommunications (Oftel), Broadcasting Standards Commission, Radio Authority e Radiocommunications Agency (SILVA, 2009)[14]. Do site oficial do Ofcom[15]consta que seus principais deveres legais são assegurar que
o Reino Unido tenha uma vasta gama de serviços de comunicações eletrônicas, incluindo serviços de alta velocidade como a banda larga; uma ampla gama de alta qualidade de televisão e programas de rádio sejam fornecidos, apelando para uma variedade de gostos e interesses; serviços de televisão e rádio sejam fornecidos por uma gama de diferentes organizações; pessoas que assistem televisão e ouvem rádio estejam protegidas contra material nocivo ou ofensivo; as pessoas estejam protegidas para não serem tratadas de forma injusta na televisão e programas de rádio e de ter sua privacidade invadida, e o espectro de rádio (ondas de rádio usadas por todos, de empresas de táxi e os proprietários do barco, a empresas de telefonia móvel e emissoras) seja usado da forma mais eficaz.
Conselhos de imprensa existem, desde há muito, em diversas partes do mundo, inclusive em países recém-democratizados após experiências ditatoriais, como Portugal e Espanha. Embora existam entre estes dois países e o Brasil “muitas similitudes históricas” (PAULINO, 2008, p. 1), somente aqui não existe, ainda, um conselho. Como nos aponta Bertrand (2002, p. 141), todas as democracias industrializadas, com exceção de alguns países latinos, têm ou tiveram um conselho de imprensa. “Mesmo países subdesenvolvidos tiveram essa experiência nos anos 60 e 70”, embora este fato não seja do conhecimento da maior parte das “pessoas de fora da mídia”. (BERTRAND, 2002, p. 141). De acordo com Bertrand (2002, p. 142):
Os conselhos de imprensa apareceram em países que compartilhavam os mesmos valores e as mesmas preocupações com democracia – ou em países que estiveram sob a influência colonial ou cultural de democracias ocidentais. Sentiu-se em toda a parte a necessidade de ter um organismo que ajudasse seus meios de comunicação a serem mais “socialmente responsáveis” sem nada perderem de sua liberdade.
Em Portugal, a Entidade Reguladora para Comunicação Social (ERC) foi criada em 8 de novembro de 2005, tendo iniciado sua atuação com a tomada de posse do Conselho Regulador em 17 de fevereiro de 2006. O objetivo da entidade é a regulação e supervisão de todas as instituições de comunicação do país, sendo uma entidade administrativa independente, de acordo com informações disponíveis em seu websiteoficial.[16] Em matéria de Sabrina Craide, publicada em 10 de novembro de 2010 no portal Rede Brasil Atual, o presidente da ERC, José Alberto Azeredo Lopes, afirmou que nos países da Europa a existência de órgãos reguladores é uma realidade e que a liberdade de imprensa deve ser protegida pelos mesmos: “Uma das dimensões fundamentais de qualquer regulador de conteúdo é o da proteção de liberdade de imprensa, pois há, hoje, um fator de risco com a evolução tecnológica”.[17]
No exercício das suas funções, compete à ERC assegurar o respeito pelos direitos e deveres constitucional e legalmente consagrados, entre outros, a liberdade de imprensa, o direito à informação, a independência face aos poderes político e econômico e o confronto das diversas correntes de opinião, fiscalizando o cumprimento das normas aplicáveis aos órgãos de comunicação social e conteúdos difundidos e promovendo o regular e eficaz funcionamento do mercado em que se inserem. A ERC figura, portanto, como um dos garantes do respeito e protecção do público, em particular o mais jovem e sensível, dos direitos, liberdades e garantias pessoais e do rigor, isenção e transparência na área da comunicação social.[18]
Na Espanha, as principais entidades reguladoras são o Consell de la Informació de Catalunya (CIC), o Consejo Del Audiovisual de Cataluña (CAC) e a Comisión del Mercado de las Telecomunicaciones (CMT). De acordo com informações do website oficial do CIC, a organização, que não tem fins lucrativos, surgiu em 1997 como uma iniciativa da Associação de Jornalistas da Catalunha (CPC) e seu objetivo é garantir o cumprimento dos princípios da ética jornalística contidos no Código de Ética, aprovado em 1992[19]. O CAC, que existe desde 2000, é a autoridade independente para regular a transmissão da Catalunha e seu objetivo é “defender a liberdade de expressão e informação, o pluralismo, a neutralidade e honestidade da informação, e da livre concorrência no setor”, de acordo com informações do site da entidade[20]. A CMT é o órgão regulador de comunicações eletrônicas e de serviços audiovisuais da Espanha que, criado em 1996, “visa estabelecer e monitorar as obrigações específicas a serem cumpridas pelos operadores no mercado das telecomunicações e promover a concorrência nos mercados dos serviços audiovisuais”, conforme informações disponíveis no site oficial da CMT[21].
Outros países que possuem órgãos reguladores discutem o aperfeiçoamento de sua atuação e da qualidade de sua imprensa. O Conselho de Imprensa da Austrália é um órgão de autorregulação independente que fiscaliza a atuação apenas de publicações impressas e, segundo artigo publicado no portal do Observatório da Imprensa em 23 de agosto, agora “desenvolve um projeto para passar a regular notícias e debates de interesse público em outras plataformas de comunicação, incluindo televisão, rádio e blogs. Atualmente, rádio e TV são responsabilidade da Autoridade de Comunicações e Mídia Australiana, enquanto a internet não sofre nenhum tipo de regulação”.[22]
No Canadá há nove conselhos de imprensa e comitês éticos em quase todas as províncias do país, de acordo com artigo publicado no portal do Instituto Gutenberg em julho de 1996 (boletim nº 10)[23]. Os conselhos surgiram no país na década de setenta, “como uma reação dos donos de meios de comunicação à pressão da sociedade por uma imprensa mais precisa e, em alguns casos, mais equânime”.[24]Qualquer pessoa pode recorrer a um conselho de imprensa canadense, independentemente de estar envolvido diretamente na denúncia a ser feita.
De um modo geral, os conselhos têm como objetivo preservar a liberdade de imprensa, divulgar e estimular o uso de padrões éticos e, se alguém achar que a mídia atenta contra esses valores, pode recorrer aos conselhos. O público pode pedir mais (ou menos) notícias sobre um assunto, protestar contra preconceitos, inexatidões, distorções e imparcialidades e exigir equanimidade no noticiário.[25]
Nos Estados Unidos, é o Federal Communications Commission(FCC) o órgão que “regula as comunicações interestaduais e internacionais por rádio, televisão, cabo via satélite e por cabo em todos os 50 estados, o Distrito de Columbia e territórios dos EUA”, de acordo com informações dosite oficial da entidade, segundo o qual a mesma “foi estabelecida pelo Communications Act de 1934 e opera como uma agência independente do governo dos EUA supervisionado pelo Congresso”.[26] Suas atribuições são:
Promover a concorrência, inovação e investimento em serviços de banda larga e instalações; Apoiar a economia do país, garantindo um enquadramento adequado competitivamente para o desenrolar da revolução das comunicações; Incentivar o maior e melhor uso do espectro nacional e internacional; Revisão da regulamentação da mídia para que as novas tecnologias florescem junto com a diversidade e localismo; Proporcionar liderança no fortalecimento da defesa da infra-estrutura de comunicações do país.[27]
Reed Hundt, presidente da FCC entre 1993 e 1997, contou, em entrevista para Lucas Mendes, correspondente da Globo News em Washington, que “a FCC foi criada pelo presidente Franklin D. Roosevelt durante a Grande Depressão para evitar que importantes empreendimentos comerciais do país falissem”, segundo a jornalista Lilia Diniz, na matéria “O exemplo americano de regulação da mídia”, publicada no portal do Observatório da Imprensa em 04 de agosto de 2011.[28] Hundt disse também, na ocasião da entrevista, que, “No poder, os democratas gostavam de emitir licenças para os amigos e quando o presidente Dwight Eisenhower [republicano] tomou posse, em 1952, o então presidente da FCC disse: ‘Agora, é nossa vez, vamos licenciar nossos amigos’”. Outra característica da entidade, mencionada por Diniz, é que, “Diferente das outras agências de regulamentação no mundo, a FCC combina em sua jurisdição telefone, rádio, TV aberta, por cabo e satélite, conexões sem fio e internet”.[29]
Considerando a situação de outros países em relação ao debate sobre a regulamentação da mídia, pudemos notar, com base nos exemplos vistos até aqui, que, na maior parte dos países que apresentam mecanismos de regulamentação da mídia, os conselhos são de autorregulação, ou seja, as próprias instituições de comunicação criam “um conjunto de ações que fiscalizam a prática de normas estabelecidas voluntariamente, na qual todos se submetem quando são implantadas e cujos resultados são apresentados ao público” (PAULINO, 2008, p. 27).
