Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalista no divã

Não bastassem os dilemas intrínsecos à atividade jornalística herdados da revolução da imprensa de Gutenberg e suficientes para preencher a agenda dos “analistas” de mídia ao longo de seis séculos, quis o acaso ou a força dos tempos que os profissionais da comunicação da virada do século fossem predestinados a experimentar novos e profundos questionamentos do fazer jornalístico, frente à luxúria, o limbo da era digital.

Luxúria porque corrompeu velhos costumes com um inevitável poder de atração inovador e de sedução global. Limbo porque pairamos sem chão num vasto e aparentemente infindável terreno de divisas difusas à espera de demarcação, uma espécie de buraco negro que hoje concentra e compacta a matéria da informação e que atende pelo nome internet. O ler do jornal, o ver da televisão e o ouvir do rádio foram sugados de suas órbitas particulares para operar em conjunto e com novos elementos dentro desta plataforma magnética, de natureza etérea pelas suas incertezas mas concreta no amplo domínio das convergências, metamorfoses e alquimias de linguagens.

O jornalista tenta hoje encontrar o seu lugar neste espaço ilimitado em forma e conteúdo para recobrar algum controle sobre a panaceia informativa. O dito “remédio para os males da humanidade” caiu em domínio público depois de ser nossa custódia na divulgação dos fatos.

Vivemos uma crise de identidade, bem ilustrada pelos mais elementares fundamentos filosóficos: quem somos, de onde viemos, para onde vamos?

Dilemas do jornalismo na era digital

Se é constatação que o jornalista vive hoje no melhor e no pior dos mundos, onde nunca houve tantas possibilidades de atuação nem tantas dúvidas sobre os rumos da nossa atividade, já não se pode ter certeza do que é perda e do que é ganho em muitas vertentes desse processo. Vejamos.

Espaço, perdemos ou ganhamos? Se já não detemos a exclusividade na produção de notícias, tarefa hoje dividida com não jornalistas que encontraram o ambiente ideal para publicar conteúdos dos mais incautos, numa ponta, mas também dos mais bem construídos, na outra – por exemplo, por especialistas em suas áreas –, é de se concluir que perdemos, sim, espaço como difusores de matéria-prima bruta. Quando a instantaneidade entra em jogo, fica ainda mais evidente: o furo jornalístico, por tanto tempo um troféu rodado internamente entre a categoria, hoje pode ser dado a partir do telefone celular de quem chegar primeiro, profissional ou não. E a disseminação da informação é tão rápida que muitas vezes nem interessa quem deu a notícia primeiro, mas quem repercutiu melhor.

Por outro lado, todas essas ferramentas também estão ao nosso alcance, estendem nosso horizonte de atuação, e tendo o conhecimento do processo informativo como ninguém, quem melhor para trabalhar com esses recursos? Por falar em espaço, não deixamos para trás antigas limitações de toques, laudas e minutagem que restringiam a boa exploração da notícia para um aproveitamento sem igual de conteúdo extra em sites, comentários em blogs, repercussão em redes sociais e sobrevida online de material excedente nos veículos tradicionais? Se perdemos espaço com a “concorrência” do cidadão comum como disseminador de informação, não podemos reclamar do espaço que hoje temos para dar vazão ao nosso trabalho.

Por sinal, trabalho: ganhamos ou perdemos? A crise no modelo de negócios das empresas tradicionais tem sacrificado milhares de empregos formais em todo o mundo, porque elas seguem tateando no escuro em busca dos melhores investimentos num momento de transição em que nenhuma velha fórmula ou nova aposta tem qualquer garantia, ao contrário, todo passo é um risco em potencial e a imobilidade é a certeza do fim.

Porém, ao mesmo tempo, surgem novas oportunidades de negócios que exigem estrutura mínima para alforriar o profissional da barra da saia da grande imprensa e o instigam, por necessidade ou escolha, ao espírito empreendedor e independente, a ser o gestor de si mesmo e de pequenos grupos, que se reúnem em torno de projetos específicos e se dissolvem tão logo concluídos e se reorganizam para um novo desafio, numa dinâmica ágil e veloz, trabalhosa e desafiadora.

E a credibilidade, ganha-se ou se perde? Ao mesmo tempo em que somos um referencial neste universo de informação, passamos a ter nossas reportagens percebidas como fragmentos de tanta informação disponível. Se estamos atrelados a interesses corporativos, concorremos com a livre divulgação e repercussão dos fatos.

Múltiplas habilidades, perda ou ganho? Para quem lida com difusão do conhecimento, parece lógico: quanto mais recursos e ferramentas disponíveis, mais construções possíveis, mais linguagens disponíveis, maior o público alcançado. Mas como organizar o tempo para dar conta de todas as frentes? Como os grupo de mídia podem solucionar a equação entre capital restrito e trabalho em dobro?

Arrogância, diz-se que perdemos com a abertura de canais de interação depois de tanto tempo guiando notícias por via de mão única. Pois com tanta companhia e fiscalização a nossa volta, foi preciso descer do salto e do posto de arautos da verdade. Mas também ando escutando por aí que somos a salvação da lavoura e suas pragas cibernéticas da desinformação. A propósito, esta é uma percepção do público ou da categoria?

