Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A greve docente, o vestibular e os absurdos

Em seu artigo “Super-heróis da inconsequência”, o estudante de História da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Gabriel Tebaldi, colunista fixo do jornal A Gazeta, faz afirmações contundentes. O que é louvável, não tenho dúvidas: e aplaudo. Há que se ter coragem para se dizer o que se pensa sem meias-palavras, ainda mais tendo só 19 anos e nenhum respaldo de autoridade (não é especialista no tema sobre o qual opina, não tem um lastro biográfico que faça um texto sob sua assinatura ser de pronto considerado etc.). Acho bonito mesmo que as pessoas não se intimidem, que acreditem na força das palavras e que verbalizem as ideias que as movem, no espaço público, exercendo o direito que a democracia lhes dá. Assim, com o respeito que a coragem alheia me impõe – embora eu discorde do teor e do tom com que o articulista apresenta suas opiniões –, passo a comentar alguns dos muitos pontos que me instigam (e preocupam).

O primeiro ponto é que a coragem para se dizer sem meias-palavras o que se pensa sobre qualquer assunto requer assumir riscos e a disposição de se responsabilizar – em todas as esferas – pelo que foi dito. Nesse sentido, afirmar, categoricamente, que “não é novidade que as universidades costumam andar distantes da realidade. O mundo acadêmico tem a incrível capacidade de mover-se alheio à sociedade que o cerca. Porém, os acontecimentos da instituição do Espírito Santo vão mais além: a Ufes tem andado acelerada na direção da inconsequência” é ser ofensivo, não apenas com a Universidade Federal do Espírito Santo (e as pessoas que lutam cotidianamente por ela, para ela e com ela, como instituição pública, laica, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada), mas com o conjunto das universidades brasileiras – o que requer, ao menos por gentileza, um mea culpa.

Desigualdade e má-fé

Dizer que as universidades costumam andar distantes da realidade e moverem-se alheias às sociedades que as cercam é supor que algo possa estar distante ou alheio à realidade: não posso concordar com isso; assim como nada é anacrônico, já que tudo o que existe é permitido (entre viabilizado e contrafeito) por um tempo, as universidades estão na realidade, são realidade e não podem dela andar distantes ou alheias. Talvez o que o articulista quisesse pontuar fosse que as universidades têm sido – como uma espécie de espelhamento ou representação das sociedades em que existem – elitistas, excludentes, ignorantes em relação às grandes questões que perturbam o Outro (ou seja, os que estão “fora” dela)… Se sim, estaríamos (o articulista e eu) de acordo. É necessário que a universidade seja povo, seja multidão, abra-se a todas e todos, escancare suas portas, deixe de se ver como reduto de poucos e privilegiados, ocupe-se seriamente das questões que afligem aqueles muitos que nunca se sentaram nos bancos de instituições de ensino superior. Mas, pelo teor do restante do texto, infelizmente, não posso supor que seja essa a ideia contida nas afirmações de que “as universidades costumam andar distantes da realidade” e de que “o mundo acadêmico tem a incrível capacidade de mover-se alheio à sociedade que o cerca”.

Em seguida, afirmar que “a Ufes tem andado acelerada na direção da inconsequência” e, para “provar”, dizer que “de início, vale falar da porta de entrada da federal, seu vestibular”e que “a greve docente, assim como o vestibular, está repleta de absurdos” é misturar alhos com bugalhos – o que não é, em si, mau, mas exige acurado conhecimento de causa. A transformação tanto dos processos seletivos de acesso às instituições públicas (e a disposição da Ufes em adotar as cotas sociais e étnicas, nesse sentido, nos enche de orgulho) quanto dos modos e meios pelos quais os movimentos sociais (dentre os quais, a luta dos professores por carreira e condições de trabalho) se fazem e se dão a ver exigem, sim, um estranhamento do e no contemporâneo: daí, parece-nos, o tom ligeiramente histriônico em certos momentos. Mas esses pontos (a disposição em misturar coisas diferentes, a falta de conhecimento de causa, o estranhamento diante do contemporâneo) não permitem afirmar que somos e agimos pari passu à inconsequência.

Concordo que muitas coisas precisam (e podem, devem, urgem) ser pensadas, discutidas, debatidas, reinventadas: mas daí a acusar a Universidade Federal do Espírito Santo de inconsequente é dar vez e voz à petulância. Não somos inconsequentes ou irresponsáveis: ao contrário, dedicamos nossos dias à constituição de uma instituição mais e mais democrática, plural, justa e melhor (nas múltiplas e incontáveis acepções que a palavra comporta). E temos conquistado resultados muito significativos, e não apenas em âmbito local – embora a desigualdade e a má-fé sejam uma herança (histórica, social, cultural, política, ética), que tenhamos que mastigar, deglutir e, principalmente, vomitar: expurgando o que nos faz mal.