Após uma série de publicações que abordaram o funcionamento de conselhos de ética jornalística de vários países (como Inglaterra, Suécia, Chile, Estados Unidos, Austrália, dentre outros), o Instituto Gutenberg publicou um artigo em que, baseado nas diversas experiências pesquisadas, questionou a eficiência dos conselhos de ética na autorregulação da imprensa, refletindo sobre sua atuação e concluindo que “os conselhos de imprensa que funcionam em países de democracia secular e sólida, como Inglaterra, Suécia e Canadá, parecem ser um instrumento eficaz de monitoramento e reparação dos erros da imprensa”.
O Conselho de Ética dos Meios de Comunicação do Chile é um exemplo de como as empresas de comunicação, independentemente de adotarem ombudsmen, seções de cartas ou códigos conduta, conferem ao público um canal de protesto que serve à auto-regulamentação. O Conselho chileno nada tem a ver com censura, governo ou jornalistas. Criado em 1991, é uma iniciativa das empresas de comunicação, através de suas associações de classe: a Associação Nacional de Imprensa, a Associação de Radiodifusão e a Associação Nacional de Televisão, reunidas na Federação dos Meios de Comunicação Social.[30]
Bertrand aponta e distingue três principais tipos de conselhos de imprensa: os “pseudo-conselhos”, que “incluem representantes do governo”, oficiosos ou oficiais[31], e “onde o presidente do conselho é nomeado pelo presidente da República”, que são os conselhos “cuja única missão é amordaçar a imprensa” (BERTRAND, 2002, p. 144); os “semi-conselhos”, que, de acordo com o autor, exercem apenas “algumas das funções de um conselho de imprensa” por não compreenderem “pessoas exteriores à mídia, com exceção do presidente independente que quase todos os conselhos têm, e, em geral, representam apenas o grupo dos jornalistas”[32] (BERTRAND, 2002, p. 145); por fim, o terceiro tipo são os referenciados pelo autor como “verdadeiros conselhos”, que são os que “incluem simultaneamente pessoas que pertencem à profissão e pessoas que não pertencem a ela – em proporções variáveis” (Idem, ibidem) e “podem se situar em três níveis: nacional, regional e local” (idem, p. 146).
Entre os Meios para Assegurar a Responsabilidade Social da Mídia, mencionados por Fernando Oliveira Paulino em “Responsabilidade Social da Mídia: Análise conceitual e perspectivas e aplicação no Brasil, Portugal e Espanha”, há também o mecanismo de co-regulação, que é definido pelo pesquisador como “uma responsabilidade compartilhada entre a mídia e o poder público, combinando elementos de automonitoramento com posterior acompanhamento do Estado e do Mercado” (PAULINO, 2008, p. 27), diferente de regulação, que Paulino define introdutoriamente como “ato oriundo do Estado”. Porém, para o pesquisador (2008, p. 32), “os mecanismos de regulação, de co-regulação e de auto-regulação não são excludentes, podem ser aplicados de forma combinada, levando em conta as normas jurídicas e deontologias associadas às práticas mediáticas […]”.
3. Discurso e mídia
Este trabalho pretende analisar quais são e de que forma se dão os efeitos de sentido nas matérias dos impressos brasileiros O Globo e Folha de S.Paulo que abordam o tema da regulamentação da mídia a partir da cobertura do Seminário Internacional Comunicações Eletrônicas e Convergência de Mídias, ocorrido entre os dias nove e onze de novembro de 2010. Nossa proposta é operar a leitura discursiva das matérias, já que, de acordo com Orlandi, “no funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e produção de sentidos e não meramente transmissão de informação.” (ORLANDI, 2001, p. 21).
Partindo do reconhecimento, por parte de estudiosos da Análise de Discurso, de que “por trás das palavras há outras palavras” (FURLANETTO, 2000, p. 10), de que “os sentidos não estão nas palavras”, mas “aquém e além delas” (ORLANDI, 2001, p. 42) e de que “Nosso olhar para o mundo não se dá diretamente: nós o percebemos conforme os discursos que falam dele” (FURLANETTO, 2000, p. 2), trabalharemos com os conceitos de formação discursiva (FD) e memória discursiva (MD), a fim de compreender e apontar marcas discursivas, presentes nos textos analisados, que tornem identificáveis os posicionamentos dos jornais O Globo e Folha de S.Paulo quanto à questão da regulamentação da mídia no Brasil. Nossa análise busca, portanto, compreender “como linguagem e ideologia se articulam” (ORLANDI, 2001, p. 43) nas matérias selecionadas para análise.
Saber como os discursos funcionam é colocar-se na encruzilhada de um duplo jogo da memória: o da memória institucional que estabiliza, cristaliza, e, ao mesmo tempo, o da memória constituída pelo esquecimento, que é o que torna possível o diferente, a ruptura, o outro (ORLANDI, 2001, p. 10).
A memória, quando pensada em relação ao discurso, é tratada como interdiscurso, definido por Orlandi como “aquilo que fala em outro lugar, independentemente” (ORLANDI, 2001, p. 31). Gregolin aponta que o trabalho da memória “produz a lembrança ou o esquecimento, a reiteração ou o silenciamento de enunciados” (GREGOLIN, 2007, p. 4). Furlanetto define o conceito de memória discursiva como “interdiscurso”, que a autora descreve como sendo “um saber discursivo que possibilita que nossas palavras façam sentido.” (FURLANETTO, 2000, p. 4). Esse saber corresponde àquilo de que nos lembramos e àquilo de que nos esquecemos e que, ainda assim, integra nossa memória e se manifesta em nossos discursos, já que a “ideologia se associa a inconsciente” (idem, ibidem). E, de acordo com o que aponta Orlandi, baseado em Pêcheux, não há discurso sem ideologia:
[…] não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido. Consequentemente, o discurso é o lugar em que se pode observar essa relação entre língua e ideologia, compreendendo-se como a língua produz sentidos por/ para os sujeitos (ORLANDI, 2001, p. 17).
É o interdiscurso que determina os sentidos no interior das FDs: para Furlanetto, “[…] o interdiscurso produz a argumentação, movimenta marcas da língua que se põem em funcionamento, a posição produz efeitos de sentido, a ideologia interpela o sujeito, a ideologia estrutura os processos de significação…” (2000, p. 14). Segundo Gregolin, “os sentidos, no interior das FDs, estão sob a dependência do interdiscurso.” (GREGOLIN, 2007, p. 2). Orlandi aponta que “O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada.”
M. T. de Sousa e Alves consideram que o conceito de FD é de fundamental importância para a AD, “correspondendo a um conjunto de relações que funcionam como regra para o sujeito nas circunstâncias em que este inscreve seu enunciado” (SOUZA, M. T.; ALVES, W., 2011, p. 198). Para Orlandi, a noção de FD “é básica na Análise de Discurso, pois permite compreender o processo de produção dos sentidos, a sua relação com a ideologia” (ORLANDI, 2001, p. 43), e assim ele a conceitua:
O discurso se constitui em seus sentidos porque aquilo que o sujeito diz se inscreve em uma formação discursiva e não outra para ter um sentido e não outro. Por aí podemos perceber que as palavras não têm um sentido nelas mesmas, elas derivam seus sentidos das formações discursivas em que se inscrevem. As formações discursivas, por sua vez, representam no discurso as formações ideológicas. Desse modo, os sentidos sempre são determinados ideologicamente. Não há sentido que não o seja. Tudo que dizemos tem, pois, um traço ideológico em relação a outros traços ideológicos. E isto não está na essência das palavras mas na discursividade, isto é, na maneira como, no discurso, a ideologia produz seus efeitos, materializando-se nele. O estudo do discurso explicita a maneira como linguagem e ideologia se articulam, se afetam em sua relação recíproca (ORLANDI, 2001, p. 43).
Para Gregolin, “[…] os processos discursivos constituem a fonte da produção dos efeitos de sentido no discurso e a língua, pensada como ‘relativamente autônoma’, é o lugar material no qual se realizam esses efeitos de sentido” (GREGOLIN, 2007, p. 3) e “o sentido não existe em si, mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas” (ORLANDI, 2001, p. 42).
Daí a importância da utilização dos conceitos de FD e MD na análise de discurso das matérias selecionadas para o presente trabalho: compreender os gestos de interpretação, como se dá a textualização, que silenciamentos se operam, que sentidos são vocalizados, que relação com a memória discursiva se constitui nas matérias dos jornais Folha de S.Paulo e O Globo acerca das questões que envolvem a regulamentação da mídia.
4. Análise das reportagens
Passamos finalmente à análise, à leitura discursiva das reportagens, a começar pelo jornal Folha de S.Paulo. Metodologicamente, optamos por dessequencializar os textos dos jornais em unidades variáveis, de frases simples a parágrafos.