Dilemas do processo comunicativo

Comunicar bem é uma arte, um processo criativo que envolve técnicas e abstrações. É assim nos campos pessoal e profissional. Começando pelo primeiro, quantas vezes não enfrentamos situações no dia-a-dia em que uma mera conversa com outra pessoa vira um desafio? O mesmo discurso, os mesmos argumentos, ora funcionam, ora esbarram em obstáculos, o que deve ter a ver com experiências de vida e referências particulares pois, por exemplo, nem sempre indivíduos da mesma opinião são necessariamente os melhores interlocutores.

É perfeitamente possível e nem tão raro experimentar diálogos correntes com pessoas de ideologias opostas, bem como ter o discurso ou seu entendimento retraído com parceiros em pensamentos, embora haja maior benevolência com nossos pares. São ruídos que a lógica nem sempre explica, ingredientes subjetivos do processo comunicativo. Então há também o domínio das técnicas de comunicação. Sentir é verdadeiro, verbalizar é simbólico, depende de uma equação de signos que precisam ser dominados para representar o mais fielmente possível uma suposta realidade, uma verdade interior, uma versão fidedigna.

As dimensões do discurso e da plateia envolvem uma série de outras responsabilidades. Entram em cena as formalidades, impessoalidades, cobranças ainda maiores de faltas ou excessos. O escritor mede suas palavras, não porque não acredite na história que pretende contar, mas porque precisa encontrar o melhor modo de sintetizar um pensamento ou sentimento que existe, está latente, tem que ser codificado, transformado em outra substância. A comunicação oral envolve ainda o tom de voz, a velocidade da fala, todo um gestual para controlar. E aquele sentimento ou pensamento inato, em estado puro, perde a espontaneidade original nesta transcodificação.

Na busca pela essência da informação, quanto se perde no caminho, por quanto e quais motivos? Só para ficar num exemplo, no exercício da profissão, levamos a público nem 10% do que é apurado não só por falta de espaço, mas porque existem amarras que impedem a divulgação de informações por vezes mais fundamentais para a nossa compreensão de um fato do que o material exibido. Os bastidores da notícia têm riquezas ocultas que a exibição não logra expor.

Dilemas da prática jornalística

Não tenho dúvidas de que as experiências profissionais mais tocantes a que somos submetidos envolvem o contato direto com o drama humano, sempre acompanhado de velhos dilemas. É em meio à tragédia que a fragilidade da vida oferece elementos em estado bruto para as mais ricas narrativas, lapidadas sob a dor alheia. Não é cruel que o sofrimento dos outros seja força motriz para o jornalista?

Do mais inescrupuloso ao mais sensível colega, não há quem escape dessa encruzilhada moral. E se o fizer, estará perdendo a chance de exercer o seu papel mais fundamental. Não é necessário que essas tragédias sejam noticiadas para que cumpramos o dever maior? E que dever é esse? Onde começa e até onde vai a nossa responsabilidade sobre a temática e os sujeitos envolvidos nas matérias?

Começa pela abordagem com as pessoas que vão dar testemunho à reportagem, as quais comumente chamamos ¨personagens¨ embora tratem-se de vidas reais. Dia desses, preparando uma material sobre Aids, pedi a um assessor do Ministério de Saúde se ele teria um personagem para me indicar, um portador do vírus que contasse sua história. Ele me apresentou um senhor de bom humor desconcertante: ¨vamos deixar claro que não sou um personagem, sou uma pessoa, como você¨. Quer dizer, como um jargão usual pode soar inadequado e ofensivo.

Fizemos graça da expressão os dois, mas ruborizei ao ser, digamos, desmascarada: seu drama havia sido relegado a um segundo plano e, desapercebidamente, eu o tratava como um elemento qualquer para completar minha narrativa em tempo hábil, enquanto ele se preparava para expor sua intimidade e resumir em alguns segundos um drama pessoal enfrentado há 20 anos e ter a sua figura associada a uma doença cercada de graves preconceitos.

É assustador perceber que a rotina anestesia nossa capacidade de comoção. Ou o que me parece também grave, que a sensibilidade aflore somente no ato de recontar, e não mais em campo, no contato com o outro. Seria no mínimo apenas meio caminho andado, e no máximo de uma falsidade tremenda ignorar a condição do outro durante o encontro, para então usá-lo como escada para uma sensibilidade de ficção, que só acontece por meio dos signos de linguagem e não na prática. Até porque hoje não somos mais cobrados apenas pelo produto final, mas pela relação firmada com todos os nossos públicos. Mas e se, na minha frieza, conseguir sensibilizar várias pessoas com essa história, estaria perdoada?

Frente a frente com o drama. Você soube lidar bem com os dilemas de sola do pé. Respeitou as pessoas envolvidas e extraiu delas relatos comoventes. Foi até o fim do mundo para dar voz a quem não tinha e buscar conteúdo exclusivo. Sentiu o peso da dor porque não é feito de gelo e o sangue fervilha nas veias com o baita material em suas mãos. E agora, que história com começo, meio e fim está disposto a contar? Você tem dezenas delas e terá que optar por só um caminho. O choro da criança transmite o teor da tragédia ou é recurso dos mais apelativos? O que viu de fato será bem assimilado pelo público ou é preciso fazer concessões para adequar à melhor forma? Segue a linha editorial contratada como objetivo ou envereda pelo caminho oposto condizente com o que viu? Pesa a mão ou tira o pé? Mais informação ou emoção?

Mas e afinal, onde pretende chegar com tantos dilemas?

Doutor, não tenho respostas. Sou apenas uma jornalista no divã.

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[Larissa Thomé Schmidt é produtora de telejornalismo na sucursal da RBS em Florianópolis]