Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As diferentes visões do mundo

Alemanha Oriental, outubro de 1989. Christiane, uma devota do socialismo, tem um ataque cardíaco ao ver o filho Alex em uma passeata contra o sistema vigente. Como consequência do enfarto, Christiane entra em coma profundo por oito meses. Nesse intervalo de tempo, muita coisa acontece. O muro de Berlim cai, a Alemanha volta a ser um país único e o capitalismo vence mais uma batalha. Ao acordar do coma, o médico aconselha Alex que Christiane evite emoções fortes, pois outro ataque tão cedo seria fatal. Com o peso na consciência pelo estado atual de sua mãe, Alex faz de tudo para que ela continue vivendo em uma ilusória Alemanha socialista, mudando embalagens de produtos industrializados e criando cenários cujos objetos remetem aos velhos costumes e ideologias da filosofia marxista.

O filme Adeus, Lênin! retrata de maneira tragicômica as mudanças nas identidades culturais que a Alemanha vivenciou na década de 80. O muro que separava a cidade de Berlim não só delimitava um espaço, mas duas visões totalmente diferentes acerca do mundo. De um lado, Berlim Ocidental e o capitalismo que avançava ferozmente no continente europeu, pregando a privatização das empresas, a existência de mercados independentes, a hierarquização das pessoas dentro de um mercado de trabalho. De outro, Berlim Oriental e o socialismo caracterizado pelos ideais igualitários, a estatização de empresas, oportunidades para todos os indivíduos sem distinções sociais, a descentralização do poder. Ambos os sistemas econômicos tinham forte influência no cenário político e social dos países, pois além de se estruturarem de maneira diferente formando governos com hierarquias e ideologias distintas, a cultura da sociedade era diretamente influenciada pelos costumes e valores de cada um desses sistemas.

Ideais igualitários

A Alemanha socialista firmava-se no marxismo, no “ideal igualitário”, baseado na distribuição equilibrada de riquezas e propriedades com a finalidade de proporcionar a todos um modo de vida mais justo. O poder político e econômico é transferido para as mãos da classe trabalhadora. Com a estatização das empresas antes controladas pela burguesia, todas as formas produtivas, como indústrias e fazendas, passam a pertencer à sociedade e são controladas pelo Estado, não concentrando a verba nas mãos de uma minoria. O Estado também determina os preços, estoques e salários, regulando o mercado como um todo. Há um controle maior entre as concorrências, de forma a serem organizadas para não denegrir uma à outra. O povo governa para o povo, não existem classes sociais, apenas um grupo de pessoas focadas na mesma causa, no mesmo sistema.

A sociedade socialista alemã era mais conservadora, seguia à risca normas e padrões tradicionais, pois sabia que era responsável por mover a engrenagem do igualitarismo, que dá vida e esperança ao sonho em que acredita devotadamente. Essas convicções fazem parte do grupo de sentidos que identificam a nação, sentidos com os quais as pessoas constroem suas próprias identidades. Assim, as memórias do passado, o desejo por viver em conjunto e a perpetuação das heranças (no caso da Alemanha Oriental, a resistência ao capitalismo em virtude de toda sua história socialista) formam essencialmente o que chamamos de cultura nacional. Essa cultura se dá através do conceito de identidade nacional como sendo uma “comunidade imaginada”, formada por histórias contadas pela literatura, mídia e cultura popular – onde as pessoas se identificam com as informações que recebem –, a ênfase nas origens, nas tradições, ao mesmo tempo em que novas práticas são realizadas.

A filosofia do capitalismo prega exatamente o contrário da ideia socialista: com a privatização das empresas e a existência de mercados independentes, produtos de gigantes como a Coca-Cola e Mc Donald’s começaram a circular livremente pela Berlim Ocidental, de modo que as importações são permitidas e as pessoas estimuladas a consumir. A sociedade começava a se organizar levando em conta uma série de fatores antes não importantes. Empregos foram criados a partir de parâmetros acadêmicos e sociais, nivelando e localizando as pessoas em suas futuras carreiras. As oportunidades iguais acabam, os ideais igualitários não existem mais.

Atualizar-se não era uma escolha imparcial

A globalização assume um papel importantíssimo como transformador social através das conexões entre a Alemanha capitalista e o mundo. Comida americana passou a fazer parte da mesa da família alemã, grifes italianas, francesas viraram must have entre os adolescentes. As pessoas não pensam em um ideal-comum, mas focam-se em seus próprios interesses. Essa nação moderna, influenciada por fatores exteriores acaba se tornando hibridamente cultural e não mais enraizada no nacionalismo.