Na Análise do Discurso, o enunciado é variável, dependendo da percepção do analista do que pode ser uma unidade de sentido relevante para a análise. Daí que, dependendo do caso, o enunciado pode ser uma palavra, um sintagma ou um conjunto sintagmático, como o parágrafo; um fragmento de imagem, uma imagem, ou uma composição de imagem e texto.
No nosso caso específico, atemo-nos aos textos, dispensando elementos da matéria como a foto e tipografia, e do jornal, como a diagramação e a paginação. A codificação se dá na ordem M, para matéria seguida do indicador de ordenação; E, para enunciado, seguido de indicador de ordenação e a inicial do jornal analisado. Assim, o código M1E1F indicia o primeiro enunciado da primeira matéria da Folha de S.Paulo.
4.1. A Folha de S.Paulo
Matéria 1:
“Governo quer regulamentar setor de rádio, TV e internet” (Folha de S.Paulo, 09 de novembro de 2010)
M1 E1 F: “Seminário patrocinado pelo governo começa a discutir mudança nas regras”
Enfatiza-se que o evento, cujo nome não é mencionado, é “patrocinado pelo governo” no subtítulo, questionando a legitimidade da discussão em função de estar inserida no contexto da proposta de regulamentação de Franklin Martins. O “patrocínio do governo para a mudança nas regras” pode trazer o efeito, dependendo da posição discursiva do leitor, de ingerência e interferência nas regras já estipuladas pelo mercado. Associa-se, intertextualmente, a uma discussão mais antiga, da constituição do Conselho de Jornalismo. Isto é, há uma atualização de memória do dizer, uma memória discursiva, que remeteria a outras “iniciativas do governo” na tentativa de “cerceamento da liberdade”, o que veremos materializado nos enunciados abaixo.
M1 E2 F: “Entidades de mídia temem cerceamento do conteúdo jornalístico; Franklin Martins nega intenção de censurar”
Vincula-se o termo “regulamentar” expresso no título da matéria à censura quando enfatizam as noções de “cerceamento do conteúdo jornalístico” (temido por “entidades de mídia”) e, em seguida, de “censura” propriamente (“intenção” negada por Franklin Martins).
Operamos aqui um desmembramento dos dois períodos acima em quatro enunciados.
a. (pode haver) “cerceamento de conteúdo jornalístico”
b. Entidades temem “a”
c. Há intenção de censurar
d. Martins nega “c”
Os enunciados “a” e “c” são implícitos, não são materializados, mas funcionam e produzem sentido. Se associado à observação sobre M1E1F, podemos entender que a memória discursiva evocada se materializa no não dito dos enunciados analisados acima.
M1 E3 F: “O governo Lula quer incluir na agenda prioritária da administração Dilma Rousseff a discussão sobre nova regulamentação para os meios de comunicação eletrônica: rádio, TV e internet.”
O texto já começa enfatizando a ideia de que a regulamentação é uma proposta do governo Lula, ou seja, o “cerceamento do conteúdo jornalístico” parte do próprio governo, o que induz o leitor à noção de que “regulamentar” é sinônimo de “censurar”, mais uma vez.
Devemos levar em consideração o fato de que a interpretação acima depende da formação discursiva em que se encontra o leitor. De novo precisamos levar em consideração que a fórmula “regulamentação para os meios de comunicação” não adquire efeito de sentido negativo para os partidários desta medida. Devemos observar, no entanto, que a sentença acima traz um outro enunciado que pode passar despercebido: “Lula quer incluir na agenda prioritária de Dilma”, o que leva à interferência de um antecessor sobre as ações soberanas de uma presidenta eleita.
Há relações intertextuais entre o enunciado acima e uma série de reportagens sobre supostas intromissões de Lula na agenda de Dilma, e a dependência desta em relação ao antecessor.
M1 E4 F: “A proposta é recebida com receio pelo setor, que teme o cerceamento do conteúdo jornalístico.”
Aproxima-se o significante “regulamentação”, elipsada por “a proposta” e o significante “cerceamento”, o que tem como efeito de sentido a paridade ou o estado de sinonímia entre “proposta de regulamentação” e “censura” prévia ou não. A leitura possível é o cerceamento sobre conteúdo jornalístico indesejado pelo governo.
M1 E5 F: “Lula encomendou um anteprojeto de lei para mudar as regras para o setor, a ser entregue a Dilma, e inicia hoje um seminário sobre o assunto com dirigentes de agências reguladoras de vários países. As entidades representantes de jornais, revistas, rádios e TVs nacionais irão como convidadas.”
Reitera-se que a iniciativa é do governo Lula e, agora, ao dizer “mudar as regras para o setor”, pode ser lido como arbitrariedade. Em seguida, o jornal enuncia que Lula “inicia hoje um seminário sobre o assunto” (ele ainda era o sujeito da frase, ou seja, mais uma vez é enfatizado que o evento é “patrocinado pelo governo”), trecho em que o nome do evento não é mencionado. Além de se referirem ao seminário como “um seminário” – o que reduz sua relevância (uma forma de dar menor visibilidade ao evento) –, a matéria afirma que o propósito do evento é o de “discutir o assunto”. O evento, propriamente, discutiu mais do que “o assunto” ao qual o veículo se referiu. O silenciamento sobre todo o restante da agenda traduz-se como estratégia de redução da importância do evento. O mesmo acontece com outro silenciamento, quando não se identificam os “dirigentes de agências reguladoras de vários países”. Ora, estes países não são identificados, mas entre eles há exemplos de democracia. Um seminário que conte com europeus e americanos, incluídos, mostram a força de uma agenda que parece incomodar os jornais. Por outro lado, não há compatibilidade de uma memória discursiva que associa a regulamentação de mídia a países subdesenvolvidos e autoritários com democracias modernas ocidentais. A ocultação, portanto, torna coerente a matéria com a evocação desta mesma memória, atualizada na reportagem da Folha.
Não foram citadas que agências são essas, seus nomes e o que as mesmas representam em seus respectivos países, o que atribuiria maior credibilidade à presença de seus representantes e informaria o leitor do que são essas entidades de fato. Nada disso foi mencionado, como se não tivesse a menor importância.
M1 E6 F: “A Argentina (que adotou medidas restritivas à liberdade de imprensa) enviou um palestrante, assim como União Europeia, Reino Unido, França, Portugal e Espanha e Unesco (ONU).”
Neste trecho, ao dar o exemplo da Argentina como um país que adotou a regulamentação da mídia, fala-se em “medidas restritivas à liberdade de imprensa”, transmitindo, mais uma vez, a ideia de cerceamento à liberdade de imprensa, a ideia de censura. E, tendo sido citados os nomes dos países, nada foi dito sobre suas experiências de regulação da mídia. Além disso, foi dito apenas que a Argentina e os outros países mencionados “enviaram um palestrante”: ao ocultar quem foram e a quais entidades pertencem os palestrantes enviados por cada um desses países (não foi dito nem que eles pertencem a entidades reguladoras), a credibilidade dos palestrantes foi, mais uma vez, reduzida, já que não lhes foi atribuída nenhuma autoridade para falar sobre o assunto.
M1 E7 F: “O evento custará cerca de R$300 mi ao Planalto.”
A partir de uma rede de formulações sobre gastos governamentais excessivos, o que já teve como resultado a constituição de uma memória discursiva sobre um Estado/governo perdulário, é evidente que a textualização do custo do evento pode produzir o sentido de gastos interessados. Dentro do que nós percebemos acima, uma leitura possível é que o governo “gasta muito para cercear a imprensa”. Curiosamente, não parece soar incoerente a redução da importância do evento e o seu custo: gasta-se demais por menos.
M1 E8 F: “Segundo o ministro Franklin Martins (Comunicação Social), que coordena o seminário e a elaboração do anteprojeto, a discussão sobre o marco regulatório das comunicações terá, no governo de Dilma, o mesmo peso da reforma do setor elétrico no início do governo Lula.”
Aqui, mais uma vez, está presente a ênfase no fato de Franklin Martins ser o responsável pela elaboração do anteprojeto e coordenador do seminário: ideia de que o seminário foi promovido com o objetivo exclusivo de que a proposta seja aprovada, já que o evento foi “patrocinado” pelo governo, que não só defende, mas é o responsável pela articulação da proposta do marco regulatório.
M1 E9 F: “Franklin negou que exista, no governo, interesse de cercear a mídia, e criticou o poder do Judiciário de censurar. Disse ainda ser contra o controle social sobre a mídia. ‘A expressão pode ser interpretada como censura (…). A imprensa já é observada, criticada e fiscalizada pela internet, que, aliás, faz isso de forma selvagem, mas faz.’”