Com dignidade

Os gestores de nossa instituição (das reitorias às chefias de departamento e coordenações de colegiado – passando pelos gestores de hospitais, bibliotecas, centros de informação e tecnologia, restaurantes, teatros, galerias, editoras, setores de manutenção etc.), mesmo que deles eu e outros colegas discordemos em alguns pontos fundamentais, têm feito, a despeito da precariedade de condições (que muitas vezes independem de sua dedicação e boa-vontade), um trabalho aguerrido na tentativa de expandir a universidade numericamente (em novos cursos de graduação e pós-graduação, novos campi, novos professores, número de matriculados, trabalhos publicados, número de bolsas, acervos, espaço físico e mobiliário, velocidade e publicidade das informações etc.) sem, contudo, deixar de atentar aos principais nortes do serviço público: continuidade, impessoalidade, universalidade, eficiência, modicidade, obrigatoriedade, supremacia do interesse público, transparência e cortesia. Cometemos falhas e precisamos ter a honestidade e coragem para corrigi-las, mas isso não permite que sejamos ofendidos no exercício de nossa profissão (no que se imiscuem nossas militâncias), especialmente porque estão diante de todas as evidências de que a universidade pública federal se expandiu sem a contraparte exigida de investimentos ou gastos públicos.

É muito grave dizer, ironicamente, que “hoje a Ufes já preenche todos os pré-requisitos para abrir um doutorado em ‘Falhas e negligência de processos seletivos’, afinal é especialista em anulação de questões, fiscais despreparados, vazamentos de resultados e informações desencontradas. Os absurdos se acumulam ano a ano e as críticas são respondidas apenas com o silêncio”. Não que eu não concorde que o vestibular tem falhas, não que eu não concorde que as críticas são insuficientemente respondidas. Tem – mas não é essa calamidade que o sensacionalismo faz acreditar. Eu também gostaria que o processo fosse mais democrático, transparente, que fosse discutido com a comunidade em eventos abertos a todos, que fossem publicados manuais e livros descrevendo e pensando criticamente o processo (como o fazem, por exemplo, outras instituições no país), que fossem incentivadas dissertações, teses e pesquisas sobre o tema, que as equipes responsáveis tivessem condições melhores de trabalho etc. No entanto, problemas ocorrem em quaisquer processos – e a universidade vem se esforçando, ano a ano, por minorá-los, algumas vezes com mais sucesso, outras vezes com menos: no entanto, é também pela falta de condições (as quais nós, grevistas, denunciávamos) que as coisas são como são. Professores, gestores e técnicos sobrecarregados e sem oportunidade de qualificação efetivamente compatível com a função exercida é que tocam o processo, fazendo muitas vezes o impossível para que a coisa aconteça com a dignidade requerida.

Dupla dimensão

Os professores da Ufes, juntamente com outros tantos em outras tantas universidades, entraram em greve há quase quatro meses – exatamente porque lutam em defesa de uma universidade melhor (que parece, in absentia, ser também o desejo do articulista), exatamente como pontua Gabriel Tebaldi. Acreditamos que uma universidade melhor – para além de assegurar que continue ou se faça pública, laica, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada – é também uma universidade que permita que aqueles que passam de algum modo por ela possam constituir-se criticamente: e é isso o que fazemos; nós expomos nossas fragilidades para que, nelas, encontremos a força pensante-atuante que nos anima, mesmo quando o ceticismo e a vontade de cinismo avançam vorazes sobre nós. Não permitiremos, assim, que sejamos ofendidos – nós e nossos colegas –, como se fôssemos maus caráteres, despreocupados com o circundante: é o oposto; em respeito ao que está além de nosso umbigo que exercemos eticamente nossos direitos reivindicatórios.

Nesse sentido é desalentador ler que, nas reuniões sindicais, “os sindicalistas atrasam a abertura das reuniões e, quando começam, cospem discussões e bate-bocas sem fim. Com esse retardo estratégico, a reunião vai se esvaziando, afinal, nem todos podem passar o dia sentados no campus à mercê dos desserviços de alguns. Aí a jogada é simples: com a assembleia vazia, os grevistas votam e aprovam seus interesses recheados de má-fé”. É desalentador porque indicia um desrespeito, em dupla dimensão: 1) fica parecendo que “os sindicalistas” – como categoria abstrata – são manipuladores, maquinadores, interessados apenas em promover os próprios interesses à frente de uma coletividade; e 2 fica parecendo que os professores que participam das assembleias são uma massa de manobra burra e passiva, que se deixa enganar por maquiavélicos toscos. E é desalentador porque sinaliza que o autor da acusação não tem plena compreensão do que é a esfera pública: não mede o dano moral que inflige aos que são tocados por suas palavras.