No intuito de convencer a mãe de que a situação sócio-político-econômica do país continua a mesma desde quando ela acordou, o personagem Alex reúne uma série de fatores para basear a mentira: encontros com amigos de sua mãe que pertenciam ao ex-Partido Socialista, pois mesmo vivendo a realidade capitalista, vivenciaram de forma mais intensa e participativa este momento transitório ao lado da mãe de Alex; objetos tradicionais genuinamente alemães, simbolizando também um amor à sua pátria, às coisas fabricadas em sua terra, o nacionalismo já dito antes incrustado na cultura da sociedade; alimentos e produtos de empresas que acabaram não resistindo à competitividade do mercado capitalista e até mesmo forja em vídeo os noticiários de televisão transmitidos na extinta rede do regime socialista.

A mídia é a principal sustentação da mentira, pois em um período de transições e incertezas, a sociedade precisava saber e queria entender o que se passava no cenário nacional. Atualizar-se sobre a situação da Alemanha era uma necessidade, não apenas uma escolha imparcial. Os jornais mostravam notícias de ultima hora sobre manifestações contrárias ao governo, novas maneiras de fortalecer o socialismo e a saudação dos antigos valores e tradições. Nas ruas não se viam outdoors de marcas estrangeiras, mulheres seminuas ou qualquer coisa que colocasse em xeque o comportamento pudico daquela época. No rádio, apenas programas alemães. Os meios de comunicação respiravam Alemanha Oriental.

Propagação e afirmação de identidades

Controlando das mídias enquanto pôde, Alex conseguiu recriar o cenário socialista para sua mãe. Enquanto conseguiu fazer programas nos mesmos moldes e com o mesmo conteúdo que era transmitido no momento pré-capitalismo, sua mãe era convencida de que tudo estava bem. Se o papel da mídia é transmitir informação, seja pelo formato de entretenimento ou pelo jornalismo, então não há razão para a dúvida em relação à programação justamente em um momento em que as comunicações eram tão importantes. Embora havendo a manipulação das informações apresentadas, Christiane, que desconhecia a atual situação política de seu país, tomava-as como verdade absoluta exatamente porque a mídia tem este papel de refletir a realidade. Observando aquele material, ela concluía que aquele era o cenário político atual da Alemanha socialista.

Ao mesmo tempo em que o filme mostra a mídia influenciando as convicções da personagem Christiane, o contrário também é observado. Os alemães da Alemanha Ocidental influenciaram as mídias porque foram influenciados por valores e costumes de outros povos devido ao processo de globalização. A partir do momento em que esses valores foram mesclados, as necessidades e os interesses da população mudaram. Isso reforça ainda mais a ideia de que cultura se aprende, o comportamento humano depende do aprendizado, das influências as quais o indivíduo foi submetido, dos costumes e todo o conjunto de informações que foi passado a ele. Os meios de comunicação tiveram que seguir estes passos, moldando-se à nova realidade. Continuar a transmitir um conteúdo que não interessava o ideal capitalista era perda de tempo, pois as pessoas não se identificavam mais com aquilo. A mídia pode ser considerada também um meio de propagação e afirmação de identidades, pois somente mostra o que o povo quer ver ao mesmo tempo em que insere novas culturas, novos valores.

Sociedade em constante transformação

Segundo Marx, “a modernidade é o permanente revolucionar da produção, o abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a incerteza e o movimento eternos…” O que diferencia uma sociedade tradicional como a de Christiane de uma sociedade moderna como a que Alex vive são as mudanças constantes, rápidas, permanentes. O mais interessante é que este conceito sobre modernidade descreve exatamente o que ocorre com maior frequência no capitalismo. Quanto mais a tecnologia avança nos trazendo dispositivos inovadores, mais queremos inovar, mais queremos descobrir. Segundo Giddens, “a modernidade é inerentemente globalizante”. Como argumentou David Held, os estados-nação nunca foram tão autônomos ou soberanos como pretendiam, essas influências externas sempre existiram, porém de maneira mais controlada e sutil.

Wallerstein nos lembra de que o capital nunca permitiu que suas aspirações fossem determinadas por fronteiras nacionais, e hoje em dia, seria muito difícil imaginar um mundo sem a “compressão espaço-tempo” que permite a aceleração dos processos globais de forma a sentirmos que o mundo é menor e as distâncias mais curtas, que os eventos em um determinado lugar têm um impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande distância. Vivemos em uma época onde recebemos informações das mais diversas plataformas e temos autonomia para escolher o que queremos saber. Essa necessidade faz parte da nossa identidade atual, dos valores, símbolos, costumes que permeiam nossa vida atual. Somos uma sociedade em constante transformação.

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[Jéssica Pedroso é jornalista, São Leopoldo, RS]