Na matéria só existe uma fonte: Franklin Martins, cujas falas se limitam à ideia de censura, novamente. De sua fala, só foram transcritos, na matéria, os trechos em que ele mencionou a possibilidade de a proposta ser interpretada como tentativa de censura. E no trecho transcrito acima, está presente a ideia de que “o próprio ministro, que defende o marco regulatório, reconhece que a mídia já é suficientemente fiscalizada”. Ou seja, não se esclarece, em momento algum, que o marco regulatório abrange uma série de outras questões que não essa “fiscalização” que é posta como sinônimo de censura o tempo todo no texto.
M1 E10 F: “Nos últimos 12 anos, houve três tentativas de criação de uma nova lei de comunicação eletrônica de massa, que morreram no nascedouro. Duas foram engavetadas pelo governo FHC e a terceira, pelo governo Lula. Uma quarta tentativa foi abortada, em 2005, antes mesmo de se formar o grupo de trabalho.”
No último parágrafo, transcrito acima, o sentido reforçado é o de que “todas as tentativas de se aprovar uma regulamentação de mídia falharam” talvez por inconsistência ou falta de apoio social. Além disso, ao dizer que as tentativas foram “engavetadas”, uma leitura possível, sempre de acordo com a posição discursiva ocupada pelo leitor, parece ser a de que as mesmas foram “abortadas” (expressão também usada depois, para se referir àquela que seria a “quarta tentativa”).
Matéria 2:
“Unesco lança hoje estudo sobre jornalismo” (Folha de S.Paulo, 09 de novembro de 2010)
A matéria veio logo abaixo da intitulada “Governo quer regulamentar setor de rádio, TV e internet”, o que estabelece uma relação de contextualidade entre ambas.
M2 E1 F: “A Unesco lança hoje o estudo “Indicadores da Qualidade da Informação Jornalística”, no qual sugere a autorregulação como o melhor meio para garantir a qualidade editorial dos veículos de comunicação.”
Sem que se tenha mencionado nada sobre o que significa “regulação” (em nenhuma das duas matérias), enfatiza-se que o estudo realizado pela Unesco aponta a “autorregulação como o melhor meio para garantir a qualidade editorial dos veículos de comunicação”.
A formação discursiva de onde falam os jornais opera como uma matriz de sentido que traduz os eventos e os dizeres sob sua lógica. À Unesco, neste caso, atribui-se posição similar a dos jornais. É curioso como a contextualidade referida acima ressignifica o “estudo” da Unesco como crítica a outras formas de regulamentação que não à própria. Há um diálogo tácito entre as matérias, mostrando que uma instituição altamente respeitada rejeita as iniciativas do governo sob crítica.
M2 E2 F: “Com base em 275 questionários respondidos por profissionais de todo o país, os autores afirmam que há razoável consenso quanto à importância de existirem critérios de qualidade para avaliar o trabalho jornalístico.”
Neste trecho, os dados numéricos vêm reforçar a ideia defendida pela Unesco (e pela Folha) de que a autorregulação é “o melhor meio para garantir a qualidade editorial dos veículos de comunicação”: o “razoável consenso” entre os profissionais que responderam tais questionários enfatiza a ideia. Só que o que foi dito é que o “razoável consenso” entre os mesmos é de que é importante haver “critérios de qualidade para avaliar o trabalho jornalístico”, e não de que a autorregulação seja o único critério.
M2 E3 F: “De acordo com Guilherme Canela, coordenador de Comunicação e Informação da Unesco no Brasil, isso não passa pelo governo: 'Cabe às empresas do setor definir os padrões de qualidade.’”
Depois de enfatizar, no texto anterior, que a proposta de regulação é do Lula e que o seminário foi patrocinado pelo governo, atribuem a Canela, única fonte ouvida na matéria, a ideia de que a regulação da mídia “não passa pelo governo”, como uma forma de questionar a legitimidade da proposta e do evento, mais uma vez, por serem iniciativas do governo Lula. E, assim, ao colocar “na boca da fonte” (Canela) que “cabe às empresas do setor definir os padrões de qualidade”, defendem a autorregulação como se pensassem: ‘já que o debate está na agenda, como disse Franklin Martins, pelo bem ou pelo mal, que a regulação seja feita pelos próprios veículos de comunicação, e não por um órgão regulador’.
M2 E4 F: “Para Canela, ‘os indicadores apresentados podem servir como parâmetros para o atual debate sobre a mídia’”.
Agora o ponto a que se quis chegar: o de que, já que “o debate é inevitável e está na agenda”, a autorregulação ganhe maior destaque nessa pauta, afinal, “não passa pelo governo” avaliar o trabalho jornalístico, mas pelas empresas jornalísticas.
Matéria 3:
“Franklin diz que não recuará sobre projeto” (Folha de S.Paulo, 10 de novembro de 2010)
Já no título pode ser identificado o sentido de “ameaça” por parte de Franklin Martins.
M3 E1 F: “Para ANJ, discurso de Franklin em seminário ‘pode ser interpretado como ameaça ou como o jeito dele mesmo’”
O discurso de Franklin Martins é colocado como ameaça e tal interpretação é atribuída à ANJ.
M3 E2 F: “O ministro Franklin Martins (Comunicação Social) afirmou ontem que o governo está disposto a levar adiante a discussão de novas regras para o setor de mídia digital mesmo que não haja consenso sobre o assunto.”
As palavras de Franklin, na abertura do Seminário Comunicações Eletrônicas e Convergências de Mídias, foram: “Nenhum setor tem o poder de interditar a discussão. A discussão está na mesa, está na agenda. Ela terá que ser feita. Ela pode ser feita em um clima de entendimento ou em um clima de enfrentamento. Eu acho que é muito melhor fazer em um clima de entendimento”. Ele foi enfático, sim, ao dizer que a discussão seria feita de qualquer forma, mas também foi enfático ao dizer que ele acha “muito melhor fazer em um clima de entendimento”, o que foi ocultado no parágrafo da matéria transcrito acima. Ou seja, ofertou-se ao leitor apenas a informação de que o ministro estaria “impondo” o debate, que por sua vez também intencionaria imposições (“novas regras”) ao setor de mídia.
M3 E3 F: “Ao abrir um seminário sobre convergência de mídia, promovido por sua pasta, ele disse que ‘nenhum grupo tem poder de interditar essa discussão’ e advertiu que o melhor é fazer o debate num clima de entendimento.”
Já nesse parágrafo, embora tenha sido dito que Franklin Martins afirmou ser “melhor fazer o debate num clima de entendimento”, o uso de “advertiu” enfatiza um tom de “enfrentamento” que teria sido preterido pelo próprio ministro em seu discurso. O significante ‘advertência’ quase sempre é associado a uma relação de autoridade, mas dentro da formação discursiva dominante em que se insere o jornal, esta “autoridade” pode ser lida como “agente autoritário”. Além disso, mais uma vez, o seminário é mencionado apenas como “um seminário sobre convergência de mídia, promovido por sua pasta”, enfatizando a ideia já presente na matéria “Governo quer regulamentar setor de rádio, TV e internet” (Folha, 09/11/2010), de que o evento é promovido pelo governo (intenção de apontar que o seminário serve apenas aos interesses do mesmo de “censurar” a mídia), além de não mencionar o nome do seminário, da mesma forma que antes e com a mesma intenção de dar menor visibilidade e legitimidade ao evento.
M3 E4 F: “‘A discussão está na mesa, está na agenda. Ela terá que ser feita. Ela pode ser feita em um clima de entendimento ou em um clima de enfrentamento. Eu acho que é muito melhor fazer em um clima de entendimento’, afirmou.”
O trecho da fala do ministro foi transcrito diretamente. Mas o fato de vir somente no terceiro parágrafo é indicativo. O posicionamento das informações na página, ou dentro das matérias, é indicativo da importância e tem efeito direto sobre o gesto de interpretação do leitor – além do fato de ser evidentemente um gesto de interpretação do próprio jornal.
A fala foi essa e o trecho da fala abordado nos dois primeiros parágrafos é o mesmo. Houve uma grande repetição, uma grande ênfase nesse trecho específico da fala, sendo que Franklin Martins fez outros comentários. Qual a estratégia, então, de se incluir a transcrição exata somente depois das informações contidas nos dois parágrafos anteriores? Talvez seja a de que, já tendo lido tais informações da forma como foram expressas e dispostas na matéria, o leitor tende a ver na fala de Franklin Martins um tom de “ameaça” e “enfrentamento” muito maior do que veria antes.
M3 E5 F: “Paulo Tonet, diretor do Comitê de Relações Governamentais da ANJ (Associação Nacional de Jornais), afirmou que ‘o discurso do ministro pode ser interpretado como uma ameaça ou como o jeito dele mesmo.’ Segundo ele, por enquanto a entidade vai apenas ouvir porque a presidente eleita Dilma Rousseff ainda não se manifestou sobre o assunto.”