“Super-heróis” ingênuos

Tenho participado de todas as reuniões sindicais da Adufes, desde que há dois anos tornei-me professora universitária (como antes eu participava das reuniões do Grêmio Estudantil, no antigo Cefetes, como antes eu participava do Diretório Acadêmico de Letras, da Ufes, e como antes participava das reuniões do Sindiupes e do Sinpro-ES, como professora da educação básica), ausentando-me apenas em caso de real impossibilidade. Todas as vezes em que vi atraso no início de assembleias foi exatamente para assegurar um quórum legítimo; de igual modo, as discussões não são cuspidas e nem os bate-bocas sem fim: são exercícios legítimos da prática democrática, que só existe em se fazendo, com base na apresentação de pontos de vista divergentes, que são expostos, defendidos, polemizados, repensados, reelaborados, reencaminhados etc. Não existe coisa pública que se faça sem palavras e contrapalavras: por isso as assembleias se estendem, porque todos têm a oportunidade de dizer o que pensam (como o articulista fez, e como eu estou fazendo agora). É, portanto, ofensivo e desleal igualar esse exercício legítimo a um retardo estratégico cujo fim seja a votação e aprovação de interesses escusos. Não estou, aqui, minimizando a dimensão política das assembleias, não estou, ingenuamente, supondo a não-espessura dos discursos (na acepção mais ampla que essa palavra tem): mas não posso deixar de me indignar com as palavras do jovem estudante.

Se os quatro meses de paralisação dos professores têm prejudicado estudantes e comerciantes, como o articulista argumenta, os professores e servidores não têm menor prejuízo; no entanto, não é a greve quem primeiro nos castiga a todos – mas sim o descaso histórico (em nível local, nacional, transnacional) com a educação. É baixo dizer, com deboche, que os que lutam pela transformação das condições (e há lutas e lutas, em fronts os mais vários) são “super-heróis” que “acreditam que sua insistência fará com que Dilma atenda as reivindicações” mesmo quando “quase todas as instituições públicas já saíram da greve, menos a Ufes, que está no mangue”. Como professora de Língua Portuguesa e Literatura, atuando em um Centro de Educação, pergunto-me quais são os efeitos de sentido pretendidos e por quê.

Super-heróis da inconsequência

Pergunto-me por que, em alguém tão jovem, o rancor e ressentimento presentes em frases como: a) “ao contrapor um sindicalista, você corre o risco de ser atacado por gritos de mobilização e frases de efeito” (como se o texto ao qual respondo não fosse mobilizado e cheio de frases de efeito); b) “tão sem lógica quanto a manutenção da greve foi a ocupação do Núcleo de Processamento de Dados (NPD) por alguns super-heróis menos elegantes”(como se os motivos da greve e da ocupação não fossem públicos e como se “menos elegantes” fosse algo sério a ser considerado, para além do efeito retórico); c)“os ‘guerreiros’ acreditavam estar salvando a Ufes de sabe-se lá o que. A salvação terminou com uma decisão judicial de reintegração de posse” (como se uma reintegração de posse deslegitimasse a ação que determinou a ocupação); e d) “hoje a Ufes caminha na contramão, acelerada por super-heróis que sonham combater ditaduras inexistentes e, na primeira oportunidade, lançam-se na política ou num cargo comissionado” (como se ser combativo – seja de modo pragmático ou quixotesco – fosse em si um demérito; como se exercer um cargo público via eleição ou de modo comissionado fosse um depoimento contra si; como se lançar-se na política fosse um mau projeto…). Que juventudes, estudantes, sociedades, mundo estamos construindo? Qual é a nossa parcela de (ir)responsabilidade? Qual será nosso quinhão, diante de perigosos acintes como esses?

Por fim, em nome da verdade (como meta, não como fato; como percurso, não como destino; como construção humana, não como a priori), preciso dizer que não é verdade que “a universidade é uma terra sem lei, refúgio perfeito para bandidos que se beneficiam dos discursos pseudorrevolucionários que cheiram a mofo. Meia-dúzia de super-heróis querem por a segurança de milhares em risco para poder invadir a reitoria, botar fogo em pneus em frente as cancelas e, claro, queimar suas ervas”. Não é verdade que todas as festas que acontecem no campus sejam “um pandemônio” e nem, tampouco, que a universidade seja “uma terra sem lei” – quiséramos fosse; mas nunca foi, não é e não vai ser. Há tanta violência na Ufes quanto fora da Ufes; já tantos bandidos no campus quanto fora dele (talvez até menos) – e, nesse sentido, retomo o início de minha argumentação, de que não existe universidade fora da realidade. Não queremos a polícia militar no campus porque polícia é para quem precisa de polícia: e nós precisamos de melhores condições de trabalho e estudo, precisamos de salário, carreiras dignas, infraestrutura, tempo para dedicar a aulas melhores, a pesquisas melhores, a ações de extensão melhores e a gestões melhores da educação pública. Precisamos de estudantes que façam desse grupo pequeno que está na universidade grupos maiores e cada vez maiores.

Concordo que “os super-heróis da inconsequência são tão pequenos quanto suas ideias” – mas esses super-heróis da inconsequência não somos eu e meus pares, que lutamos bravamente, em sala de aula e fora dela, pela universidade brasileira e pela universidade capixaba. Esses super-heróis da inconsequência são aqueles que, a troco de nada, talvez apenas alimentar sua arrogância, se colocam em linha de choque com o diferente em tom desrespeitoso, desabonador, ofensivo. É isso.

***

[Maria Amélia Dalvi é licenciada, mestre e doutora pela Universidade Federal do Espírito Santo]