Nesse trecho, a escolha da fonte (Paulo Tonet), cuja fala já teve destaque na legenda (M3 E1), é a marca principal. A matéria atribuiu à ANJ (personificada na figura de Tonet) a ideia de que Franklin discursou em tom de ameaça. A informação de que a presidente Dilma ainda não se manifestou pode ser lido como algo feito à revelia da presidente eleita.
M3 E6 F: “A ANJ condenou, porém, a proposta em estudo pelo governo de criação de uma agência para controlar o conteúdo divulgado por meios de comunicação digital, considerada inconstitucional pelo órgão, o que causou reação do ministro.”
A posição contrária da ANJ ao marco regulatório ganhou destaque novamente nesse parágrafo, em que também está presente a ideia de que “regulação” é sinônimo de “censura”, quando se fala em um controle do conteúdo divulgado por meios de comunicação e se destaca que a ANJ considera que tal controle seja inconstitucional.
M3 E7 F: “‘A ANJ não é a Suprema Corte’, disse Franklin. ‘Se ela achar isso [que é inconstitucional], que vá ao Supremo. Viver é perigoso, como diria Guimarães Rosa.’”
A escolha desse trecho da fala de Franklin logo após a informação sobre a manifestação contrária da ANJ ao marco regulatório também intenciona enfatizar o tom de enfrentamento, e talvez de antipatia ou prepotência, por parte do ministro, além de transmitir a ideia de que este ‘subestima’ o posicionamento da ANJ.
M3 E8 F: “Segundo ele, ‘em todos os países existem normas que devem ser seguidas com relação ao conteúdo’, e o Brasil não é uma ‘jabuticaba’ para achar que será diferente.”
Em todos os países com democracias consolidadas existem órgãos reguladores, mas um leitor leigo não sabe disso, portanto, ao colocar esse fato de forma superficial (apenas dito por Franklin) e não mencionar nada sobre o que ocorre nos países onde há órgãos reguladores, a matéria oculta a necessidade de se regulamentar a mídia e oculta que há liberdade de imprensa em países onde a regulamentação existe, que regulamentar não é sinônimo de censurar, como fora insinuado o tempo todo.
M3 E9 F: “É preciso garantir, disse o ministro, que os veículos respeitem a privacidade, a raça e defendam a língua portuguesa.”
Este enunciado aparece como “atravessado”, visto que não parece ser ressignificado pela FD ocupada pelos jornais. E aqui uma observação é muito importante: o texto pode apresentar múltiplas formações discursivas, embora seja possível afirmar que algumas ocupam posições dominantes em torno das quais outras perdem em sentido. Ora, é esse o efeito de coerência que se cobra “do autor”, agente responsável pela estabilização de sentidos num texto.
A Análise do Discurso, diferentemente da Linguística (textual, por exemplo), não trabalha com os conceitos de coerência e coesão, que são eminentemente textuais. Sentidos contraditórios podem aparecer tanto em textos autorais quanto em textos jornalísticos, que aliás se legitimam na medida em que permitiriam contraditórios.
Deve-se compreender, no entanto, que a distribuição das informações na matéria eleva ou reduz a importância de cada evento narrado. O enunciado acima é forte na medida em que aponta para um consenso social: ninguém é a favor do racismo, a ofensa à privacidade ou à destituição da língua portuguesa, mas entende-se aqui que a declaração não reforça a posição do ministro, diante de toda uma textualidade em que a ele foi imputada a condição de interessado na censura dos jornais.
M3 E10 F: “Franklin disse a uma plateia de dirigentes de agências reguladoras de vários países, de entidades representantes dos veículos de comunicação e de ONGs que, ‘apesar de momentos de fúrias mesquinhas, a nossa sociedade tem vocação para o entendimento’ e, mais de uma vez, pediu que se afastem os ‘fantasmas’ desta discussão.”
Fala-se em “dirigentes de agências reguladoras de vários países, de entidades representantes dos veículos de comunicação e de ONGs”, mas esses dirigentes, representantes e ONGs não são identificados em momento algum, portanto a situação da imprensa nos países cujos órgãos reguladores estiveram representados no evento também não foi, nem de longe, mencionada.
Obs.: Alguns dos representantes presentes no evento foram: “José Amado da Silva, presidente da Anacom e José Alberto Azeredo Lopes, presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, ambos de Portugal; Ángel García Castillejo, conselheiro da Comissão de Mercado das Telecomunicações da Espanha; Vincent Edward Affleck, diretor internacional do Office of Communications (Ofcom), do Reino Unido; Susan Ness, ex-comissária da Federal Communications Commission, dos Estados Unidos e Gustavo Bulla, da Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual da Argentina” (“Regulação, a discussão interditada”, de Lilia Diniz, publicado em 18/11/2010 no portal do Observatório da Imprensa).
Além disso, mais uma vez, a fala de Franklin ganha destaque pejorativo. Franklin pareceu ‘subestimar’ a sociedade (portanto suas opiniões nesse debate) ao falar em “fúrias mesquinhas”, na forma como seu discurso foi colocado nesse trecho.
M3 E11 F: “‘O setor está cheio de motivos para ver fantasmas’, disse Roberto Antonik, diretor da Abert (Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão). ‘O ministro nunca usou o poder dele para restringir a liberdade de expressão, mas há muitos movimentos sociais com reivindicações nesta linha.’”
Agora, foi a vez de escolher uma fonte de outra entidade cuja opinião reforce a ideia já enfatizada ao longo de todo o texto… Ideia contida nesse trecho é a de que, embora o ministro nunca tenha interferido diretamente na liberdade de expressão, existem muitos movimentos sociais que questionam justamente a tentativa de cerceamento da liberdade de expressão, ou seja, que consideram que essa seja a intenção de Franklin (do governo) com o marco regulatório. Foi conferido maior peso ao questionamento de tais movimentos sociais do que ao fato de o ministro nunca ter usado seu poder para restringir a liberdade de expressão.
M3 E12 F: “Entidades como a ANJ e Abert, entre outras, enxergam no movimento para criar novas regras para o setor de telecomunicações e radiodifusão uma ameaça de impor censura à imprensa.”
Aqui o ponto a que se intentava chegar fica claro, mais uma vez ao final do texto. A impressão e posicionamento da ANJ e da Abert foram usados para colocar “regulação” como sinônimo de “censura”, mais uma vez, conforme a ideia que a matéria busca transmitir ao leitor, que é, portanto, atribuída às fontes.
Apresentamos agora uma série de enunciados que podem ser enquadrados nas práticas discursivas já comentadas acima, mas que são importantes para a compreensão dos gestos de interpretação dos jornais.
M3 E13 F: “O ministro classificou o temor de ‘truque’, segundo ele, ‘porque todos sabem que isso não está em jogo.’”
M3 E14 F: “Franklin disse que o país não discute questões como a propriedade de rádios e TVs por congressistas e que ‘é evidente que está errado.’”
M3 E15 F: “A ANJ não é a Suprema Corte’, disse Franklin. ‘Se ela achar isso [que é inconstitucional], que vá ao Supremo. Viver é perigoso, como diria Guimarães Rosa.”
Como olho da matéria
Destaque, como olho, para o que foi comentado no M3 E7 F.
Outras matérias foram publicadas no período estudado. Os comentários virão ao final da enumeração.
Matéria 4 (na verdade, um box logo abaixo da matéria 3):
“Unesco sugere tirar concessões do Congresso” (Folha de S.Paulo, 10 de novembro de 2010)
Matéria 5:
“SIP pede ‘veto sumário’ a conselhos estaduais para monitorar a mídia” (Folha de S.Paulo, 10 de novembro de 2010)
Matéria 6:
“Governo argentino reage a crítica da SIP” (Folha de S.Paulo, 11 de novembro de 2010)
A última matéria está em consonância com o silenciamento sobre os representantes de países europeus e dos Estados Unidos no evento. A Argentina vem sendo constantemente acusada de ser um país, onde o governo, através da Ley dos Médios, pretende controlar os críticos. A mesma SIP – Sociedade Internacional de Imprensa, em espanhol – aparece condenando os conselhos estaduais no país. Nos dois casos a entidade é apresentada como órgão legítimo de fiscalização da liberdade de imprensa, e não como representante dos meios de comunicação, com realmente é. Aqui, fica clara nesta Formação Discursiva que não é a sociedade a autoridade sobre a liberdade, mas as empresas de comunicação. O atributo das democracias, o da liberdade de imprensa e o da liberdade de opinião e expressão, é apropriado por instituições privadas.
A seguir, as reportagens do Globo serão analisadas dentro de uma relação de intertextualidade com as matérias da Folha. Isso não é uma decisão arbitrária, na medida em que sabemos que os sentidos produzidos por diferentes veículos se implicam. A leitura dos jornais não é feita somente a partir do próprio texto lido, mas a partir de uma rede de formulações (memória materializada) que se estabelece sobre uma questão, um evento ou um personagem, em outras mídias. Esta rede de formulações, uma vez registrada, torna-se arquivo, e tem função fundamental para a constituição de pré-construídos, tomados como verdade nas relações interdiscursivas.
4.2. O Globo
Matéria 1:
“Terra de ninguém” (O Globo, 09 de novembro de 2010)
M1 E1 G: “Em seminário, Franklin Martins critica concessão irregular de TVs para deputados e senadores”
A legenda deu ênfase à questão das concessões irregulares de TVs a parlamentares. Há duas operações aqui: ao contrário da Folha, em que Franklin aparece geralmente em situação negativa, O Globo insere o nome junto a dois fortes consensos sociais, hoje:
a. A crítica às concessões irregulares
b. A carga semântica negativa associada a ações de parlamentares.
É curioso notar que, tão crítico quanto a Folha à regulamentação das mídias, O Globo não usa as mesmas estratégias textuais do jornal de São Paulo. Isso mostra que, mesmo que ocupem as mesmas posições-sujeito, as práticas são distintas – os modos de textualização são, em parte, decisões do sujeito-escritor, embora os sentidos produzidos relacionem-se inevitavelmente com o exterior discursivo, que é o interdiscurso ou a memória discursiva.
M1 E2 G: “O ministro da Secretaria de Comunicação Social, Franklin Martins, abriu na manhã desta terça-feira, o Seminário Internacional das Comunicações Eletrônicas e Convergência de Mídias. Ele disse que o momento é de discutir todo o marco regulatório do setor e que muitas leis não estão sendo cumpridas. Falou ainda que dispositivos constitucionais não foram regulados até agora, 22 anos depois. Citou como exemplo a propriedade de emissoras de rádio e TV, criticando concessões para parlamentares, o que é proibido pela legislação. (Leia também: Em entrevista ao Globo, Miro Teixeira diz que 'marco regulatório é indesejável' )”
Diferente da Folha de S.Paulo, o jornal mencionou o nome do seminário (sem enfatizar que o mesmo foi “patrocinado pelo governo”, como a Folha fez). Porém, não são mencionados os países em que há regulação de mídia e cujos representantes estiveram presentes e aqui há relação de paráfrase pelo silenciamento.
Foi dado destaque à critica de Franklin Martins ao sistema de concessões de rádio e TV para parlamentares e ao fato de “os dispositivos constitucionais” não terem sido regulados até hoje.
A parte da fala de Franklin presente neste trecho do texto na forma de discurso indireto não é questionada diretamente na matéria. O jornal parece querer abordar somente a questão das concessões, ocultando as outras questões discutidas no evento.
O jornal remete a uma entrevista em que Miro Teixeira diz que ‘marco regulatório é indesejável’, procura apontar para a visão de alguém que critica o posicionamento de Franklin sobre a necessidade de um marco regulatório para a mídia brasileira.
M1 E3 G: “- Criou-se terra de ninguém. Todos sabemos que deputados e senadores não podem ter televisão, tem TV e usam de subterfúgios dos mais variados.”
A parte do discurso do ministro selecionada para ser transcrita diretamente continua a enfatizar a questão das concessões, sendo que a expressão usada por Franklin para definir essa situação no Brasil e que é o título da matéria é “terra de ninguém”. O fato de ter sido esse o título dado à matéria aponta para o que é destacado ao longo do texto.
Devemos observar os próximos três enunciados em conjunto.
M1 E4 G: “Franklin Martins disse ainda que o governo federal tem consciência de que é preciso dar um tratamento especial e prioritário à radiodifusão porque tem sensibilidade de que ela tem sinal aberto, gratuito e chega a todo o país, atingindo a população de menor poder aquisitivo.”
M1 E5 G: “Mas ele entende que é preciso ter uma pactuação, uma negociação, porque caso contrário, ‘quem vai regular é o mercado’ e, neste caso, quem ganha é o mais forte.”
M1 E6 G: “Ele disse que falou sobre o assunto no início de 2009 e, no ano anterior, a radiodifusão como um todo havia faturado R$ 11 bilhões, enquanto o setor de telecomunicações, R$ 130 bilhões, números que já evoluíram. O faturamento das telecomunicações é de 13 a 14 vezes maior do que o da radiodifusão.”
M1 E7 G: “- Precisamos sentar na mesa e conversar – convocou, destacando que o melhor lugar é o Congresso.”
Existiria, no uso de “destacando que o melhor lugar é o Congresso”, a intenção de dar a entender que a regulação seria feita pelo governo, levando, portanto, à ideia de um cerceamento ao conteúdo midiático pelo mesmo. Mas, de novo, O Globo difere substancialmente da Folha na medida em que os sentidos de “diálogo”, “conversa” e “entendimento” parecem emergir dos textos do jornal.
M1 E8 G: “Lula vai entregar a Dilma projeto sobre regulamentação das mídias Ao apresentar o seminário durante coletiva na segunda-feira, Franklin Martins anunciou que o governo Luiz Inácio Lula da Silva entregará à presidente eleita, Dilma Rousseff, o anteprojeto de lei sobre Comunicações Eletrônicas e Convergência de Mídias em meados de dezembro. Durante a campanha eleitoral, Dilma disse ser contrária a qualquer tipo de controle de conteúdo dos meios de comunicação.”
O mais importante nesse último parágrafo é a referência feita ao posicionamento da presidente Dilma com relação a “qualquer tipo de controle de conteúdo dos meios de comunicação” e o fato de “o anteprojeto de lei sobre Comunicações Eletrônicas e Convergência de Mídias” ter sido diretamente vinculado à ideia de controle ou cerceamento de conteúdo dos meios de comunicação.
Matéria 2:
“Associação repudia ações contra mídia” (O Globo, “O País”, 09 de novembro de 2010)
No título, fala-se em “ações contra a mídia”, e que ações seriam essas? O debate sobre a regulamentação e as medidas a serem tomadas a partir dele. Sem enumerar as ações contra mídia, o título entra em relação de contextualidade com a narrativa sobre o seminário.
M2 E1 G: “Na Espanha, entidade aprova resolução sobre liberdade de expressão”
A legenda destaca a questão da “liberdade de expressão” enquanto ocorre no Brasil um evento que discute a regulamentação da mídia. Assim, “liberdade de expressão” representaria oposição à “regulamentação de mídia” (sinônimo de cerceamento da liberdade de expressão), proposta pelo governo brasileiro.
M2 E2 G: “A 40° Assembleia Geral da Associação Internacional de Radiodifusão (AIR) aprovou ontem, em Cádiz, na Espanha, uma resolução de repúdio a iniciativas do governo brasileiro que coloquem em risco a atividade de emissoras de rádio e de TVs no Brasil e que possam ferir os preceitos constitucionais da liberdade de expressão. A decisão da entidade ocorreu a partir de pedido da Associação Brasileira de Emissoras de Rádios e TVs no Brasil (Abert).”
A matéria destaca que um evento colocado como algo relevante (“40° Assembleia-Geral da Associação Internacional de Radiodifusão”) manifestou “repúdio” a uma proposta do governo brasileiro que não é referida como uma proposta de “regulamentação de mídia”, mas como “iniciativas que coloquem em risco a atividade de emissoras de rádio e de TVs no Brasil e que possam ferir os preceitos constitucionais da liberdade de expressão”, vinculando a regulação de mídia à cerceamento da liberdade de expressão, fazendo referência ao ato de “ferir preceitos constitucionais…”, induzindo à ideia de censura. A informação de que a resolução aprovada na Espanha “ocorreu a partir de pedido da Associação Brasileira de Emissoras de Rádios e TVs no Brasil (Abert)” tem a intenção de conferir maior legitimidade à ideia contida no parágrafo, na medida em se trata de um “pedido” de uma associação como a Abert.
M2 E3 G: “A associação brasileira decidiu recorrer à entidade internacional por conta de algumas iniciativas do governo que a Abert considera ameaçadoras ao direito de informar. Entre elas estão a 1° Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) e a decisão de algumas Assembleias Legislativas de criar em seus estados os conselhos estaduais de comunicação.”
A enunciação de que as “iniciativas do governo” são “ameaçadoras” é atribuída à Abert, como forma de garantir legitimidade ao noticiado pelo jornal.
M2 E4 G: “A Abert citou também a criação de uma comissão do governo para elaborar o projeto que cria o marco regulatório para os serviços de telecomunicação. A regulamentação é defendida pelo ministro da Comunicação Social, Franklin Martins.”
Mais uma vez, a Abert é quem diz, e agora ela cita “também a criação de uma comissão do governo para elaborar o projeto que cria o marco regulatório para os serviços de telecomunicação”, ou seja, o governo seria o grande responsável pela elaboração do projeto que cria o marco regulatório e, portanto, o responsável pela regulação propriamente, que, de acordo com o que havia sido colocado antes, é o mesmo que censurar. Assim, em resumo, foi como dizer: “o governo será o responsável pelo projeto que culminará no cerceamento da liberdade de expressão e é isso o que o ministro Franklin Martins está defendendo quando fala em regulamentação de mídia”.
M2 E5 G: “A resolução da Associação Internacional de Radiodifusão criticou também a possibilidade de qualquer alteração na lei de concessões de rádios e TVs, como a redução do prazo legal das licenças ou a proibição de suas renovações.”
Nesse trecho foi descaradamente ocultada a questão das concessões a parlamentares, sendo mencionado apenas o que se refere a prazo legal de licenças e renovação das mesmas. E, além disso, não há na matéria nenhuma palavra de Franklin Martins sobre as questões que estão sendo alvo de críticas da Abert e da AIR.
M2 E6 G: “A entidade internacional também lembrou que sites jornalísticos de multinacionais da telecomunicação não respeitam o limite imposto pela Constituição brasileira para empresas de comunicação. Segundo o texto constitucional, empresas jornalísticas e de radiodifusão só podem ter 30% de seu capital sob controle de estrangeiros.”
É interessante como o Globo “viu” a possibilidade de apropriação de sentidos favoráveis à suas posições a partir da narrativa sobre o evento. Há interesses evidentes nas Organizações Globo, que possui portais, contra outros comandados por empresas estrangeiras, como o Terra. O Globo não “descarta” o evento, como a Folha, mas utiliza-se dele.
M2 E7 G: “O diretor-geral da Abert, Luis Roberto Antonik, afirmou que foi a primeira vez que a associação de radiodifusão adota uma resolução dessa natureza para o Brasil. Antonik disse que a decisão em Cádiz foi tomada antes da realização do seminário internacional que terminou ontem em Brasília.”
Destacar a informação fornecida pela fonte (que, mais uma vez, é a Abert, na pessoa de seu diretor-geral) de que, pela primeira vez, “a associação de radiodifusão adota uma resolução dessa natureza para o Brasil” parece sugerir que, pela primeira vez, a gravidade de um tema em discussão no Brasil (a regulamentação da mídia) chamou a atenção de tal forma da associação de radiodifusão, que esta achou necessário intervir à sua maneira.
M2 E8 G: “— A decisão expressa mais uma vez a preocupação que se tem com o ambiente regulatório no Brasil, ainda que o presidente Lula seja um defensor da liberdade de expressão — afirmou Antonik.”
Por fim, a ideia definida por “ambiente regulatório” é aproximada da ideia de oposição à liberdade de expressão, oposição definida por “ainda que” (para referir-se ao posicionamento de Lula quanto à defesa da liberdade de expressão).
5. Conclusão
A partir da Análise de Discurso das matérias dos impressos Folha de S.Paulo e O Globo e de suas marcas discursivas, apontadas no quarto capítulo deste trabalho, identificamos diversas estratégias, utilizadas pelos veículos de comunicação, para transmitir ao leitor comum, que costuma atribuir à linguagem dos veículos a noção de transparência, a ideia de que a proposta do governo de criar um marco regulatório para a mídia consiste em uma tentativa deste de censurar a imprensa brasileira e de que o termo “regulação” é sinônimo de “cerceamento da liberdade de imprensa”. E, de acordo com o jornalista Alberto Dines[33]:
A mídia e a imprensa são ferramentas da sociedade, ela não apenas precisa saber o que se passa no campo da comunicação, mas tem o direito inalienável de ser informada com precisão sobre tudo o que lhe diz respeito. E justamente nesta questão crucial a mídia oferece ao seu público um material informativo distorcido e manipulado (DINES, 2010).
Assim, não só as informações inerentes à cobertura do Seminário Internacional Comunicações Eletrônicas e Convergências de Mídias são distorcidas, como há uma série de outras distorções e silenciamentos acerca das questões relativas à proposta de um marco regulatório pelo então ministro da Comunicação Social, Franklin Martins. São ocultados nos textos dos jornais analisados aspectos fundamentais da questão da regulação, como os modelos de entidades reguladoras existentes em outros países e o fato, constatado por pesquisadores citados no primeiro capítulo, de que a liberdade de imprensa é maior onde há conselhos de imprensa do que em países onde estes não existem. Ocorre também o silenciamento de questões presentes no discurso dos defensores da proposta de um marco regulatório e a ênfase somente de aspectos que reforçam o posicionamento dos veículos de comunicação, cujo discurso é contrário a qualquer proposta que discuta normas para a mídia, posicionamento questionado por Dines[34]:
A mídia brasileira, impressa ou eletrônica, sofre de uma visível alergia à exposição pública. Não é modéstia ou discrição, parece ser uma aversão à transparência. Ela que tanto clama por claridade e limpidez, justamente quando os holofotes se voltam para ela, o resultado sai truncado (DINES, 2010).
Por fim, por meio das pesquisas realizadas sobre o tema da regulamentação, pudemos conhecer melhor a realidade da imprensa dos países onde há órgãos reguladores e concluímos, baseados em suas experiências, que os conselhos de imprensa, se desvinculados por completo dos governos de seus países – um dos aspectos que caracterizam tais entidades como “verdadeiros conselhos”, incluindo simultaneamente “pessoas que pertencem à profissão e pessoas que não pertencem a ela”, mas jamais representantes do governo, de acordo com Bertrand (2002, p. 145) – funcionam como mecanismos eficazes para assegurar a responsabilidade social da mídia, preservando a liberdade de imprensa inerente à democracia sem que, no entanto, a mídia deixe de ter por objetivo principal servir aos interesses do público e fiscalizar o poder.
Referências no texto
[1] Fernando Paulino praticamente conduz nossa argumentação neste capítulo, por ser possivelmente a maior referência no assunto.
[2] O princípio da responsabilidade sucessiva estabelece que o autor de eventual abuso de imprensa deve responder pelo mesmo ainda que seu nome não tenha sido publicado e, em sua ausência, quem deve responder é o editor (PAULINO, 2008, p. 67).
[3] Decreto Lei 314 de 13/03/1967, que definia “os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social e dá outras providências”. (PAULINO, 2008, p. 74)
[4] Com o fim da Ditadura, em 1985, José Sarney se tornou presidente do país após a morte de Tancredo Neves (que ocorreu antes mesmo que assumisse a presidência), em cuja chapa era vice.
[5] Trecho de fala em off da cobertura, pelo Observatório da Imprensa, do evento “Comunicações Eletrônicas e Convergências de Mídias", realizado nos dias 9 e 10 de novembro, em Brasília, pelo Ministério da Comunicação Social. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=8nMOY7yYy1I>. Acesso em: 16 de setembro de 2011.
[6] Ver análise de discurso feita de matérias dos jornais impressos Folha de S. Paulo e O Globo, em que a vinculação do termo “regulação” (ou “regulamentação”) a “censura” e “cerceamento de liberdade de imprensa” é frequente.
[7] “Tais práticas podem ser vistas como experiências de prestação de contas do conteúdo publicado, diante da posição privilegiada das instituições de comunicação nas sociedades e não funcionam como ferramentas inibidoras da atuação jornalística, pois em muitos casos as instituições de comunicação promovem as experiências de iniciativas de promoção de entendimento entre as partes, evitando procedimento judicial.” (PAULINO, 2008, p. 2)
[8] Disponível em: <http://igutenberg.net/sueco12.html>. Acesso em: 17 de setembro de 2011.
[9] Disponível em: <http://igutenberg.net/sueco12.html>. Acesso em: 17 de setembro de 2011.
[10] Disponível em: < http://igutenberg.net/conse14.html>. Acesso em: 18 de setembro de 2011.
[11] Disponível em: < http://igutenberg.net/conse14.html>. Acesso em: 18 de setembro de 2011.
[12] LYRA, Paulo S. Britânicos reclamam pelo Disque-Ética. Instituto Gutenberg, boletim nº14, 1997. Disponível em: < http://igutenberg.net/conse14.html>. Acesso em: 18 de setembro de 2011.
[13] Disponível em: <http://www.ofcom.org.uk/about/>. Acesso em: 24 de setembro de 2011.
[14] Disponível em: <http://www.intervozes.org.br/noticias/pesquisa_orgaos_reguladores/ReinoUnido_radiodifusao-final.pdf>. Acesso em: 24 de setembro de 2011.
[15] Disponível em: <http://www.ofcom.org.uk/about/>. Acesso em: 24 de setembro de 2011.
[16] Disponível em: <http://www.erc.pt/pt/sobre-a-erc>. Acesso em: 18 de setembro de 2011.
[17] Disponível em: <http://www.redebrasilatual.com.br/temas/internacional/2010/11/dirigente-portugues-diz-que-regulacao-da-comunicacao-nao-restringe-liberdade-de-imprensa>. Acesso em: 18 de setembro de 2011.
[18] Site oficial da ERC. Disponível em: <http://www.erc.pt/pt/sobre-a-erc>. Acesso em: 18 de setembro de 2011.
[19] Disponível em: <http://www.periodistes.org/fcic/contingut.php?codmenu=1>. Acesso em: 18 de setembro de 2011.
[20] Disponível em: <http://www.cac.cat/web/informacio/index.jsp?Mw%3D%3D&MQ%3D%3D&L3dlYi9pbmZvcm1hY2lvL2NvbnRlbnREZXNjcmlwY2lv>. Acesso em: 18 de setembro de 2011.
[21] Disponível em: <http://www.cmt.es/cmt_ptl_ext/SelectOption.do?nav=presentacion>. Acesso em: 18 de setembro de 2011.
[22] Disponível em: <http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/conselho-quer-unificar-regulacao-de-jornal-tv-e-internet>. Acesso em: 18 de setembro de 2011.
[23] “Canadá tem nove conselhos de imprensa”. Disponível em: <http://igutenberg.net/canada.html>. Acesso em: 18 de setembro de 2011.
[24] Disponível em: <http://igutenberg.net/canada.html>. Acesso em: 18 de setembro de 2011.
[25] Disponível em: <http://igutenberg.net/canada.html>. Acesso em: 18 de setembro de 2011.
[26] Disponível em: < http://www.fcc.gov/about>. Acesso em: 24 de setembro de 2011.
[27] Disponível em: < http://www.fcc.gov/what-we-do>. Acesso em: 24 de setembro de 2011.
[28] Disponível em: < http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/o-exemplo-americano-de-regulacao-da-midia>. Acesso em: 24 de setembro de 2011.
[29] Disponível em: < http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/o-exemplo-americano-de-regulacao-da-midia>. Acesso em: 24 de setembro de 2011.
[30] Disponível em: <http://igutenberg.net/emquest6.html>. Acesso em: 19 de setembro de 2011.
[31] Como exemplo de conselho que inclui representantes oficiosos, Betrand cita o Egito, e como exemplo de conselho que inclui representantes oficiais, o Sri Lanka. (BERTRAND, 2002, p. 144)
[32] O autor cita três modelos de “semi-conselhos”: do Japão, da Itália e da Alemanha.
[33] Editorial do Observatório da Imprensa na TV, nº 572, exibido em 16 de novembro de 2010. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=8nMOY7yYy1I>. Acesso em 20 de setembro de 2011.
Referências bibliográficas
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FURLANETTO, M. M. Semântica, estereótipo e memória discursiva. Santa Catarina: Unisul, 2000.
GREGOLIN, M. R. Formação discursiva, redes de memória e trajetos sociais de sentido:mídia e produção de identidades. São Paulo: Unesp, 2007.
ORLANDI, E. P. Análise de Discurso. Campinas: Pontes, 2001.
PAULINO, F.O. Responsabilidade Social da Mídia. Análise conceitual e perspectivas de aplicação no Brasil, Portugal e Espanha. Brasília, 2008.
SILVA, S. P. Regulação da radiodifusão no Reino Unido. Órgãos reguladores da radiodifusão em 10 países: Reino Unido. Intervozes: Coletivo Brasil de Comunicação Social, 2010.
SOUZA, M. T. de; ALVES, Wedencley. A religião na media: uma análise de discurso e argumentação do programa Show da Fé. Universidade Federal de Juiz de Fora, 2011.
Matérias jornalísticas:
ASSOCIAÇÃO repudia ações contra mídia. O Globo, Rio de Janeiro, 10 nov. 2010. Caderno País, p. 14.
BERÇO da Liberdade. Instituto Gutenberg, Boletim nº 12, nov./dez. 1996. Disponível em: <http://igutenberg.net/sueco12.html>
BRITÂNICOS reclamam pelo Disque-Ética. Instituto Gutenberg, Boletim nº 14, março/abril 1997. Disponível em: <http://igutenberg.net/conse14.html>
CANADÁ tem nove conselhos de imprensa. Instituto Gutenberg, Boletim nº 6, nov./dez. de 1995. Disponível em: <http://igutenberg.net/sueco12.html>
CONSELHO quer unificar regulação de jornal, TV e internet. Observatório da Imprensa, edição Nº 656, 23 ago. 2011. Disponível em: <http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/conselho_quer_unificar_regulacao_de_jornal_tv_e_internet> 58
CRAIDE, Sabrina. Dirigente português diz que regulação da comunicação não restringe liberdade de imprensa. Rede Brasil Atual, 10 nov. 2010. Disponível em: <http://www.redebrasilatual.com.br/temas/internacional/2010/11/dirigente-portugues-diz-que-regulacao-da-comunicacao-nao-restringe-liberdade-de-imprensa>
DINIZ, Lilia. O exemplo americano de regulação da mídia. Observatório da Imprensa, edição Nº 653, 04 ago. 2011. Disponível em: <http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/o_exemplo_americano_de_regulacao_da_midia>.
______. Regulação, a discussão interditada. Observatório da Imprensa, edição nº 616, 18 nov. 2010. Disponível em: <http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/regulacao_a_discussao_interditada>.
ÉBOLI, Evandro; TAVARES, Mônica; BRISOLLA, Fábio. Mídia: Entidades reagem a ameaças de Franklin Martins. O Globo, Rio de Janeiro, 10 nov. 2010. Caderno País. Disponível em: < http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2010/11/11/midia-entidades-reagem-ameacas-de-franklin-martins-339903.asp>.
LOBATO, Elvira; MATAIS, Andreza. Franklin diz que não recuará sobre projeto. Folha de S.Paulo, São Paulo, 10 nov. 2010. Caderno Poder, p. A12. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po1011201018.htm>
______. Governo argentino reage a crítica da SIP. Folha de S.Paulo, São Paulo, 11 nov. 2010. Caderno Poder, p. A13. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po1111201016.htm>
______. Governo quer regulamentar setor de rádio, TV e internet. Folha de S.Paulo, São Paulo, 9 nov. 2010. Caderno Poder, p. A11.
Os conselhos de ética são um meio eficiente de auto-regulamentação da imprensa?. Instituto Gutenberg, Boletim nº 6, Nov./dez. 1995. Disponível em: <http://igutenberg.net/emquest6.html>
RAMOS, M. C. Comunicação e Responsabilidade Social. Terra Magazine. 8 ago. 2006. Disponível em: <http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI1090868-EI6794,00.html>.
SILVA, N.F. “Conselhos de Imprensa: Liberdade, censura e autocontrole”. Observatório da Imprensa, nº 171 08/05/2002 Disponível em <http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/news/showNews/da080520026.htm>.
SIP pede ‘veto sumário’ a conselhos estaduais para monitorar a mídia. Folha de S.Paulo, São Paulo, 10 nov. 2010. Caderno Poder, p. A12. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po1011201021.htm>
TAVARES, Mônica; ÉBOLI, Evandro. Em seminário, Franklin Martins critica concessão irregular de TVs para deputados e senadores. O Globo, Rio de Janeiro, 9 nov. 2010. Caderno País. Disponível em: <http://extra.globo.com/noticias/brasil/em-seminario-franklin-martins-critica-concessao-irregular-de-tvs-para-deputados-senadores-29236.html.> 59
Unesco lança hoje estudo sobre jornalismo. Folha de S.Paulo, São Paulo, 9 nov. 2010. Caderno Poder, p. A11. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/827486-estudo-da-unesco-aponta-indicadores-para-jornalismo-no-pais.shtml>.
Unesco sugere tirar concessões do Congresso. Folha de S.Paulo, São Paulo, 10 nov. 2010. Caderno Poder, p. A12. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po1011201020.htm>
Websites consultados:
Consell de l'Audiovisual de Catalunya (CAC): <http://www.cac.cat/>
Comisión del Mercado de las Telecomunicaciones (CMT): <http://www.cmt.es/cmt_ptl_ext/SelectOption.do>
Consell de la Informació de Catalunya (CIC): <http://www.periodistes.org/fcic/home.php>
Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC): <http://www.erc.pt/>
Ofcom – Independent regulator and competition authority
for the UK communications industries: <http://www.ofcom.org.uk/>
The Federal Communications Commission (FCC): <http://www.fcc.gov/>
***
[Luiza Sansão é jornalista, São Paulo, SP]